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Minha mãe e o engraxate

Em momento algum ouvi depreciações ácidas, ofensas premeditadas, intrigas, como atualmente se tornou algo comum mesmo entre pessoas que mal se conhecem. Havia respeito, não havia redes sociais.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Atualizado em 21 de março de 2017 17:15

A Vila Mariana, especificamente lá para os lados da rua Cubatão, mais especificamente ainda o trecho entre as ruas Tomaz Carvalhal e José Antônio Coelho, na minha infância e juventude era o nosso reino o começo e o fim dos espaços geográficos que nos interessavam.

É verdade que outros sítios eram frequentados, mais como extensão daquele. Aliás, um deles era literalmente um sítio, na verdade uma chácara em Diadema, de meu avô, para onde íamos com frequência.

O Pacaembu, o Centro de São Paulo, seus cinemas e bares, alguns outros revisitados esporadicamente compunham o mapa dos locais ocupados pela nossa gloriosa Turma Stella. Aliás, a rua Stella, esta sim, era o nosso quartel general, o nosso habitat de raiz. O resto era extensão da Stella, a grande Stella.

Pois bem, pode-se imaginar a quantidade de histórias, aventuras, casos, eventos, curiosidades, ligadas a um excepcional e maravilhoso relacionamento humano. Não se pense que o "maravilhoso" afastava contratempos, discórdias pequenas rivalidades. Não, estavam presentes, mas eram sempre fruto de algumas mazelas e características próprias do homem, mas jamais tinham como razão de ser o ódio, a inveja, o desejo do mal ao próximo e outros defeitos que compõe as misérias da condição humana, hoje mais bem acentuadas.

Em momento algum ouvi depreciações ácidas, ofensas premeditadas, intrigas, como atualmente se tornou algo comum mesmo entre pessoas que mal se conhecem. Havia respeito, não havia redes sociais.

Um exemplo desta saudosa convivência que imperava no nosso reino nos é dado pela amizade que entre minha mãe e o engraxate do salão Capri, localizado entre Stella e Eça de Queiroz.

Minha mãe dentre outros inúmeros afazeres e atividades era a responsável por manter os nossos sapatos em ordem. José Eduardo e eu tínhamos que estar impecáveis, absolutamente impecáveis. Dizem que quando íamos ao centro da cidade, os meus trajes, que incluíam uma gravata borboleta, eram de cor branca, dos pés à cabeça.

Durante anos minha mãe era quem levava os nossos calçados para serem engraxados. Por tal razão ficaram amigos.

Esta amizade e a sua condição de freguesa fiel e constante, autorizavam mamãe a pedir, com frequência, um favor ao engraxate.

O favor consistia na compra, nos bares da redondeza, de sardinha frita e de torresmo.

Quem frequentava bares, bares não, botecos e botequins sabem que eu me refiro àquelas sardinhas que eram fritas em óleo de duvidosa qualidade e a torremos pururucas com abundância de gordura.

A compra dessas iguarias se dava na hora do almoço, ou próximo a ele, quando os botecos estavam lotados de frequentadores. Talvez este fato, ou algum preconceito da época em relação às mulheres frequentarem certos lugares, levavam Dona Carmem Lúcia a se socorrer do amigo engraxate.

É obvio que ela dividia com ele as guloseimas, hoje consideradas inadequadas para a saúde. Por vezes, ela o esperava na porta dos bares, em outras ele as entregava em casa, após tirar a sua parte.

Este fato parece ter criado um vínculo de gratidão e de afeto que foi manifestado pelo engraxate por ocasião da morte de minha mãe: ao pé do seu caixão ele insistia em dizer que ela não estava morta. Nós estávamos enganados ....

Aliás, o sentimento de sua eternidade nos acompanha.

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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado da Advocacia Mariz de Oliveira.




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