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Cláusula de desempenho: dispositivo imprescindível à multivocalizada proposta de Reforma Política

Cada dia mais, a democracia se fragilizará, a falta de ideologia e de comprometimento partidário dos filiados se fortificará e acarretará, ainda mais, o individualismo político sem qualquer compromisso com a população ou com o partido.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Atualizado às 08:50

A partir do Ato Institucional II, de 1966, quando já vigorava o regime imposto pela ditadura militar no Brasil, estabelecido no país estava o sistema do bipartidarismo, no qual só existiam os partidos Aliança Renovadora Nacional (ARENA), albergando os militares e seus simpatizantes, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição à ditadura, chamada oposição consentida. A necessidade de manutenção dos partidos consentidos era premente para se confirmar a ilusão que se tentava criar sobre a obediência, pela ditadura, aos direitos civis e políticos.

Após o regime militar, período em que liberdades civis foram violentamente vilipendiadas e durante o qual liberdade de expressão era direito inexistente, foi editada a lei 6.767, de 20 de dezembro de 1979, através da qual o regime do pluripartidarismo foi reinstituído no regime jurídico brasileiro.

O temor dos que viveram a ditadura militar, ansiosos pelas pleiteadas liberdades civil, de expressão e de opinião, fez com que essa legislação impusesse requisitos simplórios para a instituição de um partido político.

Com essa facilidade, iniciaram-se os pedidos de registro dos novos partidos políticos brasileiros. Na vanguarda estiveram os chamados partidos tradicionais, tais como PMDB e PSDB (advindos do MDB), PDT, PCdoB, PT, DEM (ex-PFL), PP (advindo da ARENA e PDS), dentre outros.

O fato é que hoje temos 35 partidos políticos com estatuto registrado no TSE1. Além desse número estarrecedor, o TSE aponta que existem mais 52 partidos em formação2.

Em observância desses dados uma dúvida surge: existem tantos matizes ideológicos que embasem a criação de 35 partidos políticos e a tentativa de registro de mais 52? Essa proliferação de partidos resulta ou se fundamenta no fortalecimento democrático ou estariam os interessados movidos por interesses pouco (para não dizer nada) republicanos?

Inicialmente, frisa-se que seguindo uma ideia doutrinária/filosófica o partido surgiria da organização de pessoas (eleitores) defensores da mesma ideologia, do mesmo programa, ligados por uma doutrina em comum. Hans Kelsen3 leciona "que o indivíduo isolado não tem, politicamente, nenhuma existência real, não podendo exercer influência real sobre a formação da vontade do Estado" finalizando no sentido de que "a democracia só poderá existir se os indivíduos se agruparem segundo suas afinidades políticas, com o fim de dirigir a vontade geral para os seus fins políticos".

José Cretella Júnior, citado por José Jairo Gomes4, vaticina que "(os partidos são) Organizações destinadas a congregar eleitores que participam dos mesmos interesses ou das mesmas ideologias ou da mesma orientação política, em relação aos problemas fundamentais do país, os partidos políticos são definidos como associações de cidadãos, homens e mulheres, maiores ou não, unidos por um idem sentire et vele político geral, associações estavelmente organizadas, que desenvolvem atividades continuadas, externas e públicas, dirigidas ao escopo de exercer influências sobre decisões políticas, ou, mais brevemente, como acordos entre certo número de cidadãos, para procederem em comum, nas eleições dos governantes, e na fiscalização do poder que estes exercem", e arremata sustentando que "(cada filiado encontra-se ligado a outro) por princípios filosóficos, sociais, doutrinários, que promete respeitar, constituindo esses pressupostos a lealdade partidária".

Nos parece do dia a dia da vida político-partidária que os ensinamentos dos doutrinadores são componentes de um mundo perfeito, incompatível com a vivência e cultura partidária/eleitoral. Um sofisma que, caso correspondesse a verdade, só traria benefícios à população brasileira.

No entanto, já há muito tempo essas palavras (filosófico e ideologia) sumiram do vocabulário político-partidário nacional. Não se sabe mais se o partido é "de direita", "de esquerda" ou "de centro"; não se sabe o que cada partido político defende, quais suas ideias, seus programas. Aliás, os próprios filiados desconhecem seu estatuto.


Disso ressai um fato: a criação desenfreada de partidos políticos sem ideologia, sem programa, somente enfraquece a instituição que deveria servir para defender toda a sociedade.

O fortalecimento dos partidos já existentes seria muito mais útil à democracia nacional do que a criação dos chamados "partidos de aluguel" ou "partidos nanicos".

