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Direitos humanos e modernidade

Uma analise a situação atual dos direitos humanos, e também das transformações econômicas, sociais e políticas.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Atualizado às 07:55

INTRODUÇÃO

"Modernidade" é compreendida sob a ideia de rompimento com a tradição, expondo algo novo, diferente do que a tradição apresentou.

A noção do "tempo" ocupa a mente da cultura ocidental há muitos séculos. E, portanto, adota-se a ideia de "novo tempo" como aquele em que vivemos; ou seja, como uma transição para o novo, como uma ruptura com o passado. Nesse sentido, os exemplos do passado são utilizados como guia para o futuro, seja para repeti-los, seja para esquecê-los.

Como disse Marshall Berman:

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor - mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos1.

No primeiro capítulo deste artigo, ver-se-á que, ao longo da História, os diversos acontecimentos foram culminando na construção dos direitos humanos, os quais, no entanto, parecem sempre necessitar de reconstrução e afirmação.

Nesse sentido, a dúvida que surge é se, nos chamados "tempos modernos, ainda é possível defender a existência dos direitos humanos, considerando-se as inúmeras violações que vivenciamos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em seu artigo primeiro ("Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, dotados que são de razão e consciência, devem comportar-se fraternalmente uns com os outros"), prevê o caráter universalista desses direitos ("todos os seres humanos"), os quais são baseados na dignidade humana, que, por sua vez, seria inerente a todas as pessoas.

Com isso em mente, este artigo deixará claro que é plenamente possível afirmar que a Modernidade não conseguiu cumprir o seu propósito de romper com o passado, sob as ideias iluministas de razão e foco na ciência, tendo sido contaminada pelo capitalismo exacerbado, o que resultou em extremas violações dos direitos humanos - um dos principais exemplos seria a Segunda Guerra Mundial.

No segundo capítulo, serão abordados alguns dos efeitos da modernização, no que concerne à efetivação dos direitos humanos, passando pelas ideias de Jürgen Habermas, acerca dos chamados "custos da modernização".

Por fim, no terceiro capítulo, tratar-se-á das diferentes teorias de modernidade, bem como dos desafios enfrentados pelos direitos humanos na contemporaneidade.

Este artigo objetiva proporcionar uma visão ampla da atual situação da promoção e da efetivação dos direitos humanos, em face da modernidade e da globalização, chegando-se a uma possível proposta de equilíbrio.

2 Breve histórico dos direitos humanos

Não há como se delimitar um ponto específico de aparecimento dos direitos humanos, uma vez que seu cerne é a luta contra a opressão e a busca do bem-estar do indivíduo, com base na dignidade da pessoa humana; ou seja, esses direitos estão ancorados nas ideias de justiça, igualdade e liberdade, as quais estão presentes na vida social desde o surgimento das primeiras comunidades humanas.

Logo, pode-se afirmar que a construção e a evolução dos direitos humanos passaram por diversas fases ao longo dos séculos, à medida que os conceitos de justiça, igualdade e liberdade foram se sedimentando e se fortalecendo; isto é, não são reconhecidos ou construídos de uma só vez e dependem da própria experiência da vida humana em sociedade. Assim, até a universalização dos direitos humanos, com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, passaram-se quase 30 séculos (desde as primeiras comunidades humanas, no século VIII a.C.).

Mesmo no período da Idade Antiga, encontram-se provas da luta por direitos humanos, com o surgimento da ideia de um direito natural superior ao direito positivo. Nessa época, vários filósofos, como Buda, na Índia, e Confúcio, na China, já tratavam de direitos dos indivíduos, adotando códigos de comportamento baseados no amor e no respeito pelo outro2.

Na Grécia Antiga, lançou-se a base para o reconhecimento dos direitos humanos ao colocar a pessoa humana no centro da questão filosófica. Nesse sentido é a obra Antígona, de Sófocles, cuja ideia central é a superioridade de determinadas regras de conduta, principalmente contra a tirania e a injustiça. Em A República, Platão defendeu a igualdade e a noção de bem comum. Aristóteles, em Ética a Nicômaco, demonstrou a importância de agir com justiça, para o bem de todos.

Além disso, é importante lembrar que, em Atenas, no século V a.C., os cidadãos homens participavam das principais escolhas da comunidade. E o Direito Romano, com a Lei das Doze Tábuas, contribuiu para a sedimentação do princípio da legalidade, visando à vedação do arbítrio.

