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Dr. Hannibal Lecter e a utilização da própria vítima, em estado de inimputabilidade, para o cometimento do delito: autoria mediata imprópria?

Há duas modalidades: a) na autoria imediata, o próprio agente realiza a conduta típica e antijurídica; b) já na autoria mediata, o agente utiliza um terceiro, sem culpabilidade, para realizar a conduta típica e antijurídica.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Atualizado em 30 de novembro de 2016 07:54

Raros serial killers de Hollywood tiveram a "proeza" de saber conciliar a maldade com um certo "requinte", no momento em que ceifavam a vida ou produziam graves ferimentos em suas vítimas. Um deles certamente foi Dr. Hannibal Lecter, personagem do romance de Thomas Harris, e que deu origem a um quadrilonga, interpretado por Anthony Hopkins1. Em "Hannibal", o conhecido facínora administra substância entorpecente em uma de suas vítimas (Sr. Verger), induzindo-a a produzir lesões corporais gravíssimas em seu próprio rosto, utilizando pedaços de vidro, cena assim narrada pela própria vítima, após inalar o "pó-de-anjo" misturado com anfetaminas e um pouco de ácido:

- Ele foi até o espelho em que eu estava me olhando, chutou a parte de baixo e pegou um estilhaço. Eu estava voando. Ele veio, me deu o pedaço de vidro e me olhou nos olhos, e sugeriu que talvez eu gostasse de arrancar a pele de meu rosto com ele. Em seguida soltou os cachorros. Eu os alimentei com meu rosto. Dizem que demorou muito tempo para tirar tudo. Não lembro2.

Certamente a cena é muito mais chocante no cinema do que no livro.

O tema, embora fruto de um romance, merece certa reflexão sob o aspecto dogmático-penal.

O Direito Penal distingue a autoria da participação, havendo duas principais teorias relacionadas ao assunto: para a teoria restritiva, autor é apenas aquele que realiza o núcleo do tipo, enquanto o partícipe é aquele que pratica qualquer outra conduta acessória; já para a teoria do domínio do fato, desenvolvida por Welzel, autor não é apenas quem pratica o núcleo do tipo penal, mas também aquele que detém o controle final sobre a empreitada criminosa, assegurando sua execução e podendo, inclusive, evitar o resultado; segundo Welzel,

no en cualquier determinación positiva legal, sino en estas esenciales formas de aparición de un accionar final, dentro de un mundo social, está la diferencia estructural entre la autoría y la participación. El autor es el señor sobre el hecho, en cuanto él tiene el dominio sobre la decisión y su ejecución; quien lo instiga o lo ayuda en eso contribuye en el acto, pero no lo domina3.

Zaffaroni, Alagia e Slokar inserem o domínio do fato na própria tipicidade conglobante, ao lado da lesividade, de modo que a ausência desses elementos acarreta a falta de antinormatividade, assim como a presença das ações fomentadas pelo Direito (exercício regular do direito, consentimento do ofendido e estrito cumprimento do dever legal)4, excluindo, assim, a própria tipicidade.

No que se refere à autoria, há duas modalidades: a) na autoria imediata, o próprio agente realiza a conduta típica e antijurídica, v.g., A compra uma arma, dirige-se à residência de B e efetua um disparo de arma de fogo no seu peito; b) já na autoria mediata, o agente utiliza um terceiro, sem culpabilidade, para realizar a conduta típica e antijurídica. Ocorre nos casos em que o terceiro é inimputável, e.g., A induz deficiente mental a furtar bebidas numa loja de conveniência5, bem como nas hipóteses de coação moral irresistível, obediência hierárquica e erro determinado por terceiro (CP, arts. 20, § 2º, e 22), v.g., médico entrega uma seringa à enfermeira, afirmando-lhe que se trata de um sedativo para o paciente, mas na verdade é um veneno6. Nos casos de autoria mediata, somente o autor mediato responderá pelo crime, ou seja, não há concurso de agentes entre os autores mediato e o terceiro utilizado7, e aquele ainda terá a sua pena agravada (CP, art. 62, II e III)8.

Advirta-se: se o autor pratica o crime comandando um animal silvestre ou de estimação, a hipótese é de autoria imediata, e não mediata. Exemplos: criminoso adestra um macaco para que subtraia objetos, ou um cão da raçã pitbull para atacar pessoas9.