Não se está aqui defendendo a vedação à criação dos partidos.

Ao contrário.

Defende-se seu fortalecimento sobre bases sólidas; o enrijecimento dos critérios para se criar um partido político; a estipulação de requisitos mínimos que comprometam o filiado à causa que está abraçando ao filiar-se a um partido político; a lealdade ideológica (pressuposto maior da fidelidade partidária); defende-se, sobretudo, a adoção de cláusula de desempenho para que aqueles recém-criados possam acessar recursos do fundo partidário e tempo de propaganda eleitoral e partidária gratuitas.

O TSE, já nessa toada, deu importante contribuição ao reconhecer a legitimidade do instituto da fidelidade partidária quando da aprovação da resolução 22.610, de 25 de outubro de 2007. Nela se estabeleceu a legitimidade do partido político, do interessado ou do MPE (estes últimos em caso de inércia do primeiro) requererem à Justiça Eleitoral a perda do mandado eletivo do político infiel à agremiação partidária, entendendo, acertadamente, que o mandato eletivo proporcional pertence ao partido político e não à pessoa do filiado eleito.

A mesma resolução possibilita a mudança de partido político em caso de incorporação, fusão ou criação de partidos, mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário ou em caso de grave discriminação pessoal, casos em que pode o detentor do mandato pode requerer que a Justiça Eleitoral declare a justa causa para a troca de partido.

Apesar dos méritos, entretanto, essa medida agravou o problema aqui tratado.

Desde a imposição da fidelidade partidária a proliferação dos partidos políticos foi ainda mais propagada. Essa criação desenfreada tornou-se válvula de escape para o detentor de mandato político que deseja mudar de agremiação. Desse modo legitima-se o troca-troca partidário.

Sob esse enfoque, o que suscita a criação de novos partidos? A ideologia, fidelidade ou compromisso partidário ou a simples necessidade de novas siglas para burlar a fidelidade partidária ou, ainda pior, a criação de "empresas político-partidárias" para gozar da distribuição do fundo partidário?

Além do caso da brecha da infidelidade partidária, nos parece que a resposta mais óbvia esteja incutida nos artigos 17, §3º, da Constituição Federal e art. 38 da lei 9.096/95.

Através desses dispositivos se garante aos partidos políticos o recebimento de recursos do fundo especial de assistência financeira aos partidos políticos e acesso gratuito ao rádio e à televisão (instrumento valiosíssimo hoje em dia).

A distribuição do fundo partidário é regida pelo artigo 38 e seguintes da lei 9.096/95. Segundo o dispositivo citado, o fundo especial de assistência aos partidos políticos é composto de multas e penalidades pecuniárias aplicadas em decorrência do código eleitoral e leis conexas, recursos financeiros que lhe forem (aos partidos) destinados por lei, doações de pessoas físicas e dotações orçamentárias da União.

Durante todo o ano de 2015 o valor distribuído aos 35 partidos existentes consistiu na quantia de R$ 811.285.000,00 (oitocentos e onze milhões, duzentos e oitenta e cinco mil reais)5 decorrentes dos duodécimos, além do valor de R$ 56.284.220,00 (cinquenta e seis milhões, duzentos e oitenta e quatro mil e duzentos e vinte reais)6 decorrentes de multas eleitorais, totalizando o valor de R$ 867.569.220,00 (oito).

Esse expressivo valor aliado aos ainda mais valioso tempo de propaganda eleitoral e partidária no rádio a na televisão faz nascer aos olhos de muitos a cobiça pela coisa pública, o desprendimento ideológico-partidário, o desejo de fazer de seus partidos não uma fortaleza de ideologia, de compromisso com um Brasil melhor, mas sim verdadeiras siglas de aluguel para que grandes partidos se beneficiem de seus recursos (direta ou indiretamente).

Dos 35 partidos políticos registrados no TSE, cinco não possuem sequer um deputado Federal, seja eleito ou advindo de outro partido político, são eles: PSTU, PCB, PCO, PPL e NOVO. Não obstante desse fato, receberam do fundo partidário no ano de 2015 o valor conjunto de R$ 8.450.425,93 (oito milhões, quatrocentos e cinquenta mil, quatrocentos e vinte e cinco reais e noventa e três centavos).

Além desses casos, dignos de menção são os "partidos familiares", que são dirigidos por membros de uma mesma família e não demonstram qualquer compromisso ou interesse públicos.

