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O tratado Brasil - Chile

Ana Carolina Pereira Monguilod e Priscila Stela Mariano da Silva

Em 23.7.2003, foi publicado o Decreto Legislativo nº 331, aprovando o texto da Convenção para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de Imposto de Renda, celebrada entre o Brasil e o Chile ("Tratado Brasil - Chile"). O Tratado Brasil - Chile traz dispositivos inovadores, apresentando algumas peculiaridades em relação aos demais tratados tributários celebrados pelo Brasil.

quarta-feira, 3 de setembro de 2003

Atualizado em 2 de setembro de 2003 13:30

O tratado Brasil - Chile

 

Ana Carolina Pereira Monguilod

 

Priscila Stela Mariano da Silva*

 

Em 23.7.2003, foi publicado o Decreto Legislativo nº 331, aprovando o texto da Convenção para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de Imposto de Renda, celebrada entre o Brasil e o Chile ("Tratado Brasil - Chile").

 

O Tratado Brasil - Chile traz dispositivos inovadores, apresentando algumas peculiaridades em relação aos demais tratados tributários celebrados pelo Brasil. A seguir, examinaremos os principais pontos de interesse do Tratado.

 

I. - ABRANGÊNCIA DO TRATADO - CSL

 

De um modo geral, os tratados celebrados pelo Brasil prevêem sua aplicabilidade apenas com relação ao Imposto de Renda. Contudo, faz-se a ressalva da possibilidade de sua aplicação a impostos de natureza idêntica ou substancialmente análoga, que sejam adicionados ou substituam os impostos já existentes. De acordo com o artigo 1º do Tratado, suas disposições abrangem apenas o Imposto de Renda brasileiro, podendo, todavia, ser aplicadas a impostos semelhantes criados após a data de sua assinatura.

 

Embora a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido ("CSL") tenha características semelhantes às do Imposto de Renda (fato gerador e base de cálculo similares), sua criação antecede a data de assinatura do Tratado. Assim, sob uma interpretação literal, não seria possível utilizar as disposições do Tratado para atenuar a tributação pela CSL.

 

Tal orientação diverge do mais recente posicionamento adotado pelo Governo Brasileiro a esse respeito, uma vez que o Protocolo do Tratado Brasil - Portugal (Decreto nº 4.012, de 13.11.2001) reconheceu a aplicabilidade de suas disposições à CSL.

 

II. - CLÁUSULAS ANTI-ABUSO

 

É natural que os agentes do cenário internacional procurem explorar a legislação interna de cada País, e as diferenças entre cada uma dessas legislações, com o fito de realizar a circulação de bens, serviços e capitais com o máximo de economia de tributo. A existência de tratado para evitar a dupla tributação constitui um atrativo ainda maior para a exploração de vantagens fiscais nos Estados Contratantes.

 

Negócios artificiais podem ser criados com o único objetivo de permitir a utilização irregular dos benefícios de um tratado, facilitando os procedimentos de evasão e elisão fiscal. Visando evitar esse "uso abusivo" das Convenções Internacionais, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico ("OCDE") sugere que os Estados Contratantes incluam determinadas cláusulas de proteção em seus tratados para evitar a dupla tributação.

 

Seguindo as recomendações da OCDE, foram incluídas no Tratado Brasil - Chile duas cláusulas "anti-abuso": (i) a cláusula do beneficiário efetivo; e (ii) uma cláusula de proteção do Estado da fonte pagadora.

 

A cláusula do beneficiário efetivo visa evitar que uma pessoa não abrangida pelas disposições do Tratado interponha artificialmente, entre si e a fonte dos rendimentos, uma terceira pessoa que poderia usufruir dos benefícios do Tratado. Esse terceiro atuaria como mero canal retransmissor dos rendimentos, repassando-os àqueles que, em princípio, não deveriam usufruir de qualquer benefício.

 

A cláusula do beneficiário efetivo atua como um limitador, restringindo a aplicabilidade do Tratado às hipóteses em que o destinatário dos rendimentos, residente no Brasil ou no Chile, é o real beneficiário dos mesmos. Tal cláusula vale para os pagamentos de dividendos, juros e royalties.

 

A cláusula que protege o Estado da fonte pagadora é uma novidade nos tratados firmados pelo Brasil. Contemplada nos artigos 11 e 12 do Tratado, essa cláusula visa evitar que as pessoas domiciliadas nos Estados Contratantes criem operações que envolvam o pagamento de juros ou royalties com o objetivo de beneficiar-se do limite de tributação na fonte aplicável a tais rendimentos (alíquota máxima de 15%).