Na Idade Média, a Carta Magna, de 1215, imposta ao Rei João-Sem-Terra, é um relevante exemplo de evolução dos direitos ora tratados, pois tinha objetivo de limitar os direitos do soberano, o que foi consagrado em 1628, pela Petition of Right, que estabeleceu o dever do rei de não cobrar impostos sem a autorização do Parlamento.

Seguindo na evolução dos direitos humanos, ainda no século XVII, o Habeas Corpus Act (1679) formalizou o mandado de proteção judicial aos que haviam sido presos injustamente. Em 1689, a Bill of Rights, na Inglaterra, reduziu, definitivamente, o poder autocrático dos reis.

Partindo para a fase do constitucionalismo liberal, as revoluções liberais na Inglaterra (que tiveram início no século XVII), na América do Norte e na França, com suas respectivas Declarações, marcaram a primeira clara afirmação histórica dos direitos humanos: a Declaração do Bom Povo de Virgínia (1776), a qual continha afirmações da promoção de direitos humanos; a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que foi um marco para a proteção desses direitos, consagrando a igualdade e a liberdade como direitos inatos a todos os indivíduos (foram abolidos os privilégios, direitos feudais e imunidades de várias castas), além de se distinguir das demais porque foi a primeira a apresentar um caráter universal, já que visava espalhar seus ideais para além da França.

Também foi de grande relevância para o desenvolvimento dos direitos humanos o projeto de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de 1791, que reivindicava a igualdade de direitos de gênero.

O século XIX foi marcado por movimentos socialistas, culminando, já no início do século XX (após a Primeira Guerra Mundial), com a introdução dos chamados direitos sociais, nas Constituições pioneiras do México (1917) e de Weimar (1919).

No plano internacional, em 1919, foi criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), primeira organização internacional voltada à melhoria das condições dos trabalhadores.

Foi apenas a partir de meados do século XX que os direitos humanos adquiriram maior relevância no âmbito internacional, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) - mais importante documento em favor da proteção dos direitos da humanidade -, em um esforço para reconstruir esses direitos, após as atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial3.

Portanto, podemos concluir que os direitos humanos são um "construído": para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução; para Joaquín Herrera Flores, os direitos humanos compõem uma racionalidade de resistência, pois traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana; para Luigi Ferrajoli, os direitos humanos simbolizam a lei do mais fraco contra a lei do mais forte4.

E, nesse contexto de construção, afirmação e reconstrução dos direitos humanos ao longo da História, é imprescindível tratar dos custos que a Modernidade vem causando a eles.

3 Consequências da modernização

O movimento histórico é ambíguo: pode tanto levar as pessoas a uma época de maior evolução e progresso, quanto caminhar a uma época de maiores conflitos: "a humanidade encontra-se em uma viagem de descobertas. As circunstâncias do indivíduo moderno se assemelham a estar embarcando em um navio para uma viagem através de mares desconhecidos"5.

A despeito de todas as conquistas em relação aos direitos humanos (direitos mais essenciais da pessoa humana) ao longo da História, vive-se num mundo repleto de desigualdades e de miséria.

Para Zygmunt Bauman,

a produção de (...) seres humanos refugados (os "excessivos" e "redundantes", ou seja, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter permissão para ficar) é um produto inevitável da modernização, e um acompanhante inseparável da modernidade. É um inescapável efeito colateral da construção da ordem e do progresso econômico6.

A globalização e a consequente expansão do modo de vida moderno causaram o surgimento de inúmeras pessoas em situação de extrema pobreza, totalmente destituídas de meios de sobrevivência e dos mais básicos direitos humanos: moradia, alimentação, educação, saúde, dignidade.

Duas consequências diretamente relacionadas à difusão global da modernidade são a incapacidade de se desfazer dos chamados "enclaves do planeta"7 e o surgimento de milhões de pessoas deslocadas no mundo ("refugo humano"), como é o caso dos refugiados - atualmente, segundo dados da ONU, foram contabilizadas 65,3 milhões de pessoas deslocadas forçadamente no mundo, sendo 21,3 milhões de refugiados.