Como esclarece Welzel, referindo-se ao sistema penal alemão, a autoria mediata foi desenvolvida justamente para preencher um vácuo legislativo decorrente da aplicação da teoria da acessoriedade extrema, que não permitia a participação quando a conduta era realizada por um autor imediato inculpável, afirmando que "estas formas de la autoría mediata pueden ser en la actualidad aprehendidas como casos de aplicación del dominio final del hecho (sea de la autoría simple o de la coautoría)"10. Já para a teoria da acessoriedade limitada, que passou a ser adotada, a participação exige tão somente que o fato principal seja típico e antijurídico, prescindindo-se, portanto, da culpabilidade de seu autor11. A concepção da autoria mediata, contudo, não escapou às críticas de Hungria:

[...] o executor irresponsável ou imune de pena não representa mais que um autômato, uma longa manus, um instrumento passivo, de modo que, sub specie juris, deixa de haver participação, e até mesmo o simples auxiliar (ainda que alheio à execução material do factum principale e sem animus auctoris) passa a ser autor, isto é, autor mediato. É flagrante o artifício. A própria expressão 'autor mediato redunda numa impropriedade: se o executor não é mais que um instrumento passivo, quem dêle se serviu é autor imediato, como sê-lo-ia quem praticasse um crime fazendo funcionar um robot. Mas falar-se, na espécie, em instrumento passivo não passa de uma ficção ou metáfora, nem sempre tolerável12.

Na situação inicialmente descrita, envolvendo o facínora Dr. Hannibal Lecter, a própria vítima é utilizada pelo autor para a prática do fato típico e antijurídico classificado como lesão corporal gravíssima em razão de deformidade permanente (CP, art. 129, § 2º, IV). Embora o tema mereça uma análise mais aprofundada, que certamente excede a proposta do presente trabalho, trata-se de uma hipótese de autoria mediata - inclusive, já delineada por Welzel, nos casos de coação -,13podendo ser qualificada, ao menos provisoriamente, como autoria mediata imprópria, justamente porque o agente utiliza a própria vítima, em estado de inimputabilidade, para realizar a conduta descrita no referido tipo penal, e não um terceiro, como normalmente ocorre na autoria mediata genuína.

A mesma situação poderia ocorrer quando o autor mediato induzir um inimputável por deficiência mental a produzir lesões corporais ou até mesmo a atentar contra sua própria vida, exatamente porque faltaria a este a cognoscibilidade necessária para avaliar as consequências de seu comportamento. Neste caso, havendo morte ou lesão corporal grave ou gravíssima, o induzidor não responderia apenas por participação em suicídio (CP, art. 122), mas sim por homicídio ou lesão corporal, na medida em que a vítima não possuiria qualquer discernimento a respeito do ato - não há mera redução da capacidade de resistência, hipótese em que se aplicaria o disposto no art. 122, parágrafo único, inciso II, do Código Penal14; como pondera Damásio de Jesus, "se nula completamente tal capacidade, terá o sujeito cometido homicídio e não participação em suicídio"15.

Em suma, é possível afirmar, ao menos em tese, que na autoria mediata o agente pode utilizar a própria vítima - inimputável por deficiência mental ou em estado de inimputabilidade por embriaguez - para realizar a conduta típica e antijurídica, hipótese que poderia ser denominada de autoria mediata imprópria. Quanto à vítima inimputável em razão da menoridade penal, é necessário avaliar, em cada caso, o seu grau de discernimento, o que acarretará tipificações penais distintas: a) participação em suicídio se houver morte ou lesão grave ou gravíssima, quando a vítima possuir algum discernimento sobre o seu ato, ainda que mínimo; ou b) homicídio, tentativa de homicídio ou lesão corporal, por autoria mediata imprópria, caso a vítima não possua qualquer cognoscibilidade.

Referências Bibliográficas

HARRIS, Thomas. Hannibal: A continuação de "O silêncio dos Inocentes". 7ª ed. trad. de Alves Calado. Editora Record: Rio de Janeiro, 2001.

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal: Arts. 11 a 27. 4ª ed. Forense: Rio de Janeiro, 1958, v. 1, Tomo II.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: Parte Geral. 19ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 1.

_____. Direito Penal: Parte Especial. 23ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 2.

SCHOEDL, Thales Ferri. 2243 Questões para Concursos Públicos. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2015.

WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. 11ª ed. 4ª ed. en español. Traducción del alemán por los professores Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2011.