 

Tal dispositivo permite que o Estado da fonte pagadora dos juros ou royalties negue a aplicação dos benefícios dos artigos 11 e 12 do Tratado Brasil - Chile, respectivamente, quando ficar demonstrado que a operação que deu origem ao pagamento desses juros ou royalties tem como finalidade precípua permitir a utilização dos limites estabelecidos pelo Tratado, reduzindo a tributação na fonte. Trata-se de uma verdadeira cláusula anti-elisão, permitindo uma interpretação econômica das transações contratadas por chilenos e brasileiros.

 

Surgem, então, algumas questões de ordem prática: qual a autoridade competente para analisar os objetivos dessas operações? Qual a legislação a ser utilizada para tanto? Embora o Tratado Brasil - Chile não aborde expressamente esse assunto, ao que tudo indica caberia ao Estado da fonte pagadora desvendar os verdadeiros objetivos dessas operações, à luz de sua própria legislação interna.

 

Entendemos, contudo, que tal dispositivo não poderia ser aplicado amplamente pelo Governo Brasileiro. Isto porque o sistema tributário brasileiro está sediado no princípio da legalidade, que impede a desconsideração ou desqualificação dos negócios praticados pelos contribuintes com base na sua substância econômica. Se o conteúdo do negócio é lícito e sua forma jurídica perfeita, não cabe sua desconsideração.

 

A nosso ver, embora se sobreponham à legislação interna comum, os tratados internacionais em matéria tributária estão adstritos aos limites da Constituição Federal. Portanto, suas disposições são inaplicáveis quando incompatíveis com preceitos constitucionais. Tendo em vista o respeito ao princípio da legalidade, entendemos que o Governo Brasileiro não poderia utilizar a cláusula anti-abuso do Tratado Brasil - Chile como fundamento para negar os seus benefícios a negócios bilaterais praticados com o objetivo de planejamento fiscal. Na prática, a nova cláusula anti-abuso introduzida pelo Tratado Brasil - Chile só seria aplicável aos casos de fraude e simulação no pagamento de royalties e de juros, nos moldes já permitidos pela legislação doméstica brasileira.

 

III. - JUROS SOBRE O CAPITAL PRÓPRIO

 

No âmbito da legislação interna brasileira, sempre se discutiu se os juros sobre o capital próprio têm natureza de dividendos ou de juros. A Comissão de Valores Mobiliários ("CVM") entende que os juros sobre o capital próprio são uma modalidade de distribuição de resultados da empresa, ao passo que a Secretaria da Receita Federal os trata como despesas financeiras.

 

Para os fins do Tratado Brasil - Chile, classificam-se como dividendos os rendimentos provenientes de ações ou outros direitos, com exceção dos direitos de crédito, que permitam participar dos lucros, assim como os rendimentos de outros direitos de participação sujeitos ao mesmo tratamento tributário que os rendimentos de ações pela legislação do Estado Contratante do qual a sociedade que os distribui seja residente.

 

Em princípio, à luz da definição trazida pelo Tratado, os juros sobre o capital próprio deveriam receber o mesmo tratamento dos dividendos, pois: (i) constituem um resultado distribuível da companhia; e (ii) segundo a legislação brasileira, podem ser imputados ao valor dos dividendos obrigatórios.

 

Todavia, não foi esse o posicionamento oficial adotado pelos Estados Contratantes. Conforme consta do Protocolo do Tratado Brasil - Chile, as importâncias pagas a título de remuneração sobre o capital próprio serão tratadas como juros. Prevaleceu, assim, o entendimento da Secretaria da Receita Federal.

 

IV. - SERVIÇOS TÉCNICOS E DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA

 

A classificação e o tratamento dos rendimentos de serviços técnicos e de assistência técnica são um dos pontos de maior discussão no âmbito dos tratados assinados pelo Brasil.

 

O Protocolo do Tratado Brasil - Chile equiparou os rendimentos de serviços técnicos e de assistência técnica a royalties. Tais rendimentos apenas poderão ser tributados no Estado da fonte pagadora à alíquota máxima de 15%.

