MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. Habilitação de crédito em Recuperação Judicial não é meramente declaratória

Habilitação de crédito em Recuperação Judicial não é meramente declaratória

Raul Cézar de Albuquerque

Não se disfarça que a declaratividade prepondera no feito habilitatório, uma vez que, na expressão legal (vide art. 7º da lei 11.101/05), destina-se a verificar e fazer certa a relação obrigacional entre o devedor e credor habilitante, declarando, ao fim, o valor, a natureza e a classificação do crédito.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Atualizado às 10:05

Há muito tempo ecoa pelos salões da jurisprudência nacional um jargão, um mantra, que merece urgente revisão: "a sentença que julga habilitação de crédito é de natureza meramente declaratória." (v.g., REsp 827.288/RO; AgRg no AREsp 481.106/SP; REsp 1.098.069/SP; REsp 699.782/SP; AgRg no REsp 1.062.884/SC)

É verdade que o tema dos conteúdos, forças e eficácias das sentenças ainda enfrenta diversos óbices à sua melhor compreensão no panorama doutrinário brasileiro. No entanto, mesmo nesse campo de aparente incerteza, é possível propor algumas revisões ao questionado jargão a partir de premissas bem assentadas pela processualística clássica.

Primeiro, há que se questionar a possibilidade de existência de uma sentença de natureza meramente declaratória. Muito embora seja expressão repetida por parcela (incluso, prestigiada) da doutrina, é importante relembrar a lição de Pontes de Miranda, que já ressaltava o "grave erro de não se reconhecer o peso imediato e o peso mediato das ações declarativas."

Em seu Tratado das ações, Pontes de Miranda destaca que não há sentença pura, uma vez que todo provimento judicial, em maior ou menor medida, declara, constitui, condena, manda e executa, simultaneamente. Embora não possamos aderir ao rigor matemático do alagoano - que erigiu a "Teoria da Constante Quinze" -, é inafastável a contribuição ponteana ao estudo das cargas eficácias das sentenças, a saber, o reconhecimento da "natureza compósita das realidades."

Nesse contexto, deve ser evitada a referência a sentenças meramente declaratórias, vez que, de regra, serão preponderantemente declaratórias, com outras cargas menores de condenatoriedade e constitutividade, por exemplo.

O próprio Superior Tribunal de Justiça, pela lavra do min. Teori Albino Zavascki, reconheceu, certa feita, a eficácia executiva das sentenças declaratórias (vide REsp 614.577/SC), aduzindo que, sem embargo da declaratividade estampada, tais decisões ocultam um caráter de executividade.

Não se disfarça que a declaratividade prepondera no feito habilitatório, uma vez que, na expressão legal (vide art. 7º da Lei 11.101/05), destina-se a verificar e fazer certa a relação obrigacional entre o devedor e credor habilitante, declarando, ao fim, o valor, a natureza e a classificação do crédito.

Escapa ao mantra questionado o fato de que, muita vez, para tornar certa a classificação do crédito, o juiz tem de se manifestar sobre a validade de garantias, não raro anulando-as ou nulificando-as. E, aí, como ditou a lição ponteana, "a ação concernente à invalidade é ação constitutiva negativa, em que se postula ser nulo ou anulável o ato jurídico, e não se confunde de modo nenhum com a ação declarativa."

Assim, a sentença que julga habilitação de crédito em que se questionou, por exemplo, a validade de uma alienação fiduciária, além de declarar, também constitui ou desconstitui; meramente declaratória tal decisão não é.

O exemplo não passa de provocação, desvela a clara impropriedade e a claudicância do jargão jurisprudencial. Na verdade, independente de manifestação sobre validade de garantias, desconhece-se sentença habilitatória que não desborde os limites da mera declaração.

Tavares Guerreiro bem anota o crédito habilitado - isto é, sagrado pelo feito habilitatório - torna-se "admitido no concurso e, como tal, suscetível de ser satisfeito, na proporção e nos termos que vierem a ser estabelecidos ao cabo do procedimento."

Desse ponto, já se colhe que a sentença que julga a habilitação de crédito declara, sim, mas declara enquanto constitui uma nova situação jurídica para a relação obrigacional carreada a juízo - isto porque, note-se, "a constitutividade muda, em algum ponto, por mínimo que seja, o mundo jurídico."

Isto é, no contexto peculiar da Recuperação Judicial, a sentença habilitatória declara - porque torna certa a relação questionada - e constitui - porquanto inaugura um novo plexo normativo sobre o crédito habilitado, que se submeterá aos ditames do Plano de Recuperação Judicial (vide art. 59 da Lei 11.101/05).

Deveras, ainda no Tratado das ações, Pontes de Miranda chama a atenção à carga eficacial de condenatoriedade que marca a sentença que julga o feito habilitatório , isto assim porque a decisão declara o crédito, constitui-lhe a situação jurídica de habilitado e, por conseguinte, condena o devedor a solver o débito - relembrando que "condenar é ordenar que sofra", ordenar que pague.

E, a essa altura, já não é necessário descer às minúcias da mandamentalidade e da executividade para perceber que a sentença que julga a habilitação de crédito não é meramente declaratória.

Na verdade, pela análise dos precedentes do STJ que firmaram e perpetuaram o jargão (mais recentemente, cf. AgRg no AREsp 481.106/SP), flagra-se que o dizer foi construído para fundamentar a fixação dos honorários advocatícios em sede de habilitação de crédito controvertida com base na equidade, alegando não surgir, da sentença declaratória, qualquer proveito econômico.

O que parece escapar aos óculos da jurisprudência nacional é o fato de que, de determinada sentença ter caráter preponderantemente declaratório, não se segue que dela não exsurja proveito econômico ao vencedor.

Um exemplo pode elucidar o dito: suponha-se que foi movida uma ação de execução e, em defesa, o executado tenha alegado a prescrição do crédito pleiteado; a sentença que reconhece a prescrição será de índole preponderantemente declaratória e, ainda assim, nesse caso, aplicar-se-á o entendimento do próprio Superior Tribunal de Justiça pelo qual o reconhecimento de prescrição em tal sede "dá ensejo à condenação na verba honorária proporcional à parte excluída do feito executivo." (vide AgRg no REsp 1.085.980/SC)

Nesse enleio, e como o texto já não pode se delongar tanto, cabe arrematar que o mantra "a sentença que julga habilitação de crédito é de natureza meramente declaratória" não deve continuar sendo repetido indiscriminadamente; em verdade, a sentença habilitatória declara, constitui, condena, manda e executa, simultaneamente, porém em proporções peculiares.

Ademais, de determinada decisão ter caráter preponderantemente declaratório, não se conclui, ipso facto, que não gere proveito econômico; isto assim, porque ninguém discute - e o próprio STJ reconhece - que a sentença que declara a prescrição de crédito executado, muito embora declaratória, faz surgir o (inegável) proveito de não ter de pagar.

____________

*Raul Cézar de Albuquerque é acadêmico de Direito pela UFPE e membro-fundador do Grupo de Estudos de Processo Civil da Faculdade de Direito do Recife (GEPro-FDR).

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca