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Um jurista no mundo moeda e da política monetária II(Jurista sem juros)

Enquanto a Senhora Morte discute a realização de uma arbitragem para a qual foi intimada em "Uma Arbitragem Mortal"¹, voltemos ao tema da moeda e da política monetária para finalizar esse breve comentário.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Atualizado em 11 de abril de 2017 11:32

Em primeiro lugar, a correção de uma imprecisão existente no texto anterior, quando foi dito que a moeda é instrumento de troca, meio de pagamento e reserva de valor. Na verdade, há uma duplicidade na frase anterior e relação a uma mesma função. Deve ser entendido que a moeda tem como papel o de ser um bem intermediário de troca, unidade de conta e reserva de valor.

Por sua vez, quanto ao bitcoin, na medida em que se toma qualquer bem (uma moeda conversível, por exemplo), como suporte para aquele, dir-se-ia que ele tem um ponto de referência no mundo monetário. No entanto, qualquer taxa de câmbio que se estabeleça em mercados fechados será aleatória e sujeita a manipulação.

Veja-se que bens abstratos são normalmente negociados nos mercados, tal como acontece com negócios relacionados ao índice Bovespa. Mas este, por sua vez, é referenciado a bens de existência concreta (digamos assim), no caso, correspondente aos valores mobiliários que formam a base para a constituição daquele índice. Seu preço oscilará para cima ou para baixo segundo o façam os valores mobiliários que o componham, permitindo-se dessa forma sua negociação em bolsas.

Desprovido de curso legal ou de um valor objetivo como acontece com as commodities, não se entende como os bitcoins poderiam ser aceitos para negociação em mercados abertos, dado que jamais se poderia dar a sua entrega física que, ainda rara, é uma possibilidade em tais mercados onde são negociadas as primeiras, fazendo-se sua ligação com o mundo real.

Mas prossigamos.

A política monetária e as circunstâncias

É evidente que não existe uma política monetária estabelecida sobre regras permanentes e imutáveis. Ela deve ser adequada às circunstâncias da economia em cada momento, cabendo aos bancos centrais escolherem quais instrumentos que se encontram à sua disposição deverão ser utilizados em dado momento em e em que medida.

Como se sabe, o BCB foi criado como o órgão executivo do Conselho Monetário Nacional - CMN e sua função precípua é cuidar da moeda (no momento o "real") em relação à sua utilização como meio adequado de pagamento. Isto implica na estabilidade do seu valor que, por sua vez deve ter em conta o oferecimento da quantidade ótima para o mercado. Ainda que o conhecimento de qual seja a quantidade ideal de moeda que deva estar em circulação consista em uma questão bastante complexa, sua medida é essencial para que sejam evitados dois extremos: (i) a falta de moeda por qualquer motivo (inclusive uma procura intensa como efeito de especulação), fato determinante da sua super valorização; e (ii) o seu excesso, que tem efeitos diretamente inflacionários.

Em um tempo recente ocorreu no Brasil uma rápida e altíssima valorização do dólar em contrapartida à desvalorização externa do real na mesma medida. No plano interno os preços se elevaram de forma sistemática e isto se deu em algumas áreas em nível mais intenso do que em outras. Esta é a desvalorização interna e, conjugadas as duas, causaram sério descontrole econômico, gerador de crises inflacionárias e de recessão, em uma mistura perversa de estagflação. Os fatores mais do que sabidos eram políticos e econômicos, estreitamente interligados entre si. Assim sendo, os exportadores brasileiros (como empresários que em tese somente atuassem nessa área de negócios, sem preocupações com o mercado interno) estavam muitíssimos felizes, enquanto os importadores e turistas há muito tempo não viam uma situação tão ruim para os seus propósitos.

Ótimo, diriam alguns se tratava de uma boa ocasião para restringir as despesas dos turistas brasileiros, voltados para uma gastança desordenada, inclusive para trazerem bem supérfluos de Nova York ou de Miami (especialmente), ali comprando todo o enxoval de uma noiva ou de um bebê esperado pelos pais. Na mesma linha de raciocínio seria tempo de dificultar que os novos ricos adquirissem carros estrangeiros de luxo para se exibiram nas ruas e estradas esburacadas do país. O mesmo quanto a roupas de costureiros da moda ou bolsas de marcas famosas para mulheres. E sem falar nas viagens ao exterior, cuja conta havia chegado a níveis extremamente elevados.