 

Muito embora o Protocolo do Tratado Brasil - Chile adote uma redação genérica, equiparando todos os serviços técnicos e de assistência técnica a royalties, a nosso ver seria possível defender que apenas os serviços que impliquem transferência de tecnologia devem ser classificados sob esse artigo. Conforme interpretação da própria OCDE, os serviços técnicos e de assistência técnica que não envolvam transferência de tecnologia, mas apenas a aplicação de conhecimentos usuais de determinado profissional, deveriam ser tratados como lucro das empresas (artigo 7º do Tratado) ou rendimentos de serviços profissionais independentes (artigo 14), caso sejam prestados por pessoas físicas.

 

Cabe lembrar que as autoridades fiscais brasileiras já se posicionaram contra a aplicação da cláusula de lucro das empresas para os rendimentos da prestação de serviços (ADN 1/00). Assim sendo, caso o contribuinte queira garantir a aplicação da cláusula do lucro das empresas às remunerações de serviços, será necessário o ingresso de medida judicial.

 

V. - ROYALTIES - DEDUTIBILIDADE

 

Nos termos do artigo 23, parágrafo 4º, do Tratado Brasil-Chile, os royalties pagos por empresa brasileira a beneficiário residente no Chile ficam sujeitos aos mesmos requisitos de dedutibilidade aplicáveis aos pagamentos entre empresas brasileiras.

 

De acordo com a legislação brasileira, os royalties pagos a beneficiários no exterior somente serão dedutíveis até o limite de 5% da receita líquida das vendas do produto fabricado ou vendido. Há controvérsias quanto à aplicação desse limite aos royalties pagos a residentes no País. A nosso ver, entretanto, ele atinge apenas as remessas de royalties a beneficiários no exterior.

 

Com base nesse entendimento, seria possível argumentar que o Tratado Brasil-Chile afasta quaisquer limites de dedutibilidade relativamente aos pagamentos de royalties efetuados por empresa brasileira a residente no Chile. Para garantir a dedutibilidade de tais valores, a empresa brasileira precisaria apenas atender aos requisitos gerais de dedutibilidade impostos pela legislação brasileira (necessidade, normalidade e usualidade das despesas). Não obstante, há o risco de as autoridades fiscais apresentarem entendimento diverso.

 

Por fim, é interessante notar que esse benefício não foi condicionado ao fato de a pessoa (residente do outro Estado Contratante) que recebe os royalties ser o beneficiário efetivo desses rendimentos. Nesses termos, entendemos que há argumentos para defender que o direito à dedutibilidade dos royalties pagos por empresa brasileira a residente do Chile independe do fato de esse último ser o efetivo beneficiário de tais rendimentos (vide itens 2.4 e 2.5 supra).

 

VI. - ESTABELECIMENTO PERMANENTE - DEDUTIBILIDADES

 

Há quem entenda que a legislação brasileira restringe a dedutibilidade dos custos e despesas incorridos por estabelecimentos permanentes de empresas estrangeiras no Brasil (i.e. filiais, sucursais, agências ou escritórios de representação) aos gastos efetuados em território nacional. Não partilhamos desse entendimento. A nosso ver, a legislação interna permite a dedutibilidade integral dos custos e despesas incorridos pelo estabelecimento permanente, no Brasil ou no exterior.

 

O texto do artigo 7º do Tratado Brasil - Chile e do artigo 2º do Protocolo afasta quaisquer dúvidas a esse respeito ao esclarecer que, nas relações entre o Brasil e o Chile, os estabelecimentos permanentes poderão deduzir todas as despesas necessária e efetivamente realizadas para a consecução dos seus fins, ainda que efetuadas em outros locais (no exterior).

 

VII. - CONCLUSÃO

 

Os tratados em matéria tributária têm por propósito maior evitar a dupla tributação (jurídica) de rendimentos e capitais, promovendo assim a troca de bens e serviços, bem como a movimentação de capital, tecnologia e pessoas entre os respectivos países signatários.

 

De certa forma, os recentes tratados assinados pelo Brasil têm se desviado desse objetivo, pois consagram dispositivos que visam, prioritariamente, garantir a tributação na fonte e oficializar a política fiscalista do Governo. A inaplicabilidade do Tratado Brasil - Chile à CSL, e a equiparação da remuneração de serviços técnicos a royalties demonstram que os Tratados vêm sendo utilizados de forma a consolidar posicionamentos já adotados pelo Fisco brasileiro.

 

Não obstante, devemos reconhecer a importância do Tratado Brasil-Chile como medida de expansão de nossa rede de cooperação internacional.

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* Advogadas do escritório Pinheiro Neto Advogados

 

* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

 

© 2003. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS.

 

 

 

 

 

 

 

 

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