Nas palavras de Bauman,

como esse modo de vida (o moderno) deixou de ser um privilégio de algumas terras selecionadas, os escoadouros básicos para a remoção do refugo humano, ou seja, as terras "vazias" ou "de ninguém" (mais precisamente, os territórios que, graças ao diferencial de poder global, podiam ser vistos como vagos e/ou sem dono), desapareceram. Para as "pessoas redundantes" agora produzidas nas partes do planeta que há pouco alcançaram a modernidade ou caíram sob o seu jugo, esses escoadouros nunca existiram - nas chamadas sociedades "pré-modernas", inocentes em relação ao problema do lixo, fosse ele humano ou não, essa necessidade nem chegou a aparecer. Como efeito desse bloqueio dos escoadouros externos ou de sua indisponibilidade, as sociedades voltam cada vez mais contra si mesmas o gume afiado das práticas exclusivistas8.

Sob o pretexto de difundir a modernização e o progresso, colonizadores e imperialistas dizimaram sociedades inteiras, resultando não apenas na extinção de culturas, mas também em guerras civis, no aumento das desigualdades sociais e da miséria.

Como dito, outra consequência é o número cada vez maior de refugiados:

A miséria prolongada leva milhões de pessoas ao desespero, e, na era da terra de fronteira global e do crime globalizado, dificilmente se poderia imaginar que houvesse uma "carência" de empresas ávidas por ganhar algum dinheiro, ou alguns milhões, se aproveitando desse desespero. (...) milhões de migrantes vagam por estradas que já foram trilhadas pela "população excedente" descarregada pelas estufas da modernidade - só que na direção inversa, e desta vez desassistidas (pelo menos até agora) por exércitos de conquistadores, comerciantes e missionários9.

Ainda na visão de Habermas, há um limite para a ampliação da reprodução material, o qual, ao ser ultrapassado - como ocorre nas sociedades industriais avançadas -, começa a gerar "efeitos colaterais patológicos". Tais patologias (peculiares do capitalismo avançado), que, para Habermas, são os custos da modernização, consistem na chamada "colonização do mundo da vida" e no "empobrecimento cultural."10

Fala-se em colonização do mundo da vida quando a expansão dos direitos sociais cria um novo tipo de dependência entre o cliente e o sistema de administração; ou seja, com a modernização e o capitalismo, surgiram novas demandas e necessidades nas sociedades, o que, por sua vez, incitaram o surgimento de novos direitos sociais e uma maior participação do Estado. E essa juridicização da vida social acaba por neutralizar a participação efetiva dos cidadãos na esfera pública.

Desse modo, quando os processos de transmissão cultural, integração social e socialização passam a sofrer uma maior intermediação pelo capital, são geradas as patologias peculiares do capitalismo avançado, como, por exemplo, o aumento da dependência dos administrados em relação ao Estado.

Nas palavras de Stephen White:

Quando Habermas descreve a ameaça colocada pela expansão dessa "rede de relações de clientes" sobre áreas de centro do mundo da vida, é difícil não pensar no trabalho de Foucault e sua imagem de uma sociedade cada vez mais "carcerária". A descrição de Habermas do papel da reificação e especialização na definição, categorização e organização da vida cotidiana guarda uma forte semelhança com a análise de Foucault de como os "discursos" associados à crescente organização da vida moderna criam novas maneiras de subjugar as pessoas, enquanto ostensivamente ampliam sua liberdade e bem-estar11.

Além dessa relação do Estado com o administrado, a juridicização da vida social altera, também, a relação entre a economia e o consumidor: o consumismo e a mercantilização crescentes alteram as formas de lazer e de vida familiar, por exemplo. As pessoas passam a seguir padrões impostos pelo capitalismo avançado.

Isto leva ao segundo custo da modernização previsto por Habermas, que é o empobrecimento cultural: "desintegração elitista de culturas de especialistas dos contextos de prática cotidiana"12.

Para o filósofo, o problema é a ideologia, já que formas de argumentação cada vez mais especializadas se tornam o fator mais importante para os experts e, consequentemente, os indivíduos perdem contato com os processos de compreensão, havendo uma produção de conhecimento fragmentado.

Culturas isoladas e fragmentação da consciência são funcionais para o capitalismo avançado:

O cidadão de uma sociedade industrial avançada é realmente bombardeado com quantidades maiores de informação, mas o conhecimento que resulta desta permanece "difuso" e difícil de ser empregado de maneiras críticas13.

Diante desse contexto de excesso de dados e a consequente dificuldade de escolha das informações úteis, para Habermas, vive-se numa "cultura definitivamente desencantada" (partindo do conceito de desencanto de Weber).

Sendo assim, no âmbito da cultura, da sociedade e da pessoa, surgem distúrbios como o empobrecimento cultural, o colapso da tradição (entendida como mantenedora da noção de comunidade), as anomias, as crises na educação e, até mesmo, as psicopatologias.