O artigo 13 da Lei dos Partidos Políticos, que deveria entrar em vigor nas eleições de 2006, continha uma cláusula de barreira para o funcionamento legislativo dos partidos, com consequência na distribuição do fundo partidário e horário de propaganda eleitoral e partidária gratuita no rádio e na TV.

Ocorre que alguns partidos políticos acionaram o STF, através de ADI, autuada sob os números 1.351 e 1.354, nas quais arguiram a incompatibilidade do disposto no artigo 13 da lei 9.096/95 com a Constituição Federal. Quando do julgamento das ADI's citadas (07/12/2006) foi reconhecida a inconstitucionalidade, por unanimidade, do dispositivo.

Entrementes, nos dias atuais, permanecem no STF apenas cinco dos 11 ministros que o compunham. E mesmo diante de tal fato, alguns dos cinco ministros já demonstraram disposição a rediscutir o tema. Dentre os ministros que não o compunham alguns já se manifestaram no mesmo sentido. Para que possamos enxergar uma luz no fim do túnel o STF negou medida cautelar requerida nos autos da ADI 5.311/DF, que impugna dispositivos da lei 13.017/14, e consignou, em ementa de acórdão que: "1. A Constituição da República assegura a livre criação, fusão e incorporação de partidos políticos. Liberdade não é absoluta, condicionando-se aos princípios do sistema democrático-representativo e do pluripartidarismo. 2. São constitucionais as normas que fortalecem o controle quantitativo e qualitativo dos partidos, sem afronta ao princípio da igualdade ou qualquer ingerência em seu funcionamento interno. 3. O requisito constitucional do caráter nacional dos partidos políticos objetiva impedir a proliferação de agremiações sem expressão política, que podem atuar como "legendas de aluguel", fraudando a representação, base do regime democrático".

Fato é que não só os membros do mais alto Tribunal do país, mas toda população brasileira, identificaram a total falência de nosso sistema político-partidário.

Um passo importante para fazer cessar a criação desenfreada de partidos parece ter sido dado através da PEC 36/16. De acordo com a proposta, dentre outros dispositivos, seria criada uma cláusula de desempenho crescente pela qual os partidos teriam que obter, em 2018, 2% dos votos válidos nacionalmente distribuídos em 14 Estados da federação e no mínimo 2% de votos válidos apurados em 14 Estados; a partir de 2022 esse percentual passaria a ser de 3% dos votos válidos nacionais distribuídos em 14 Estados e de 2% dos votos válidos por 14 Estados.

Não atingido esse desempenho os partidos não poderiam gozar da distribuição de tempo de propaganda gratuita e participação no fundo partidário.

Aliás, a adoção da cláusula de desempenho é a tônica adotada por diversos países de democracia consolidada mundo afora, v.g., Estados Unidos da América (6 partidos), Alemanha (13 partidos), Áustria (8 partidos), Canadá (5 partidos), Itália (8 partidos), Portugal (15 partidos), dentre outros.

Esses fatos demonstram a necessidade de uma verdadeira reforma política nesse ponto. Não se está aqui a defender fielmente com os termos propostos na PEC 36/16, mas, inegavelmente, ela aponta na direção correta para a manutenção do pluripartidarismo e para o fortalecimento da democracia.

Embasado no que aqui foi dito e em decorrência de diversas e desanimadoras notícias veiculadas diariamente a respeito da decadência dos partidos políticos, já passou o momento de as Casas do Congresso Nacional se debruçarem seriamente sobre as condições de criação de partidos políticos ou mesmo sobre os requisitos para que acessem as benesses do fundo partidário e da propaganda gratuita no rádio e na TV, assim como discutirem a famigerada e recorrente reforma eleitoral.

Caso nenhuma atitude seja tomada os fatos aqui tratados descambarão para o efeito antagônico ao pretendido com a facilitação de criação de novos partidos. Cada dia mais, a democracia se fragilizará, a falta de ideologia e de comprometimento partidário dos filiados se fortificará e acarretará, ainda mais, o individualismo político sem qualquer compromisso com a população ou com o partido, como já observamos, com algumas exceções, no cenário político-partidário brasileiro.
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1 Partidos políticos registrados no TSE

2 Partido em Formação

3 KELSEN, Hans. A democracia.

4 GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 5 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

5 Distribuição do Fundo Partidário 2015 - Duodécimos

6 Distribuição do Fundo Partidário 2015 - Multas

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*Armando Dantas do Nascimento Júnior é sócio do escritório Dantas, Nascimento, Neri & Prado - Sociedade de Advogados, especializado em Direito Constitucional pela UNISUL/IDP.

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