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Crise no sistema penitenciário e o Panóptico, por Eudes Quintino

Crise no sistema penitenciário e o Panóptico

Não há necessidade de se buscar um sistema prisional perfeito. Basta seguir os conselhos que há muitos anos vêm sendo reiterados aos governantes: o Estado tem que voltar os olhos para a educação do povo.

domingo, 15 de janeiro de 2017

Atualizado em 13 de janeiro de 2017 13:05

A crise no sistema penitenciário brasileiro inaugurou solenemente o ano de 2017, expondo as fragilidades que vinham se acumulando há muito tempo e que eclodiu, até tardiamente no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), em Manaus. Basta ver agora, na recolha dos escombros, que a situação já era insustentável e ainda pode acarretar um verdadeiro efeito dominó, envolvendo várias outras comunidades penitenciárias. Até o presente é significativo o número de presos decapitados, esquartejados e carbonizados, pela utilização de grande estoque de armas brancas e outras de alto calibre, além dos que se aproveitaram da rebelião para empreender fuga. Sem falar ainda das transferências de alguns que se encontram ameaçados de morte e das determinações para que os detentos em regime semiaberto permanecessem em suas casas a partir das 20h.

Instaurou-se definitivamente um verdadeiro caos no sistema penitenciário, fazendo com que as autoridades de vários poderes se reunissem, em situação de emergência, para tomar as providências cautelares adequadas para tentar conter outras rebeliões ou assumir o controle das atividades internas dos presídios.

A realidade carcerária, no âmbito de uma interpretação objetiva, dá a entender que não se afina unicamente com o excesso de reclusos cumprindo penas em minúsculas celas e sim um envolvimento maior com grupos que exercem lideranças no sistema prisional do país, articulando ações internas e externas, com total liberdade.

As fronteiras do crime ultrapassaram os limites territoriais já conquistados e demarcados extra muros e agora, num avanço programado, invadem o sistema prisional onde recrutam fiéis seguidores prontos para cumprirem as ações intra muros, determinadas pelo grupo com a finalidade de fincarem de forma definitiva a bandeira de sua facção. Este novo perfil de violência faz com que o presídio se torne palco de uma guerra entre grupos antagônicos que buscam o poder de mando, com imediata repercussão na vida do país, que a tudo assiste de uma forma atônita e sem poder de reação imediata, a não ser a promessa de construção de novos pavimentos penitenciários.

Basta ver que não ocorreu violência entre detentos e policiais ou agentes encarregados da segurança interna do presídio e sim um levante entre os próprios presos, em razão das facções divergentes, cumprindo ordens de execuções anunciadas.

Nesta lamentável situação, os objetivos descritos na lei de Execução Penal (lei 7.210/84), que traz dispositivos salutares para a efetivação da decisão judicial e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado, não são atingidos e ficam totalmente excluídos em razão até mesmo da falência do sistema, já ultrapassado.

É inconteste o crescimento da população carcerária, reflexo do alto índice de criminalidade que assola o país, que a erigiu à categoria de problema científico, porém, até o presente, os métodos apresentados para solucioná-la foram frustrados. Segundo o CNJ, cerca de 240 mil presos, quase 40% do total, são provisórios, aguardando ainda uma decisão, que pode até ser absolutória. Assim, mesclam-se os segregados temporários com os condenados definitivos, possibilitando a comunicação entre o furtador e o traficante contumaz e até mesmo, como constatado, a presença de devedor de pensão alimentícia, sem qualquer mácula penal.

Também colaborou muito para o inchaço do sistema penitenciário, a recente decisão proferida pela maioria dos ministros do STF dando nova formatação à prisão, permitindo-a após a confirmação da sentença condenatória em julgamento de segunda instância, sem a necessidade de se aguardar eventual recurso interposto pelo sentenciado. Tal decisão modifica postura anterior do mesmo Tribunal que considerava que a sentença só seria considerada definitiva depois de esgotados todos os meios recursais. Mas se tal fato, por si só, foi eficiente em termos de resposta social, carrega um fardo maior ainda, pois irá levar à prisão outra população carcerária idêntica ou maior que a atual, cujo sistema já se encontra saturado há muito tempo.

Recomenda-se, emergencialmente, a realização de mutirões em todos os estabelecimentos penitenciários e cadeias públicas visando agilizar as decisões das Varas das Execuções Penais, para conceder benefícios aos segregados que realmente preenchem os requisitos legais. A manutenção de uma prisão abusiva acarretará maiores prejuízos ao Estado. Não se resolve a crise carcerária no Brasil com uma canetada simplesmente e sim com políticas públicas consistentes e discutidas em conjunto com a sociedade.

Jeremy Bentham, filósofo do século XVIII, idealizou um projeto de construção carcerária, consistente em um edifício circular, em que os prisioneiros ocupavam as celas, todas devidamente separadas, sem qualquer comunicação entre elas, sendo que os agentes de segurança ocupavam um espaço no centro, com perfeita visão de cada alojamento. Segundo seu projeto descrito no livro "O Panóptico", os presos teriam bom comportamento, justamente por se sentirem continuadamente observados, pela aplicação do princípio da inspeção.

Mas, na realidade, não há necessidade de se buscar um sistema prisional perfeito, com segurança máxima de fazer inveja ao país mais avançado do mundo, como pretendia o filósofo utilitarista. Basta seguir os conselhos que há muitos anos vêm sendo reiterados aos governantes: o Estado tem que voltar os olhos para a educação do povo. Não se exige um manual prêt-à-porter, mas uma construção paulatina e sólida, abrangendo a educação no lar, de responsabilidade dos pais e sequencialmente nas escolas, por conta dos educadores, sempre repassando para as crianças e jovens os preceitos mais básicos da ética da convivência e respeito mútuo, traçados por políticas públicas responsáveis e exequíveis de acordo com a realidade do país. E não brandir ao vento um arsenal de boas intenções com medidas simplistas e paliativas. A educação, desta forma, passa a ser praticada com o comprometimento público de uma nação que pretende extirpar os males amontoados pela omissão de muitos anos e pretende projetar um futuro com confiança, com a formação de homens que cultivam o trabalho, a honestidade e a convivência harmônica. "Uma comunidade de homens e mulheres, anunciava com esperança Russell, dotados de vitalidade, coragem, sensibilidades e inteligência, no mais alto grau que a educação pudesse produzir, seria muito diferente de tudo que já existiu. Pouquíssimas pessoas seriam infelizes".1

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1. Russell, Bertrand. Sobre a educação. Tradução Renato Prelorentzou. Editora Unesp, 2014, p. 65

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP. Mestre em direito público e pós-doutorado em ciências da saúde. Reitor da Unorp e Advogado.

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