Como afirmam os filósofos Adorno e Horkheimer, da Escola de Frankfurt: "O indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos. Ao mesmo tempo, estes elevam o poder da sociedade sobre a natureza a um nível jamais imaginado"14.

Diante disso, as promessas referentes à concretização e respeito dos direitos humanos não se consumaram. A realidade mostra que milhões de pessoas não desfrutam do mínimo direito à vida; as taxas de desemprego são altíssimas; ainda há pessoas em situações de trabalho escravo; enfim, o ser humano se tornou supérfluo e descartável.

4 Projetos da Modernidade

Tendo em vista o modelo de racionalidade cartesiana que lhe é subjacente, pode-se afirmar que o projeto da modernidade é repleto de dicotomias: sujeito/objeto, cultura/natureza, arte/vida, estilo/função, sociedade/indivíduo, público/privado. E, além desta característica, o projeto da modernidade é marcado pela ausência (ou pela extrema deficiência) de mediações entre essas dicotomias, o que acaba por exacerbar a polarização entre elas:

Em momentos diferentes ou em setores diferentes da vida social atribui-se total precedência, ora a um dos pólos, ora ao outro, ao subjetivismo ou ao objetivismo, ao esteticismo ou ao vitalismo, ao coletivismo ou ao individualismo ou ainda na base de todas estas, vigências exageradas, ao formalismo ou ao informalismo15.

Esses dois aspectos do projeto da modernidade, segundo Boaventura de Souza Santos, parecem ter ficado mais críticos a partir do final do século XX e do início do século XXI:

podemos caracterizar o tempo presente como de um novo movimento que parece ser também o do estatismo para o civilismo, do coletivismo para o individualismo, do publicismo para o privatismo, das estética modernista para a estética pós-modernista, da totalidade estruturalista para a desconstrução pós-estruturalista16.

Nesse contexto de mundo polarizado e de dicotomias, Habermas, na sua Teoria do Agir Comunicativo, apresenta uma teoria da modernidade, alicerçada numa razão comunicativa e numa teoria da sociedade.

O filósofo alemão afirma que é preciso encontrar soluções para as patologias derivadas da modernização (são os custos da modernização vistos acima), por meio de um agir comunicativo, o qual é caracterizado pela intersubjetividade (torna-se comum a razão do discurso) e pela normatividade (há regras para a atuação).

Portanto, a teoria da modernidade de Habermas pretende entender (analisar, criticar e julgar) os acontecimentos históricos que levaram à evolução das sociedades, estabelecendo um projeto:

Habermas admite que os processos históricos desencadeados pelo pensamento iluminista, a partir da Revolução Francesa, como a contra-revolução, a formação da Europa dos Estados-Nação, e outras transformações históricas que deram origem às modernas sociedades ocidentais, não podem ser compreendidos como realizações do projeto original. (...) O conceito normativo de modernidade implica primeiro a superação das patologias da modernidade historicamente concretizada. Sugere reacoplar o mundo vivido ao mundo sistêmico, dando prioridade ao primeiro. A fixação de objetivos políticos, a organização da economia devem, em última instância, respeitar a volonté générale formada e validada nas instituições do cotidiano do mundo vivido. O caráter sistêmico, auto-regulador da reprodução material da sociedade, deve ser respeitado na medida em que assegure o bem-estar de todos17.

Após a resolução das patologias, torna-se possível o resgate do projeto de modernidade, baseado no original ideal iluminista, modificando apenas a sua forma, já que confirma a prioridade da razão, mas é uma razão comunicativa.

Ademais, esse projeto de Habermas recupera a ideia de perfeição humana individual e social, defendendo que cada indivíduo deve ser emancipado e deve ter liberdade na sociedade. E, por fim, trata-se de uma teoria que objetiva a criação de um projeto com viés prático, sendo inacabado e que, portanto, precisa sempre ser exercido.

Dessa forma, nos dizeres de Bárbara Freitag:

Essa teoria normativa da modernidade tem implicações práticas quando tem como objeto facilitar os processos de auto-esclarecimento de sujeitos e grupos em busca de orientações para suas ações. Essa teoria os ajuda a compreender as condições sociais, a constelação de interesses e os processos culturais que viabilizam, controlam e, em certos casos, limitam patologicamente suas ações. Mas Habermas adverte: Também uma teoria com intenções práticas não fornece outra coisa senão hipóteses plausíveis; ela precisa ser continuada, e não apenas no sistema das ciências; ela precisa ser continuada na formação discursiva das vontades e da auto-reflexão daqueles que buscam orientação para suas ações18.

