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No fundo, querem mudar o povo, não a Constituição

Propostas para uma nova Constituição são alternativas lançadas, de boa-fé, ao debate. Mas parecem não apontar o melhor caminho. Sugerem uma travessia arriscada, pouco exequível para uma nação que cansou de abismos.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Atualizado às 12:16

Foi apresentada, em O Estado de São Paulo, dia 11/4/17, uma proposta de Assembleia Nacional Constituinte para elaborar aquela que seria a nossa oitava Constituição. O jornal, dia seguinte, divulgou editorial simpático à ideia. No texto "Base para uma inadiável discussão", a CF de 1988 foi qualificada como "prolixa, detalhista e envelhecida". A ela foi atribuída parte da culpa por desarranjos institucionais, disfuncionalidades e irrealismos.

A ideia pode ganhar corpo. O próprio Migalhas tocou na questão. Exatamente por isso, a proposta precisa da atenção e respeito dos membros da sua comunidade.

Não nos faltam Constituições. Sobram. A queda de braço entre o povo e os poucos que o governa destruiu seis Constituições. São elas:
1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967/1969. Agora, expostas as vísceras do poder no Brasil, precipitam-se ensaios para que seja destruída a sétima, a de 1988.

É a história brasileira que se repete. Medidas populistas conhecidas da política sul-americana terminam em crise econômica, que acarreta insatisfação popular. Daí vem o desejo de elaboração de uma nova Constituição responsável por destruir tudo o que foi feito até então.

Esse cabo de guerra constitucional tem, numa ponta da corda, a liberdade e, na outra, a falta dela. Basta olhar. Em 1824, o Império. Em 1891, a República. Com Getúlio Vargas, duas Constituições - a de 1934 e a de 1937 - diminuindo as liberdades. Depois, numa ressaca, a de 1946, ampliando. A Constituição de 1964 nos aprisionou. A de 1988, libertou. Foi assim. Não parece ser razoável seguir puxando a corda.

A primeira pergunta é: quem escreverá o texto? Ou será o povo, pelos seus representantes, ou uns poucos, por uma "Comissão de Notáveis".

Caso sejam os representantes do povo, é difícil o momento brasileiro alcançar a explosão democrática que deu origem à Constituição Federal de 1988. Basta olhar as manchetes jornalísticas.

Caso seja uma "Comissão de Notáveis", tem pouco apelo democrático ter um corpo não eleito reunido para, segundo sua vontade, de cima para baixo, destruir a Constituição de 1988 e, em seu lugar, colocar o que achar melhor. De repente, de um convescote, nasce o texto que governará mais de 206 milhões de pessoas? É difícil dar certo.

De todas as constituições que produzimos, a de 1988 é a que mais perto chegou de nós. Ela toca em nossas dores, fala de nossas necessidades, olha para as nossas instituições e projeta o amanhã com pioneirismo. Não é uma obra perfeita, mas nenhuma Constituição o é. Fala-se, em tom de crítica, que muitas ideias capturadas pelo Constituinte materializaram compromissos temporários capazes de nos ajudar a nos livrar da ditadura militar. É verdade. Mas essas soluções sempre existirão.

Um exemplo para ilustrar. A Constituição da África do Sul, de 1996, tem sido criticada pelas novas gerações que acham que, em razão do apartheid, a desapropriação de terras pertencentes aos brancos deveria se dar celeremente e sem compensações. É uma busca por acerto de contas. Acontece que a Constituição impõe freios a essas pulsões. Foi a solução possível para o fim do apartheid. Imagine só uma nova Constituinte acabando com essas pontes de perdão. Seria um desastre.

Não veio da Constituição Federal de 1988 o empobrecimento da nossa gente e os mais de 13 milhões de desempregados que o país abriga. Veio dos nossos líderes, pessoas que estão habitando hospedagens antes reservadas aos párias pobres da sociedade. E essa é mais uma transformação operada sob os auspícios da Constituição de 1988.

Propostas para uma nova Constituição são alternativas lançadas, de boa-fé, ao debate. Mas parecem não apontar o melhor caminho. Sugerem uma travessia arriscada, pouco exequível para uma nação que cansou de abismos. A proposta, no fundo, parece querer mudar o povo, não a Constituição.

O fato de termos 95 emendas - e isso é por vezes criticado -, mostra que nesses quase trinta anos de vida da Constituição, tivemos perto de cem oportunidades de reformar aquilo que nos atrasa. Se catalisarmos a nossa energia paras os pontos fundamentais, daremos o salto que a nossa comunidade almeja.

A Constituição de 1988 é uma corajosa timoneira. Sob o seu comando atravessamos terríveis tempestades. Somos mais experientes e calejados agora. Mesmo com cicatrizes de quem leva uma vida dura, essa boa comandante está de pé. Ela é nobre e tem valor. Não é justo lançá-la ao mar.

Nessa navegação brasileira num mar que parece revolto, podemos dizer que o tempo está meio fechado, é verdade. Mas o sol logo mais começará a sair.

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*Saul Tourinho Leal é associado de Pinheiro Neto Advogados e doutor em Direito Constitucional.









* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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