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Jair Bolsonaro, a imunidade e o decoro parlamentar quimérico

A finalidade constitucional e a respectiva vontade normativa não devem ser sacrificadas ao sabor de conchavos políticos e entendimentos anacrônicos por parte dos parlamentares.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Atualizado às 06:54

Recentemente, o deputado Jair Bolsonaro, em entrevista para o jornal Folha de São Paulo1, ao comentar acerca da ação em que figura como réu por incitação ao crime de estupro e calúnia no STF, afirmou que "não é a imprensa nem o Supremo que vão falar o que é limite para mim. Vão catar coquinho, não vou arredar em nada, não me arrependo de nada que falei".

Em primeiro lugar, apenas para relembrar os principais casos em que o deputado teve seu comportamento e suas falas analisadas pelo Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, temos o caso de 2014, em que referido Conselho instaurou processo por quebra de decoro parlamentar contra o deputado, em razão de representação movida pelo PT, PCdoB, PSOL e PSB, ante o discurso de Bolsonaro, no Plenário da Câmara, quando disse que não estupraria sua colega, a deputada Federal Maria do Rosário, porque ela não merecia.

Neste caso em específico, a deputada protocolou no STF queixa-crime por injúria e calúnia contra Bolsonaro. Concomitantemente, a vice procuradora geral da República, à época Ela Wiecko, também apresentou denúncia contra Bolsonaro, nesta mesma corte, por incitação ao crime de estupro2.

Enquanto na Comissão de Ética o processo por quebra de decoro parlamentar foi arquivado por 11 votos a 1, o processo no STF ainda tramita, tendo a primeira turma recebido a denúncia e a queixa-crime apenas quanto ao delito de injúria.

Outro caso que foi adicionado à coleção de representações contra o deputado e que gerou forte repercussão (tanto nacional como internacionalmente) foi o episódio de seu voto a favor do impeachment da ex presidente Dilma Rousseff, dedicando-o ao ex coronel do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça como torturador durante a ditadura militar.

Em representação contra o deputado, o Conselho de Ética novamente votou pela sua inadmissibilidade, por "falta de justa causa e ausência de tipicidade de conduta"3, sob o argumento de que a inviolabilidade do parlamentar é absoluta.

Seguidas "absolvições" em face de pronunciamentos criminosos pareceram estimular o deputado, que em referida entrevista para a Folha de São Paulo, conclama absoluta sua imunidade: "eu tenho imunidade para quê? Sou civil e penalmente inimputável por qualquer palavra. Posso falar o que bem entender, isso é democracia".

Entre tais e outras declarações teratológicas do deputado Jair Bolsonaro, reascende-se o debate acerca das restrições da imunidade e inviolabilidade parlamentar e do alcance do decoro parlamentar, emergindo diversos questionamentos pertinentes, em especial sobre as demarcações jurídicas de institutos como a imunidade parlamentar e a possibilidade de "quebra" do decoro parlamentar.

Obviamente, tais problemas não se restringem somente ao caso do deputado Jair Bolsonaro, sendo diversos os casos em que parlamentares se "excedem" em suas manifestações. No entanto, em razão dos seguidos absurdos profetizados pelo possível candidato à Presidência do Brasil em 2018, interessa utilizar Bolsonaro como ponto de partida para a análise da completa ineficácia do conceito de decoro parlamentar no Brasil.

A Constituição Federal, em seu art. 53, ao tratar sobre a imunidade parlamentar, assim prevê:

Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.

É razoável dizer que, para adequar referido dispositivo à sistemática constitucional brasileira, não faz sentido restringir a interpretação deste trecho à sua literalidade, oferecendo carta branca para que os parlamentares possam dizer o que bem entenderem, com a ausência de qualquer tipo de sanção.

No entanto, se nos debruçarmos sobre a inviolabilidade funcional deste caso, compreendendo a inteligência do dispositivo, percebe-se que esta foi projetada para o resguardo do parlamentar no exercício de seu mandato, sujeitando-se, como qualquer outro cidadão brasileiro, às restrições impostas pelo ordenamento jurídico brasileiro.

