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Podemos morrer de susto. De tédio, jamais

O que não configura crime pelas leis mas é uma afronta ao jornalismo é a manipulação dos fatos e acusações infundadas. É fazer de espetáculo algo que não é.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Atualizado em 24 de novembro de 2016 07:36

Na semana passada, esbocei escrever um artigo para o Migalhas sobre a participação da ministra Cármen Lúcia no programa "Minha Estupidez", que foi ao ar pelo canal por assinatura GNT no dia 17 de novembro. Concebido e apresentado por Fernanda Torres, a atração trouxe uma esquete inspirada livremente em "O Mercador de Veneza", de William Shakeaspare.

Não consegui redigir nada porque as falas impecáveis da ministra do STF e a direção do programa, que utilizou recursos que a TV tem como imagens de arquivo, quadros explicativos (que na TV chamamos de arte) sobre as fontes do direito romano e do direito anglo-saxão,uma BG completamente adequada, "One", do Metallica, na versão da finlandesa Apocalyptica (é sério, este é o nome da banda), externas com a atriz. Parecia uma conspiração pois Cármen Lúcia cravou:

"Podemos morrer de susto. De tédio, jamais".

Embora "Minha Estupidez" seja produzido e dirigido pela Conspiração Filmes, a exibição do programa durante a semana em que os ex-governadores do Rio foram presos parecia uma coincidência. Para mim foi profética: passei um domingo preocupada com a prova de Direito Constitucional de hoje à noite e acordei em uma segunda preocupada com a prova que o Direito e a CF estão passando.

Perdoe-me professor Bruno, mas mais urgente que estudar é defender o que aprendo em sala de aula. E defender, para mim, é escrever. Aqui vai: é inviável o país que nos mate de susto. Primeiro, foi com os mandados de busca e apreensão em escritórios de advocacia. Depois, das prisões dos advogados. Agora, é o relacionamento intocável entre o advogado e seu cliente que estão aí, para todo mundo ouvir. Como diz o meu Pai, "só falta agora vazar os segredos de confessionário, coitado do padre".

A divulgação dos áudios em rede global (não esqueçamos que a Globo é internacional- minha mãe vê na Suíça) por si só já quase me mata de susto. Quando escutei, pensei que teria que encomendar meu caixão: as conversas apontavam que tanto o advogado quanto o seu cliente conheciam a ministra do TSE Luciana Lóssio.

Cabe mais uma vez Cármen Lúcia em Minha Estupidez:

"O Judiciário nunca foi de falar com a sociedade- por vários motivos. A compreensão que se tinha era que o juiz se retraia até para não ficar sujeito à injunções. Depois, se descobriu que o pior lugar para se ver o mundo é dentro de um gabinete. Talvez este tenha sido este crescimento do Judiciário. É que a gente lidava com a ideia de um ser humano abstrato, que estava nas páginas do processo mas sem carne, osso e emoção".

A "reportagem" insinua que contato com juiz é crime. Não é. Crime é divulgar áudio. Crime é violar as prerrogativas da advocacia e dos cidadãos, ainda que sejam réus. Juiz, como bem disse a ministra do STF, é um ser humano de carne, osso e emoção. Minha carreira profissional como jornalista teve como começo reportagens para a revista Diálogos e Debates, da Escola Paulista de Magistratura. Desde aquela época tenho contato com juízes. Isso nunca fez deles criminosos- nem eu. E também nunca me ajudou em nada- nem eu a eles.

O que não configura crime pelas leis mas é uma afronta ao jornalismo é a manipulação dos fatos e acusações infundadas. É fazer de espetáculo algo que não é. Claudio Abramo já nos ensinou que a ética do jornalista é a ética do cidadão. Esta "matéria" que foi ao ar no Fantástico nos levanta uma dúvida: ou a ética do cidadão- e dos jornalistas- não tem nada a ver com nada de ético ou não há ética na Rede Globo. Instituições como a OAB e o IASP repudiaram o programa e sua conduta. Ainda não vi nada sobre instituições jornalísticas, já que os sete minutos e quarenta e três segundos são um ataque não apenas aos políticos como à democracia.

À Fernanda Torres, Cármen Lúcia diz que o ser humano tem "o direito ao sossego":

"O ser humano tem o direito de dormir achando que ele não vai ser acordado em sobressalto. Na matéria tributária temos o princípio da não surpresa, por isso é que se cria um imposto em um ano e ele só pode entrar em vigor no ano subsequente, para você se preparar. Eu digo que no Brasil nós temos o direito ao não susto. Porque você morrer de susto. De tédio, aqui, jamais."

Não pretendo morrer de susto e muito menos de tédio. Se for para morrer, meu óbito será registrado na resistência pelo Estado Democrático de Direito. Resistir, neste momento, é escrever e afirmar, reafirmar e afirmar de novo que este Estado não é Democrático- e que não podemos ficar nele. Conforme a nota da IASP, "não se trata de um privilégio do Advogado, mas de uma garantia do cidadão de ser submetido a um processo justo, como garantem todos os países civilizados signatários da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão."

Como fã de Tim Maia, também quero sossego: mas, pelo que 2016 trouxe, não terei tão cedo.
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*Ivy Farias, 35 anos, é jornalista e estudante de Direito da UMC- Campus Villa-Lobos/Lapa.

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