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Paixão, encenação, sedução, mansidão e serenidade no processo arbitral

O discurso de Bobbio sobre a serenidade provocou a lembrança de outros sentimentos que com ela não combinam, isto é, a paixão, a encenação e a sedução.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Atualizado em 17 de fevereiro de 2017 09:42

Relendo o sempre atual Norberto Bobbio em sua pequena, mas riquíssima obra "O Elogio da Serenidade", passou-me pela cabeça procurar fazer uma aplicação do texto ao processo arbitral, tentando realizar um casamento daquela com outras obras da literatura universal. O discurso de Bobbio sobre a serenidade provocou a lembrança de outros sentimentos que com ela não combinam, isto é, a paixão, a encenação e a sedução. Vamos ver se ao menos passei perto do meu objetivo.

Primeiro, a paixão. Na minha versão do Aurélio, um tanto cansada, a paixão é descrita como um "sentimento ou emoção levado a alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão". Ora, a paixão pelas suas características não é um sentimento aceitável em relação a advogados, árbitros e até mesmo partes em um processo arbitral. Advogados e árbitros podem perder o seu equilíbrio e as partes ficam suscetíveis de tomarem atitudes impensadas por sua própria iniciativa e arruinar a sua posição no caso.

A paixão é velha conhecida da literatura, sendo famoso o exemplo de Otelo, o Mouro de Veneza, personagem de conhecidíssima peça de Shakespeare. Aquele sentimento que o tomou originou-se do ciúme mórbido do marido em relação à sua esposa. Ou seja, o ciúme, na qualidade de um tipo de amor exacerbado e doentio, leva frequentemente a uma paixão destruidora, tal como aconteceu com Otelo. Outras vezes o desastre conduz a rumos diferentes, tal como também aconteceu com personagens da obra "Amor de Perdição", de Camilo Castelo Branco, que eu conheci na biblioteca de romances de uma tia, lá pelos fins de 1950 (tempus fugit mesmo). Nesses casos a paixão causou a morte de várias pessoas, perdidas em sua manifestação cega.

Em obra famosa Emilio Mira Y Lopes relacionou quatro "gigantes da alma": o amor, o medo, a ira e o dever. Eles são capazes de assumir um caráter monstruoso, manipulando a seu bel prazer quem não aprende a dominá-los. Uma paixão destruidora leva frequentemente à ira, com todas as consequências maléficas que ela pode produzir, pois é sentimento dificilmente controlado.

Muitas vezes nos tribunais arbitrais a paixão se manifesta em audiências, levando a embates pesados entre os advogados das partes e os membros do Tribunal Arbitral, resultando muitas vezes na perda da imparcialidade dos árbitros e o seu afastamento do caso, resultando perda na sua eficiência e celeridade. Não sejamos inocentes, algumas vezes a paixão dos árbitros e dos advogados de uma parte pode ser provocada maquiavelicamente por qualquer daqueles e, neste caso, pelo menos do lado do responsável por esse plano, passamos para o campo da encenação teatral. No fundo os grandes atores são perfeitos embusteiros, pois quase inteiramente se transformam no personagem que vestem durante a sua performance. O ator não se transmuda verdadeiramente na pessoa cuja identidade assume, mas quando tem alta qualidade de representação, é como se vivesse a vida do representado. Daí o perigo que criam quando se trata de alguma performance praticada na vida real.

Enfatizemos. No teatro ou no cinema um bom ator é capaz de se revestir tão intensamente do personagem, que parece literalmente o haver incorporado, agindo de maneira tão natural e convincente que custa acreditar não tratar-se a sua fala e a sua expressão de apenas um papel que está sendo momentaneamente exercido. Na arbitragem nada contra, na medida em que uma encenação de indignação ou de raiva, por exemplo, adotada pelo defensor de uma parte no processo arbitral não exceda os mínimos limites de lhaneza e educação que deve ali se manifestar, principalmente porque em arbitragens os participantes se tornam muito mais próximos um do outro do que nos processos judiciais. Uma coisa é ênfase, outra muito diferente é a violência verbal.

Há um remédio muito eficaz contra a encenação: o fair play, que leva a pessoa provocada a não cair na armadilha que lhe foi preparada, cabendo ao tribunal arbitral, se este é o caso, "botar ordem na casa", uma vez presente tanto a paixão quanto a encenação. Em tempos antigos falava-se de ouvidos de mercador, ou seja, "podem pedir o tempo desejarem que eu reduza o meu preço, não estou nem prestando atenção".

Pensemos agora na sedução. Mais uma vez o Aurélio nos ensina que o verbo seduzir significa "inclinar (alguém) artificiosamente para o mal ou para o erro". Também apresenta o sentido de desencaminhar. Quase sempre o efeito da sedução é devastador para o seduzido. Que o diga Julio César, que se engraçou perdidamente por Cleópatra (e vice-versa, pois o fim de ambos foi trágico). Mas antes desse casal nos lembremos do príncipe Páris, sedutor de Helena de Tróia, fato lendário (ou verdadeiro?) da Guerra de Tróia. A Capitu de Machado de Assis pode perfeitamente participar da galeria das grandes sedutoras, sem qualquer menosprezo. Podemos acrescentar no rol dos sedutores o infame Primo Basílio, de Eça de Queiroz, o qual tantos problemas acarretou à sua amante Luísa. Seu infame caráter foi plenamente revelado quando, ao saber da morte de Luísa, sobre o fato fez a respeito um comentário ultrajante.