_____. Estudios de Derecho Penal: Estudios sobre el sistema de derecho penal; Causalidad y acción; Derecho Penal y filosofía. Collección Maestros del Derecho Penal. Dirigida por Gonzalo D. Fernan- des. Coordinada por Gustavo Eduardo Aboso. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. Reimp. Buenos Aires: Editorial IB de F, 2007.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Manual de Derecho Penal: Parte General. 2ª ed. 6ª reimp. Buenos Aires: Ediar, 2011.

__________

1 Salvo no último longa, no qual Hannibal Lecter, ainda um menino e depois um jovem estudante de Medicina, é interpretado, respectivamente, por Aaran Thomas e Gaspard Ulliel.

2 HARRIS, Thomas. Hannibal: A continuação de "O silêncio dos Inocentes". 7ª ed. trad. de Alves Calado. Editora Record: Rio de Janeiro, 2001, p. 60. O presente artigo propõe uma análise que se restringe ao momento em que a vítima produz ferimentos em si mesma, na forma descrita, não tratando dos ferimentos que se seguiram, justamente para não se ingressar na discussão sobre eventual caracterização do crime de tentativa de homicídio.

3 Estudios de Derecho Penal: Estudios sobre el sistema de derecho penal; Causalidad y acción; Derecho Penal y filosofía. Collección Maestros del Derecho Penal. Dirigida por Gonzalo D. Fernan- des. Coordinada por Gustavo Eduardo Aboso. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. Reimp. Buenos Aires: Editorial IB de F, 2007, p. 83.

4 Manual de Derecho Penal: Parte General. 2ª ed. 6ª reimp. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 356-371.

5 Exemplo de Thales Ferri Schoedl (2243 Questões para Concursos Públicos. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2015, p. 210).

6 Exemplo de Welzel (Derecho Penal Alemán. 11ª ed. 4ª ed. en español. Traducción del alemán por los professores Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2011, p. 163-164).

7 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: Parte Geral. 19 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 1, p. 363. No entanto, adverte o mesmo autor ser possível a participação entre o autor mediato e um terceiro, quando este induz aquele a servir-se de outrem para a execução do delito (op. cit., p. 363).

8 Dispõe o art. 62 do Código Penal: "A pena será ainda agravada em relação ao agente que:
[.]
II - coage ou induz outrem à execução material do crime;
III - instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade ou não-punível em virtude de condição ou qualidade pessoal [.]".

9 Exemplos de Thales Ferri Schoedl (op. cit., p. 210).

10 Derecho Penal Alemán., p. 163.

11 Cite-se ainda a teoria da acessoriedade mínima, exigindo apenas que o comportamento principal seja típico, e a teoria da hiperacessoriedade, reclamando, além da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, as circunstâncias agravantes e atenuantes relacionadas ao autor principal (DAMÁSIO de JESUS, op. cit., p. 360-361).

12 Comentários ao Código Penal: Arts. 11 a 27. 4ª ed. Forense: Rio de Janeiro, 1958, v. 1, Tomo II, p. 403.

13 Referido autor traz os exemplos do patrão que obriga sua aprendiz a ingerir vísceras sem limpar, respondendo por lesão corporal, como autor mediato, e o caso de Hildegard Höfeld, que induz uma jovem de 16 anos ao suicídio, através de sua desmoralização total, aliada a sucessivas ameaças, respondendo por homicídio, também como autor mediato (Derecho Penal Alemán..., p. 165). Para Welzel, fora dessas situações de coação, a indução ou ajuda a autolesões não são puníveis, e ao tratar dos menores e deficientes mentais sem cognoscibilidade, apenas menciona os casos em que os mesmos são utilizados para cometer crimes contra terceiros, não se referindo à autolesão (Derecho Penal Alemán..., p. 165-166).

14 Transcreve-se o art. 122 do Código Penal: "Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.
Parágrafo único - A pena é duplicada:
Aumento de pena
I - se o crime é praticado por motivo egoístico;
II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência".

15 Direito Penal: Parte Especial. 23ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 2, p. 103. Em idêntico sentido: WELZEL, Estudios de Derecho Penal., p. 90.
__________

*Thales Ferri Schoedl é advogado e professor de Direito Penal e Processual no VFK Cursos Jurídicos. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestrando em Desenvolvimento e Gestão Social pela Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

 

 

 

 

 

 

 


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