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A inconstitucionalidade do excesso interventivo-regulatório: o caso do seguro obrigatório DPVAT

Trata-se de atividade privada, e, portanto, como não poderia deixar de ser, sob o incentivo do lucro, materializado pela divisão proporcional do excedente entre as seguradoras participantes.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Atualizado em 13 de janeiro de 2017 12:00

Na operação inerente ao seguro DPVAT, o valor das indenizações são estipulados por lei (em sentido estrito) e o valor dos prêmios mediante norma regulatória de iniciativa do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP).1

Nesse sentido, metade do valor arrecadado (prêmio) é destinado ao Fundo Nacional da Saúde (FNS) e ao Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), respectivamente na proporção de 45% (quarenta e cinco por cento) e 5% (cinco por cento), sendo o valor restante destinado à sustentação do seguro obrigatório.

Ou seja, de maneira singular, a Seguradora Líder (responsável pela gestão do seguro obrigatório) conta apenas com a metade do valor arrecadado a título de prêmio, retornando a outra metade de forma imediata à sociedade, sob o viés do financiamento à saúde pública e de campanhas educacionais.

No que se refere à sua gestão, a Seguradora Líder é formada por um consórcio do qual participam 72 (setenta e duas) seguradoras, sendo que 56 (cinquenta e seis) destas como sócias.

Trata-se de atividade privada, e, portanto, como não poderia deixar de ser, sob o incentivo do lucro, materializado pela divisão proporcional do excedente entre as seguradoras participantes.

Na origem, o referido seguro era administrado de forma descentralizada, mediante a gestão individualizada das seguradoras participantes. Ocorre que, tal modelo se revelou ineficiente, impondo a sua alteração com a finalidade de concentrar a operação numa única entidade, já à época um consórcio, que acabou por evoluir ao atual modelo, formado por uma seguradora a liderar tal consórcio.

Para a economia, trata-se de um monopólio natural, que ocorre quando uma única empresa é capaz de ofertar, a um custo mais baixo do que fariam duas ou mais empresas, um bem ou serviço (dificilmente substituível) à totalidade de um determinado mercado e surge apenas "quando há economias de escala para toda a faixa relevante de produção". (MANKIW, 2009)

Conforme muito bem exposto por Krugman e Wells (2015):

"É certo que é uma boa ideia romper um monopólio que não seja natural: o ganho para os consumidores supera a perda para o produtor. Mas isso não está tão claro quando se trata de monopólio natural, aquele em que grandes produtores têm custos totais médios mais baixos do que os pequenos produtores, pois o desmembramento de um monopólio desses elevaria o custo total médio."

Na hipótese, a solução de política pública adotada foi a regulação, inclusive mediante o controle de preços, notoriamente mais eficiente do que a outra alternativa, qual seja, a estatização dessa atividade.

Em regra, o controle de preços impõe escassez, porém, no caso do monopolista natural, "mesmo forçado a cobrar um preço mais baixo - enquanto esse preço esteja acima do CM e o monopolista, no mínimo, esteja com o produto total em equilíbrio - ainda tem incentivo de produzir a quantidade demandada a esse preço." (KRUGMAN E WELLS, 2015).

O monopólio natural, na hipótese, deve ser incentivado por ser o meio mais eficiente para a continuidade dessa importe garantia, pois "as empresas entrantes em potencial sabem que não poderão atingir os mesmos baixos custos de que desfruta o monopolista porque, depois de entrar, cada um teria uma fatia menor do mercado" (MANKIW, 2009).

Verifica-se que haverá interesse do monopolista quanto ao atendimento da quantidade demandada se a receita marginal for superior ao custo marginal, numa relação de equilíbrio no binômio receita versus custo.

Nesse sentido, a recente resolução de iniciativa do CNSP2, que reduziu o valor dos prêmios do seguro DPVAT na proporção de 37% (trinta e sete por cento), visivelmente inviabiliza a continuidade do negócio, gerando um total desequilíbrio que, no curto prazo, repercutirá no desinteresse das seguradoras participantes.

Fato incontroverso, uma redução abrupta dos preços repercute de forma direta na receita, que, no caso em tela, passará a ser menor do que o custo, impondo déficit à operação e, por conseguinte, desincentivo às seguradoras que integram o consórcio.

Tal iniciativa do CNSP fere de forma clara o princípio da proporcionalidade, cuja consequência é a inconstitucionalidade da norma.

A regulação possui caráter excepcional e limites basilares da intervenção estatal, cuja inobservância é capaz de quebrar o lastro necessário ao afastamento do princípio da livre iniciativa.3

Sobre o princípio da proporcionalidade, expõe Lenza (2008):

"utilizado, de ordinário, para aferir a legitimidade das restrições de direitos - muito embora possa aplicar-se, também, pra dizer do equilíbrio na concessão de poderes, privilégios ou benefícios - , o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive de âmbito constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral de direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico".

Como se verifica, há excesso na regulação à medida que a abrupta redução imposta ao prêmio é manifestamente inviável sob o aspecto da manutenção da atividade, tornando natimorto o ato por violação ao citado princípio constitucional.

