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A privatização das empresas públicas depois da lei das estatais e da Lava Jato pode ser evitada?

A Operação Lava Jato e a lei das estatais apontam um caminho estreito e seguro para a geração de riqueza da dignidade humana brasileira, insculpida na Constituição.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Atualizado em 20 de fevereiro de 2017 10:30

O Estado intervém na economia do país com o único propósito de "assegurar a existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social".

Além disso, a intervenção direta do Estado, através das empresas públicas ou das sociedades de economia mista, só será admitida "quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo".

São pressupostos severos e substantivos, mas o Estado não pode deixar de usar a mão forte para a sua própria segurança e para restabelecer o equilíbrio social. Neste último caso, ele deve ficar, principalmente, atento à função social da propriedade, à defesa do consumidor, à redução das desigualdades regionais e sociais e à busca do pleno emprego.

Todos esses princípios surgiram na Constituição de 1934, por influência da Constituição de Weimar de 1919. Eis aí a nova ordem econômica; regime capitalista, sim, mas, sob a vigilância e intervenção do Estado.

Portanto, não por mero acaso, Betinho cunhou a feliz expressão "empresa cidadã".

Assim, as empresas públicas não existem para ganhar dinheiro, ou para distribuir dividendos aos seus acionistas, todavia, precisam, sim, do lucro e de pujança, mas para dar sentido à sua existência e capacidade para cumprir suas obrigações sociais.

O Estado intervém na ordem econômica para restabelecer o equilíbrio da dignidade plural.

Infelizmente, no Brasil, as empresas públicas e as sociedades de economia mista se transformaram em espaços destinados à barganha política. As estatais são usadas pelo governo de ocasião para obter apoio político e para vencer eleições. Os cargos da administração, quase sempre, são ocupados por indicações dos partidos aliados do governo da hora e que reivindicam o compartilhamento do poder. Nada demais. Essa prática é usada em todas as partes do mundo. Nada obstante, não, como aqui, com a absoluta falta de comprometimento social dos indicados, além da indigência técnica. Nesse caso, o administrador deve, acima de tudo, ser agradecido a seu padrinho político e buscar meios para sempre favorece-lo depois de abençoado. Isso, quando não se lança, com grande galhardia, na mais explosiva patifaria em benefício próprio e de muitos outros.

Mas a lei das Estatais e a operação Lava Jato abriram as portas e as janelas das empresas e a luz do sol mostrou uma silhueta possível de esperança.

Na verdade, a lei das estatais colocou freios, amarras e tantas algemas nos eventuais candidatos a administradores dessas empresas que será difícil encontra-los dando sopa no mercado.

Desde logo, necessitam ser cidadãos de reputação ilibada e de notório conhecimento, com experiência profissional mínima de dez anos na área de atuação da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou em área conexa àquela para a qual foram indicados em função de direção superior. Mais. Precisam ter ocupado, pelo período de pelo menos quatro anos, cargo de direção ou de chefia superior em empresa de porte semelhante, ou outros cargos ainda de maior complexidade intelectual, ter formação acadêmica compatível, e não se enquadrar nas inúmeras hipóteses de inelegibilidade etc.

Não é só. Faltam mencionar as vedações, mas é preciso poupar o leitor. Toda a possível suspeita (basta o cheiro) de conflito de interesses, de qualquer natureza, é motivo para barrar o indicado a exercer o cargo de administrador. Quem estiver, realmente, interessado, sugere-se a leitura dos artigos 17 e incisos do parágrafo 1º do artigo 22 da lei 13.303/16, como também os artigos pertinentes da lei 6.404/76.

O ministro Luís Roberto Barroso afirmou que o "Mensalão" era um ponto fora da curva na história do STF. De fato, a operação Lava Jato é um ponto fora da curva na história do Brasil.

Hoje em dia, muitos empresários, políticos, funcionários públicos, cidadãos em geral não ousam sequer fazer o que de direito lhes cabe. O medo se encarregou de lhes corrigir a postura. É pena, essa correção é trabalho recorrente de uma vida, não pelo vislumbre das grades e, sim, pela construção cotidiana do caráter virtuoso.

Paciência, por bem ou por mal, as pessoas hoje se obrigam a refletir, muito bem, antes de praticar o muito mal.

Por outro lado, a lei das Estatais cumpre outro papel saneador; a adoção, sem surpresas, do rumo das empresas no decurso do tempo.