Norberto Bobbio fala sobre o "mal-estar do homem de razão", fazendo referência à ambiguidade da história:

À medida que nossos conhecimentos se ampliaram (e continuam a se ampliar) com velocidade vertiginosa, a compreensão de quem somos e para onde vamos tornou-se cada vez mais difícil. (...) Esse contraste entre a exigência incontornável de captar em sua globalidade o conjunto dos problemas que devem ser resolvidos para evitar catástrofes sem precedentes, por um lado, e, por outro, a crescente dificuldade de dar respostas sensatas a todas as questões que nos permitiriam alcançar aquela visão global, única a permitir um pacífico e feliz desenvolvimento da humanidade, esse contraste é um dos paradoxos do nosso tempo, e, ao mesmo tempo, um das razões das angústias em que se encontra o estudioso19.

Acerca dessa ambiguidade da História e ainda tratando de um possível projeto da modernidade, pode ser analisado o estudo de Immanuel Kant, que apresenta uma visão otimista e acredita no progresso indefinido da humanidade.

Para ele, com a Revolução Francesa, em 1789, ficou clara a tendência moral da humanidade: "encontrou nos espíritos de todos os espectadores uma participação de aspirações que se aproximava do entusiasmo"20; isto é, para ele, a História segue na direção do progresso - uma direção consciente para um objetivo.

Entretanto, apesar de Kant acreditar que o que impulsiona o progresso é o conflito (como foi a Revolução Francesa - um evento extraordinário que iniciou uma nova tendência na humanidade), ele sabe que é necessário o seu disciplinamento, que proporcione a constituição de um ordenamento civil universal.

Nesse sentido, tratando das ideias de Kant, Bobbio afirma:

Numa época de guerras incessantes entre Estados soberanos, ele observa lucidamente que "a liberdade selvagem" dos Estados já constituídos, "por causa do emprego de todas as forças da comunidade nos armamentos, das devastações que decorrem das guerras e, mais ainda, da necessidade de manter-se continuamente em armas, impede, por um lado, o pleno e progressivo desenvolvimento das disposições naturais, e, por outro, em função dos males que daí derivam, obrigará a nossa espécie a buscar uma lei de equilíbrio entre muitos Estados que, pela sua própria liberdade, são antagonistas, bem como a estabelecer um poder comum que dê força a tal lei, de modo a fazer surgir um ordenamento cosmopolita de segurança pública"21.

E, a partir dessa ideia de uma "cosmópolis", estaria o ideal de que todo homem é potencialmente um cidadão do mundo e, não, apenas de um só Estado.22

Em sua obra Para a Paz Perpétua (1795), Kant trata de três artigos definitivos do tratado imaginário para se chegar a uma paz perpétua: o primeiro afirma que a Constituição de todos os Estados deve ser republicana; o segundo dispõe que o Direito Internacional deve se fundar numa federação de Estados livres; por fim, o terceiro diz que o direito cosmopolita deve ser limitado às condições de uma hospitalidade universal.

Tratando-se de uma possível proposta para a modernidade, essa ideia de Kant acerca de um direito cosmopolita, baseado numa relação de reciprocidade e no dever de hospitalidade universal, parece ser uma boa opção para a efetivação dos direitos humanos, seja no âmbito interno dos Estados, seja no cenário internacional.

Inclusive, diante dos principais desafios dos direitos humanos na ordem contemporânea:

1) No que concerne à fundamentação dos direitos humanos, surge o debate entre o universalismo e o relativismo: para os universalistas, esses direitos são decorrentes da própria condição humana, defendendo-se a existência de um mínimo ético irredutível; para os relativistas, a noção de direitos humanos está relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade e, assim, não há uma moral universal, já que há uma pluralidade de culturas. Nas palavras de Flávia Piovesan:

Acredita-se, de igual modo, que a abertura do diálogo entre as culturas, com respeito à diversidade e com base no reconhecimento do outro, como ser pleno de dignidade e direitos, é condição para a celebração de uma cultura dos direitos humanos, inspirada pela observância do "mínimo ético irredutível", alcançado por um universalismo de confluência23.