Nota-se que, numa economia inflacionária, fundada em custos crescentes, impõe-se um corte severo nas receitas das seguradoras e para o sistema de saúde pública, que, a priori, amagará perdas em torno de 1,5 Bilhão apenas em 2017.4

Ademais, também há repercussão em relação à legitimidade interventiva, pois a consequência direta do vício supramencionado é a quebra da livre iniciativa, capaz de ser afastada apenas quando há legitimidade à regulação.

Num exercício de direito comparado, valiosa a lição de Santos, Gonçalves e Marques (2014) para a definição do princípio em questão:

O direito de iniciativa privada "traduz a possibilidade de exercer uma atividade econômica privada, nomeadamente através da liberdade de criação de empresas e da sua gestão. Compreende a liberdade de investimento ou de acesso, a qual se traduz no direito de escolha da atividade econômica a desenvolver, a liberdade de organização, ou seja, a liberdade de determinação do modo como a atividade vai ser desenvolvida (incluindo a forma, qualidade e preço dos produtos ou serviços produzidos) e a liberdade de contratação ou liberdade negocial, que abrange a liberdade de estabelecer relações jurídicas e de fixar, por acordo, o seu conteúdo.

Outro aspecto que também deve ser levado em consideração é a eficiência5, imposta a todo e qualquer ato administrativo e entendida como "a procura de produtividade e economicidade e, o que é mais importante, a exigência de reduzir o desperdício de dinheiro público, o que impõe a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional". (CARVALHO FILHO, 2013)

Na sua vertente econômica, a eficiência é basilar a qualquer atividade, legitimadora da intervenção estatal e diretamente afeta ao bem estar.

A aversão ao risco presta-se de incentivo ao seguro no que se refere aos segurados e, quanto aos seguradores, o lucro é o que fomenta a assunção dos riscos. O seguro confere a segurança necessária à prática de atividades que, sem tal garantia, seriam consideradas muito arriscadas, sendo indispensável à atividade produtiva.

No caso do seguro obrigatório, ainda há o plus do risco de colapso sistêmico, materializado pelo desamparo às vítimas do trânsito e de todos os consectários socioeconômicos desta ausência.

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1. Lei 6.194/74

Art. 3o Os danos pessoais cobertos pelo seguro estabelecido no art. 2º desta lei compreendem as indenizações por morte, por invalidez permanente, total ou parcial, e por despesas de assistência médica e suplementares, nos valores e conforme as regras que se seguem, por pessoa vitimada: (Redação dada pela Lei nº 11.945, de 2009). (Produção de efeitos).


I - R$ 13.500,00 (treze mil e quinhentos reais) - no caso de morte; (Incluído pela Lei nº 11.482, de 2007)

II - até R$ 13.500,00 (treze mil e quinhentos reais) - no caso de invalidez permanente; e (Incluído pela Lei nº 11.482, de 2007)

III - até R$ 2.700,00 (dois mil e setecentos reais) - como reembolso à vítima - no caso de despesas de assistência médica e suplementares devidamente comprovadas.

Art . 12. O Conselho Nacional de Seguros Privados expedirá normas disciplinadoras e tarifas que atendam ao disposto nesta lei.

§ 1º O Conselho Nacional de Trânsito implantará e fiscalizará as medidas de sua competência, garantidoras do não licenciamento e não licenciamento e não circulação de veículos automotores de vias terrestres, em via pública ou fora dela, a descoberto do seguro previsto nesta lei.

§ 2ºPara efeito do parágrafo anterior, o Conselho Nacional de Trânsito expedirá normas para o vencimento do seguro coincidir com o do IPVA, arquivando-se cópia do bilhete ou apólice no prontuário respectivo, bem como fazer constar no registro de ocorrências nome, qualificação, endereço residencial e profissional completos do proprietário do veículo, além do nome da seguradora, número e vencimento do bilhete ou apólice de seguro.

§ 3º O CNSP estabelecerá anualmente o valor correspondente ao custo da emissão e da cobrança da apólice ou do bilhete do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por veículos automotores de vias terrestres.
§ 4o O disposto no parágrafo único do art. 27 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, não se aplica ao produto da arrecadação do ressarcimento do custo descrito no § 3o deste artigo.

2. Resolução CNSP 342, de 19/12/2016

3. CRFB/88. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

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5. CRFB/88. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional 19, de 1998)

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12 ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008

MANKIW, N. Gregory. Princípios de Microeconomia. São Paulo. Cengage Learning, 2009.

AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: Do Direito Nacional ao Direito Supranacional. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

KRUGMAN, Paul; WELLS, Robin. Microeconomia: Uma abordagem moderna. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

SANTOS, Antonio Carlos dos; GONÇALVES, Maria Eduarda; MARQUES, Maria Manuel Leitão. Direito Económico. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2014.

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*Leonardo d`Almeida Girão é sócio do escritório Bastos-Tigre, Coelho da Rocha e Lopes Advogados.


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