Oportunamente uma pergunta poderia ser feita. Por que, mesmo contando o custo de uma passagem aérea mais a hospedagem em um hotel e as despesas de transporte, ainda assim era mais barato comprar aqueles e outros produtos fora do Brasil? E deve ser lembrado que, nas últimas décadas, apenas uma vez a moeda brasileira foi cotada em preço mais barato do que o dólar, ou seja, quando da criação da URV em 1994, situação excepcional e momento de intensa felicidade para toda a comunidade das sacoleiras desta pátria. Evidentemente a tributação brasileira tem muito a ver com esse quadro, o que não é nosso problema no momento.

Mas há outra face da moeda, quando o preço do dólar se eleva expressivamente em relação à moeda nacional. Nesse caso a importação de bens de capital para o fortalecimento e modernização da indústria nacional fica muito mais cara e, claro, o custo será repassado para o consumidor do produto final, se isto for possível ao fabricante. Caso contrário, ele passará, no ramo automobilístico, por exemplo, a nos fornecer as suas antigas "carroças" porque não terá material nem tecnologia mais modernos para utilizar em sua linha de fabricação.

E como o BCB normalmente exerce a sua função de guardião da moeda? Digamos que seja da mesma forma como se faz com o gramado de um campo de futebol. Quando está seco, se molha; quando está muito encharcado, se enxuga, o que é próprio da filosofia do Conselheiro Acácio. E, no caso do BCB, a sua mangueira e o seu rodo consistem nos instrumentos de política monetária ao seu dispor: encaixes obrigatórios, depósitos compulsórios, taxa de redesconto e a taxa SELIC.

Quando há dinheiro em excesso, assim considerado diante do seu parâmetro ótimo (e isto diz respeito não somente à moeda física e escritural em circulação, mas também quando existe crédito muito fácil) o BCB aumenta o nível de encaixe e de depósitos compulsórios dos bancos, assim diminuindo a sua capacidade de empréstimo. Também aumenta a taxa de redesconto, pois ele, BCB, é o emprestador de última instância no mercado financeiro; e, ainda, eleva a taxa SELIC, restringindo também dessa forma o crédito, cuja taxa de juros se tornará mais elevada. O aumento da taxa de redesconto repercute diretamente na taxa do mercado interbancário, aquele dentro do qual os bancos emprestam uns aos outros.

Quanto ao redesconto, no Brasil esta operação se reveste da qualidade de um instrumento punitivo em relação às instituições financeiras que a ele recorrem, pois a taxa aplicada é extremamente elevada, significando também que o favorecido representa certo perigo de quebra porque não conseguiu superar suas dificuldades no mercado interbancário. Em outros sistemas financeiros o redesconto apresenta menor relevância quanto a esta função específica, tratando-se de um mecanismo regular de financiamento dos bancos que atravessam alguma situação de dificuldades dentro de um horizonte de curtíssimo prazo (um dia).

Quando a oferta de moeda se encontra abaixo das necessidades do mercado o BCB adota a posição inversa, reduzindo as exigências acima referidas. Na verdade, mesmo em economias mais estabilizadas do que a nossa, o aumento da oferta de moeda ou, ao contrário, a sua redução, se dá de forma cíclica, normalmente em patamares não muito acentuados porque ao longo do ano há períodos em que a economia está mais ou menos aquecida.

Verifica-se que, antigamente, a concessão de crédito pelo uso intenso do cheque pós-datado e dos carnês de lojas de departamento como instrumentos de financiamento das famílias, ao lado do desconto físico de duplicatas no comércio e no setor de serviços, apresentava uma capacidade de criação de moeda escritural pelos bancos bem mais reduzida em relação ao que hoje acontece. Isto se dá pela intensa utilização de cartões eletrônicos e dos diversos recebíveis em uso no mercado, a par do desconto eletrônico de duplicatas. Essas operações tornaram muito mais rápida a circulação da moeda, com um efeito de forte alavancagem na base monetária, resultado na possibilidade da inundação de moeda no mercado financeiro.

Em conjugação com todos esses novos fatores, acima referidos, a globalização financeira cada vez mais intensa e o surgimento da criptomoeda (entre as quais se conta o bitcoin como visto acima), têm feito com que os bancos centrais do mundo inteiro se preocupem com a perda de fato do seu poder de regular a quantidade de moeda em circulação e, consequentemente, levando-os a verem reduzido o seu poder de manutenção da estabilidade monetária.

Com a finalidade de estabelecer o controle sobre esses novos meios de circulação da moeda, foi recentemente regulamentado entre nós o Sistema de Arranjos e Instituições de Pagamento, para incluí-los sob a tutela do BCB, com uma segunda finalidade altamente essencial, que é a de cercar as possibilidades do surgimento de risco financeiro no mercado. O tema em questão foi objeto da lei 12.865, de 9/10/13, regulada, por sua vez, por resoluções do CMN e circulares do BCB.