A despeito do fato de que, em razão de sua atividade, o parlamentar goza de uma liberdade de expressão ampliada, a inviolabilidade não pode ser moldada como prerrogativa incontrastável, em especial quando procede a condutas diametralmente opostas aos mandamentos da Constituição Federal, de todo o restante do sistema jurídico, e inclusive de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário - como é o caso da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Não se deve negar uma margem de proteção a direitos fundamentais que não a liberdade de expressão do parlamentar, muito menos em hipóteses que destoam visivelmente do exercício de sua função. Mesmo se sopesássemos os conceitos, a equivalência entre decoro parlamentar e liberdade de expressão mostra-se praticamente impossível se considerarmos os recentes pronunciamentos do deputado Jair Bolsonaro.

Por certo, parafraseando o entendimento da Ministra Carmem Lúcia, no julgamento do HC 89.417/RO4: imunidade não pode ser confundida com impunidade, com privilégio, com regalia, como um benefício oferecido aos parlamentares. Assumir esse entendimento guarda incompatibilidade com a Democracia, com a República e com o próprio princípio do Estado Democrático de Direito.

É certo que, qualquer outro cidadão, no caso do pronunciamento do deputado Jair Bolsonaro no processo de impeachment no ano passado, seria processado segundo os trâmites do art. 287 do Código Penal (apologia de crime ou criminoso), cumulado com o art. 1º, II, da Lei nº 9.455/1997, além da passividade da reparação no âmbito cível. Não há lógica em dizer que um parlamentar pode livremente tomar esse tipo de conduta para si, sem qualquer pertinência lógica com o exercício de sua função.
Nada obstante, o fato de um deputado Federal, representante do povo na Câmara Federal, potencial candidato para a Presidência do Brasil, com largas intenções de voto, menosprezar publicamente a competência do STF, ao dizer que não será este a lhe fornecer os limites para sua atuação, implica a seguinte questão: se não o STF, enquanto guardião da Constituição5, para ditar os limites do deputado, quem o fará? Não raras vezes o deputado optou e se acostumou a optar por mitigar os valores mais relevantes ao espírito e ao núcleo da Constituição Federal, em posições grosseiras, rasas e indecentes.

Com efeito, a Constituição se preocupou, no art. 1º do Ato das Disposições Transitórias, em assegurar que tanto o Presidente da República, como o Presidente do Supremo Tribunal Federal e os membros do Congresso Nacional devem prestar o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, no ato e na data de sua prorrogação. Por decorrência lógica, naturalmente, o raciocínio se aplica a todos os ocupantes de referidos cargos. Não só, a desobediência em face de ordem, decisão judicial ou requisição do STF pode ensejar intervenção da União nos Estados, nos Municípios ou intervenção dos Estados nos Municípios, conforme art. 36, II, da CF.

Ao doutrinar sobre o caso do voto em favor do impeachment de Dilma Roussef, Luiz Guilherme Arcaro Conci e Konstantin Gerber, no texto "Um parlamentar pode defender a tortura?", se posicionam no sentido de estimular a ação do Ministério Público:

"(...) o Ministério Público deve fazer algo: se não pela via da ação penal, por outras vias como a de suspender direitos políticos para reparar a violação dos princípios da administração pública, sobremodo, o da lealdade democrática. Isto não exclui, ainda, a possibilidade de processo de cassação parlamentar promovido por intermédio de seus pares, ou, também, a disciplina partidária para velar pela democracia e os direitos fundamentais. E mais, isto não nos parece excluir a possibilidade de apreciação pelo Poder Judiciário de todos que se sintam vitimados, sobremodo as minorias, em prestígio ao princípio do acesso à justiça, pois imunidade parlamentar não deve ser sinônimo de impunidade parlamentar."6

Não só, acreditamos que a questão esbarra no decoro parlamentar. A Constituição Federal, em seu art. 55, prevê a possibilidade de perda de mandato de deputado ou senador cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar, considerando incompatível com o decoro, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional.