Ora, o papel do advogado na defesa do seu cliente não é o de seduzir o julgador, mas o de convencê-lo a respeito da verdade, dos fatos e do direito que apresenta no processo. Mesmo que se trate de arbitragem por equidade, não pode o árbitro ser levado psicologicamente mediante processo de sedução a inclinar-se em favor de uma parte ou de outra. Sobre a equidade e como opera na arbitragem já nos manifestamos neste "Migalhas" no texto "Arbitragem por equidade: por que temos medo dela - Breve análise no campo dos contratos incompletos", 18.05.2016. (Clique aqui)

Finalmente tratemos da serenidade, o espírito que verdadeiramente deve conduzir os participantes de uma arbitragem ao longo do processo, na oitiva das partes, no exame dos fatos e dos documentos, no estudo da lei e na formação do seu convencimento dos árbitros.

No opúsculo citado Bobbio diferencia a serenidade da mansuetude. "O manso é o homem calmo, tranquilo, que não se ofende por pouca coisa, que vive e deixa viver, que não reage à maldade gratuita, não por fraqueza, mas por aceitação consciente do mal cotidiano. A serenidade é, ao contrário, uma disposição de espírito que somente resplandece na presença do outro; o sereno é o homem de que o outro necessita para vencer o mal dentro de si1". Como a arbitragem pertence ao campo do contrato, há uma relação mútua entre as partes, que deve refletir-se em termos de lealdade e de busca da verdade quanto aos advogados e aos árbitros.

Mas o desenvolvimento do tema da serenidade aplicada ao direito (precisamente o que nos interessa) foi inspirado em Bobbio a partir de um livro de Gustavo Zagrebelsky, "Il diritto mitte". Não tive oportunidade de lê-lo ainda, mas, do meu lado, busquei elementos no nosso próprio filósofo, a partir de uma recensão ("riassunto") que ele mesmo escreveu sob o título "Dela mitezza e dele leggi", no "L'Índice dei Libri del Mese", março de 1993, ano 3, pg. 5.

Em seu comentário Bobbio reconheceu que não existiam à época muitos precedentes sobre o caráter jurídico da serenidade ("mittezza"), afirmando que talvez não existisse qualquer um. Simplificando e reduzindo muito os argumentos apresentados, percebemos que para aquele então comentarista a moderação e a serenidade não teriam se tornado em si mesmas um caráter do direito, mas teriam continuado como essencialmente elementos da aplicação do direito, observando que em um ordenamento jurídico complexo, além das normas legais encontram-se os princípios inscritos na constituição. Assim sendo, serenidade e moderação consistiriam ainda virtudes do intérprete ou do jurista.

Dando como exemplo a serenidade constitucional, Bobbio observa que ela se caracteriza pela convivência da pluralidade de valores que as Constituições agasalham, por meio de uma obra de equilíbrio e compromisso. Segundo podemos aplicar a partir de um ponto de vista mais amplo, a convivência serena teria sido um objetivo da formação da União Europeia (atualmente, frente aos fatos políticos atuais, perto de um xeque-mate). Mas Bobbio afirma que o direito intransigente também se apresenta como uma virtude. Isto porque, a nosso ver, a norma jurídica não pode ser flexionada ao sabor da vontade do intérprete, mas ela deve ser aplicada tal como foi posta pelo legislador.

Quando se pensa na serenidade como elemento direcionador da atitude dos árbitros, partes e advogados em arbitragens, além do aspecto positivo de sua conceituação conclui-se mais claramente como tal procedimento deve se dar quando examinamos, segundo Bobbio, o seu lado negativo, constituído pela arrogância, insolência e prepotência.

Em suma, mesmo não nos colocando como "pollyanas jurídicas", para quem seria possível construir um mundo totalmente harmonioso na condução de um processo arbitral (que em si mesmo apresenta o germe inefável de uma discórdia), é viável que ele se dê dentro de um ambiente sereno, ausentes paixões ou meras encenações teatrais Desta maneira, poderá ser alcançado o melhor resultado, no tempo mais breve possível e no menor custo para as partes.

Lembremo-nos de Agostinho em um trecho de suas "Confissões", que pode considerado uma expressão da serenidade: "conversar, rir, prestar obséquios com amabilidade uns aos outros, ler em comum livros deleitosos, gracejar, honrar-se mutuamente, discordar em tempos sem ódio como cada um consigo mesmo, e, por meio dessa discórdia raríssima, afirmar a contínua harmonia, ensinar ou aprender reciprocamente qualquer coisa, ter saudade dos ausentes e receber com alegra os recém-vindos"2. Quem assim se expressou a respeito de si mesmo era o jovem Agostinho, ainda não convertido, mas que mesmo assim era possuidor de sentimentos elevados, os mesmos que podemos exercer nos processos arbitrais, discordando sem ódio e por meio dessa discórdia, aprender reciprocamente qualquer coisa.
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1. Ob. cit., p. 35.


2. Confissões, IV.8.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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