Contribuindo de forma altamente negativa, em países nos quais existe um desequilíbrio, principalmente no campo fiscal (por causa de um nível de tributação muito elevado e a existência não sistemática regime de impostos) o governo interfere de forma altamente prejudicial no desenvolvimento do papel dos bancos centrais, como é precisamente o momento atual que o Brasil atravessava no período mencionado.

O déficit público havia alcançado uma cifra astronômica (e se encontrava em elevação por diversos motivos, entre os quais o sistema falido da previdência pública) e o governo somente dispunha de duas saídas tecnicamente possíveis: reduzir drasticamente os seus custos e investimentos e/ou aumentar impostos. Tais soluções se revelavam extremamente problemáticas na realidade em que temos vivido por duas razões: Primeira, cortar custos e investimentos apresenta um preço político muitíssimo elevado para o governo porque o sistema de longa data estabelecido entre nós fundou-se nos conhecidos arranjos de governabilidade. Assim sendo, não tem existido o mínimo apoio politico para cortar despesas, o que se daria pela extinção de ministérios e cargos comissionados existentes em profusão; pela demissão de milhares de empregados não concursados; pelo corte de programas sociais; pela redução de investimentos não absolutamente essenciais; e por aí vai. E, tendo em conta o número em jogo, a economia teria de ser feita ao longo de alguns sofridos anos porque um ou mesmo dois seriam insuficientes. Isto é claro, com a revolta de eleitores que entendessem finalmente terem sido completamente enganados com promessas irrealizáveis no longo prazo.

O aumento de impostos, por sua vez, representaria uma sobrecarga ainda maior sobre famílias e empresas que já pagam uma tributação contada entre as maiores do mundo. Não tem havido espaço financeiro para tanto, e muito menos espaço político. O retorno à CPMF, vestida com novas roupagens, seria uma medida odiosa para a sociedade civil e um tiro no pé para os políticos que a favorecerem, se desejassem disputar com alguma possibilidade de sucesso uma próxima eleição. A história da CPMF, criada fundadamente para acudir as despesas públicas da saúde não é nada edificante, pois se desligou da sua causa e transformou-se em fonte pura e simples da cobertura geral de gastos descontrolados do governo. Terá sido uma boa intenção, das quais o inferno está repleto.

Por outro lado, parte do financiamento do Governo tem sido feito por meio de aplicações de investidores no chamado "Tesouro Direto", o que tem a ver também com a taxa SELIC. Esta operação consiste na aquisição pelo aplicador de títulos emitidos pelo Tesouro Federal, que paga o equivalente aos juros daquela taxa SELIC, historicamente uma das mais altas do mundo. E não havia condições naquele momento para elevar ainda mais esta taxa. Ela chegou ao teto máximo que a economia (não) podia aguentar.

Ocorre que o Governo, com a operação acima, de um lado, recebe imediatamente recursos de que necessita, mas do outro ele se endivida, aumentando as suas obrigações financeiras para o futuro. O investidor acredita que poderá ganhar pouco (diante da inflação real), mas que se trata de investimento seguro porque a última coisa que um governo em dificuldades faz é deixar de honrar as suas obrigações diretas. Isto porque a repercussão do seu inadimplemento é mais rápida do que a velocidade da luz, trazendo a catástrofe.

Com a emissão de títulos pelo Tesouro há um reflexo imediato na base monetária, pois o BCB, em contrapartida à venda daqueles, recolhe moeda, enquanto no seu vencimento ele a emite. Se a diferença for negativa e dotada de certa perenidade, temos presente mais um sério fator de inflação. E tendo em conta que o BCB não pode obrigar o Governo a parar de emitir títulos públicos, seu poder de interferência inexiste a não ser, indiretamente e sem grande eficácia, pelo fato de que a lei o proíbe de financiar o emitente pela compra direta por aquela Autoridade Monetária. Mas existe a possibilidade de sua aquisição indireta, o que leva o BCB a ser cúmplice involuntário do Governo na sua irresponsabilidade monetária e fiscal.

Conforme se verifica, a dança da política monetária torna-se cada vez mais complicada, pois ela vive em união ilícita com o déficit fiscal.

Para equilibrar um pouco a situação o governo anunciou que para 2018 a taxa TJLP será substituída por uma colocada em patamar superior, fato que reduzirá o crédito público de longo prazo que se apresenta como um subsídio negativo para a economia. Mas essa é outra história, para outra ocasião.

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1 "Uma Arbitragem Mortal", Migalhas de 29.03.17

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados e professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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