O Regimento Interno da Câmara dos Deputados e o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, aliás, se debruçam sobre o instituto do decoro parlamentar, preocupando-se em regulamentá-lo de modo a dar-lhe a necessária efetividade.

São alguns dos deveres fundamentais do deputado, de acordo com o Código de Ética e Decoro Parlamentar, segundo os dizeres de seu art. 3º: a promoção da defesa do interesse público e da soberania nacional; o respeito e cumprimento da Constituição Federal, das leis e das normas internas da Casa e do Congresso Nacional; o zelo pelo prestígio, aprimoramento e valorização das instituições democráticas e representativas e pelas prerrogativas do Poder Legislativo; o exercício do mandato com dignidade e respeito à coisa pública e à vontade popular, agindo com boa-fé, zelo e probidade; o tratamento com respeito e independência para com os colegas, as autoridades, os servidores da Casa e os cidadãos com os quais mantenha contato no exercício da atividade parlamentar.

Além disso, o art. 4º lista uma série de procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar, puníveis, inclusive, com a perda do mandato, tais como, além do abuso das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional, como manda a Constituição Federal (art. 55, § 1º), a prática de irregularidades graves no desempenho do mandato ou de encargos decorrentes, que afetem a dignidade da representação popular.

Como se não bastasse, referido Código, em seu art. 5º, ainda prevê outras condutas que ferem o decoro parlamentar, sendo passíveis de sanção, tais como: praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta nas dependências da Casa; praticar ofensas físicas ou morais nas dependências da Câmara dos Deputados ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou Comissão ou os respectivos Presidentes; assim como deixar de observar intencionalmente os deveres fundamentais do deputado, previstos no art. 3º deste código.

É dizer, resta flagrante a quantidade absurda de normas infringidas pelo deputado Jair Bolsonaro, tanto no âmbito do texto constitucional, como no âmbito do Regimento Interno e do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, em decorrência de suas falas e de seu comportamento, que não guardam nenhuma compatibilidade com o que se espera de um(a) ocupante de seu cargo.

Ignorá-las implica em forte desprestígio à efetividade do direito e à Casa que ele representa. Não obstante, estimula o "endeusamento" de parlamentares, que passam a considerar sua inviolabilidade absoluta, mesmo no caso de abuso de poder político e no caso de graves violações a princípios constitucionais.

Verificar o instituto do decoro parlamentar perder espaço em razão da conveniente concepção absoluta da inviolabilidade dos parlamentares, lesa não só gravemente texto constitucional, mas também, conforme salientado, a República, a Democracia e o Estado Democrático de Direito. Portanto, no caso do deputado Jair Bolsonaro, a cassação de seu mandato por quebra de decoro parlamentar seria seguramente um passo importante - apesar de tardio - rumo à aplicação deste instituto, em prestígio à elementaridade dos direitos fundamentais para a Constituição Federal de 1988.

Em tempos de maior atenção às minorias, a força normativa da Constituição deve imprimir ordem e conformação à nossa realidade política e social. A finalidade constitucional e a respectiva vontade normativa não devem ser sacrificadas ao sabor de conchavos políticos e entendimentos anacrônicos por parte dos parlamentares.

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1 Não é a imprensa ou o STF que vai falar o limite pra mim, diz Bolsonaro
2 CP, art. 286, com pena prevista de 3 a 6 meses de prisão.
3
Conselho de Ética rejeita processo contra Bolsonaro por citar Brilhante Ustra
4 1ª Turma, Rel. Min. Carmem Lucia - DJ 15/12/2006.
5 Art. 102,
CF.
6 Um parlamentar pode defender a tortura?

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*Arthur Deucher Figueiredo é sócio do escritório Francez e Alonso Advogados

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