O artigo oitavo impõe "a elaboração de uma carta anual, subscrita pelos membros do Conselho de Administração, com a explicitação dos compromissos de consecução de objetivos de políticas públicas pela empresa pública , pela sociedade de economia mista e por suas subsidiárias, em atendimento ao interesse coletivo ou ao imperativo de segurança nacional que justificou a autorização para suas respectivas criações, com definição clara dos recursos a serem empregados para esse fim, bem como dos impactos econômico-financeiros da consecução desses objetivos , mensuráveis por meio de indicadores objetivos".

O artigo tem amplitude mastodôntica, mas tem o mérito de cercar por todos os lados os propósitos da empresa e os meios para alcança-los. Por mais distante que esteja o oásis, é obrigação da empresa persegui-lo, mas deixando claro a mais não poder os recursos de que dispõe para a travessia do deserto, de tal forma que não vá à garra no meio do caminho. Nada pode ser mais danoso e triste do que a morte da empresa pública próspera por mera falta de planejamento elementar e análise de riscos. Os acionistas perdem, os empregados viram fantasmas de si mesmos e a sociedade fica ainda mais desigual e miserável.

Talvez, por isso, a preocupação do legislador tenha sido tão enfática a ponto de determinar que a diretoria da empresa pública se veja compelida a traçar uma "estratégia de longo prazo atualizada com análise de riscos e oportunidades para, no mínimo, os próximos cinco anos".

Realmente, a legislação atual criou exigências, impôs condições, reivindicou cuidados para as empresas públicas que só contingências imprevisíveis poderão impedi-las de cumprir os seus objetivos com o alinhamento das políticas sociais. Como será possível o malogro da estatal que cumpre todos preceitos legais? (eficiência, idoneidade, profissionalismo dos administradores, o meticuloso planejamento para o alcance de metas responsáveis, previsão de recursos etc).

Parece que apenas um risco sombrio paira sobre a cabeça das empresas públicas: o voluntarismo do acionista controlador, a sua eventual onipotência ou, mesmo, o deliberado desejo de usar a companhia para atender a propósitos pessoais, às vezes, inconfessáveis.

Há que se reconhecer: mesmo com a atual legislação, será possível ao acionista controlador determinar, travestido de cordeiro, às empresas públicas a adoção de medidas deletérias e prejudiciais à sua gestão. A edição da MP 579/12 (a prorrogação das concessões das usinas de energia elétrica em troca do corpo e alma das empresas estatais de energia) é um exemplo emblemático da ação perversa do acionista controlador. A Eletrobrás e suas subsidiárias, orgulho de um país outrora em ascensão, sucumbiram à manifestação vaidosa e prepotente de um governo ansioso por votos e glória. Atualmente, são tigres de papel, apenas uma triste lembrança. A Petrobrás foi ainda mais castigada, e hoje lambe as feridas e quebra os espelhos ao seu redor para não encarar a face da própria debilidade.

As empresas públicas, quando nascem, e mesmo depois de envelhecidas, jamais atinam com a própria identidade. Eis que a lei das Sociedades Anônimas, desde 1976, abre para elas uma conduta excepcional no seu artigo 238, hoje firmemente convalidada na lei das estatais. O antigo diploma dispõe que "a pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista tem os mesmos deveres e responsabilidades do acionista controlador (arts 116, 117), mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação".

Isso é maravilhoso, mas também pode ser uma maldição para o mercado financeiro. As sociedades anônimas devem ser sólidas, saudáveis e generosas com seus acionistas, justas com os empregados e responsáveis com a sociedade na qual atuam, e até estão aptas a praticar pequenas bondades. A prioridade das sociedades públicas tem natureza constitucional: assegurar existência digna para todos. Isso significa olhar primeiro para a sociedade, depois para os empregados e, por fim, para os acionistas. Não pode praticar pequenas bondades para uns em detrimento de outros. A cada passo, e para tudo, submete-se a um certame. Como será possível conciliar esses deveres com a distribuição de dividendos? Como atender às demandas do mercado de valores por maiores lucros e ser justa com a sociedade carente? Como encontrar esse ponto de equilíbrio?

A Operação Lava Jato e a lei das estatais apontam um caminho estreito e seguro para a geração de riqueza da dignidade humana brasileira, insculpida na CF. Agora, para a empresa pública permanecer cumprindo seus deveres sociais, ter êxito na gestão e preservar a grandeza, apesar dos seus desafios, será suficiente o acionista controlador afastar de si o viés do populismo, ou o do mercado.
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*Franscisco de Assis Chagas de Mello e Silva é advogado no escritório Candido de Oliveira - Advogados.

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