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A voz e a vez do povo, por Eudes Quintino

A voz e a vez do povo

A Constituição Federal tem como base de sustentação o povo e sua vontade, conferindo a ele todo o poder e soberania para que cada integrante da nação possa desenvolver suas qualidades.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Atualizado em 9 de dezembro de 2016 12:49

O povo é dotado de uma sabedoria difusa que rapidamente se lastreia por diversos meios de comunicação e, como se fosse algo codificado facilmente, carrega uma mensagem imperativa. Uma ordem sem autor, mas como atores anônimos, aceitável, sem caráter cogente, que atravessa as fronteiras e, na força e velocidade de um tsunami, vai tombando e levando tudo de roldão.

É interessante observar que a expressão popular, calada durante muito tempo, nas raras vezes em que se manifestava, não conseguia seu intento, pois andava em círculos, sem linguagem própria e muito menos identidade coletiva. A necessidade de se conviver intensamente com a democracia fez com que adquirisse perfeita sintonia e maturidade suficiente para fazer das ruas seu habitat natural e desfilar as justas pretensões da cidadania, nos moldes das pólis helênicas.

No instante em que eclodiu a vontade popular levando para as ruas o idealismo e a altivez desenhados na bandeira da consciência popular, a história ganha capítulo inédito e entroniza definitivamente o poder popular como instrumento eficaz para o exercício pleno da cidadania, assim como o termômetro para medir o grau de saturação dos políticos democraticamente eleitos, porém com a clara sinalização de desserviço à nação. "Quando o populacho se põe a refletir, advertia Voltaire, tudo está perdido".

A Constituição Federal tem como base de sustentação o povo e sua vontade, conferindo a ele todo o poder e soberania para que cada integrante da nação possa desenvolver suas qualidades e atingir uma qualidade de vida que seja condizente com a cidadania apregoada, dentro de uma ordem estável. Tanto é que, a título de exemplo, confere a ele a legitimidade mais ampla para o ingresso da ação popular que visa anular ato lesivo ao patrimônio público, à proteção do meio ambiente, à moralidade administrativa e ao patrimônio histórico e cultural. Assim como, no julgamento de competência do Tribunal do Júri, confere legitimidade a qualquer um do povo para decidir a causa que envolve os crimes dolosos contra a vida.

O homem, isoladamente, como diziam os romanos, omnia mea mecum porto, carrega consigo sua identidade social, seus direitos, virtudes e credos. Quando, porém, se junta a outros, quebra o lacre de sua individualidade e se incorpora do mesmo espírito coletivo, numa verdadeira coautoria compactuada em que todos, a uma só voz, com sorriso e confiança, repetem o mesmo refrão com a intenção de atingir os objetivos da nação.

"A multidão, proclamava Neruda, tem sido para mim a lição de minha vida. Posso chegar a ela com a inerente timidez do poeta, com o temor do tímido, mas - uma vez em seu seio - sinto-me transfigurado. Sou parte da maioria essencial, sou mais uma folha da grande árvore humana"

E, por incrível que pareça, nestas peregrinações cívicas, ordeiras, num verdadeiro espetáculo democrático, a repercussão é tamanha que consegue derrubar os ocupantes dos mais relevantes cargos da nação. Não como ato de revide, de vingança, mas como ato originário de soberania popular, do poder de decisão que reveste cada um de seus membros. "Sou do povo, nunca fui outra coisa, não quero ser outra coisa; já proclamava Robespierre, desprezo qualquer pessoa que tenha a pretensão de ser algo superior".

Longe da desobediência civil, em que se rejeita o cumprimento de uma determinação do poder público, ou de qualquer prática do direito de resistência, em que a comunidade enceta uma luta com a intenção de obter a prevalência dos direitos básicos não assegurados pelo Estado e nem mesmo contemplados em leis. Trata-se, na realidade, de um brado de alerta, sem armas e violência, de uma sinalização aos governantes que se desviaram do curso programado para buscar o bem estar de todos e, aí sim, por descumprirem o pacto firmado quando da votação popular, merecem o repúdio e o consequente desligamento de suas funções, sem prejuízo das ações civis e penais de responsabilização.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.

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