2) Outro desafio está relacionado ao Estado laico, uma vez que ele é garantia para o exercício dos direitos humanos, não podendo a ordem jurídica dos Estados Democráticos de Direito ser convertida na moral de alguma religião; isto é, no Estado laico, todas as religiões devem ser consideradas de forma igual, não devendo existir uma religião oficial.

3) O terceiro desafio diz respeito ao direito ao desenvolvimento (globalização econômica) e às assimetrias globais, dentre as quais: aumento exponencial no número de refugiados, danos ambientais, pobreza e desigualdades sociais. Nesse sentido, tendo em vista que se vive em um mundo polarizado, torna-se imprescindível uma globalização mais ética e solidária, sendo fundamental o constante fortalecimento do processo de afirmação dos direitos humanos.

4) O quarto desafio dos direitos humanos é concernente ao respeito à diversidade em face das diversas manifestações de intolerância, sendo necessária a especificação do sujeito de direito; ou seja, crianças, mulheres, migrantes, afrodescendentes, entre outras categorias consideradas vulneráveis, devem ser vistas de forma específica e peculiar, de acordo com sua condição social.

Boaventura de Souza Santos, citado por Flávia Piovesan, afirma:

Temos direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza desigualdades24.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo tratou de possíveis projetos da modernidade, partindo da atual situação dos direitos humanos e tentando alcançar uma solução para os males trazidos pela modernização.

Primeiramente, foi feito um breve histórico do surgimento dos direitos humanos, chegando-se à conclusão de que são direitos históricos, decorrentes de lutas sociais e que não param de evoluir, além de sempre necessitarem de afirmação e reconstrução.

Em seguida, a despeito da construção dos direitos humanos, tratou-se das consequências e dos chamados "custos da modernização", passando pelas ideias de Bauman, acerca do "refugo humano", e de Habermas, sobre a "colonização do mundo da vida" e o "empobrecimento cultural".

Por fim, foram apresentadas teorias para a modernidade, tendo em vista a exclusão dos ônus gerados e, principalmente, a efetivação dos direitos humanos: Habermas, com sua teoria do agir comunicativo, baseado no consenso; e Kant, com seu ideal de direito cosmopolita e de cidadãos do mundo.

Com efeito, a modernidade prometia incluir e emancipar a todos, por meio da razão iluminista e de uma ciência tecnicista e especialista, que permitiria ao homem grande conhecimento e domínio da natureza.

No entanto, essas promessas da modernidade, de inclusão e de emancipação de todos, não foram cumpridas. Como diz Boaventura de Sousa Santos:

(...) depois de dois séculos de promiscuidade entre modernidade e capitalismo, tais promessas, muitas delas emancipatórias, não podem ser cumpridas em termos modernos nem segundo os mecanismos desenhados pela modernidade25.

Ainda, nas palavras de Bauman: "a beleza, juntamente com a felicidade, tem sido uma das mais excitantes promessas modernas e um dos ideais que instigam o inquieto espírito moderno"26. Mas essa beleza ainda não foi alcançada.

Nesse contexto de angústia, de inquietude e de violação de direitos humanos, é necessário rever o original projeto da modernidade e estabelecer novas diretrizes.

Parece-nos que as ideias de Habermas, sobre um consenso no agir comunicativo, e de Kant, sobre um ordenamento jurídico cosmopolita, poderiam ser transformadas numa conjuntura de cooperação entre os povos.

A cooperação e o diálogo são o caminho para a compreensão e para o respeito mútuos, a fim de se chegar a um acordo final, com uma convivência pacífica e solidária.

Para tanto, nesse mundo globalizado em que vivemos, resta tentar respeitar as diversas culturas e manter um diálogo pacífico. E um bom começo seria por meio da educação, tanto no sentido formal (nas escolas), quanto no sentido de conscientização das pessoas acerca do "coletivo" e, não, do "indivíduo".

Assim, talvez se consiga chegar a um "tempo" de convivência pacífica, onde haja cooperação e real efetividade dos direitos humanos.

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__________

1 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos F. Moisés e Ana M. L. Ioriatti. Editora Companhia das Letras. São Paulo, 1986, introdução.

2 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 8ª ed. Saraiva. São Paulo, 2013.

3 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos - um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. Companhia das Letras. São Paulo, 1988.

4 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e Justiça Internacional - um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 5ª ed., rev., ampl. e atual. Saraiva. São Paulo, 2014.

5 MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito - dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. Editora Martins Fontes. São Paulo, 2006.

6 BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Editora Zahar. Rio de Janeiro, 2005, p. 8.

7 Op. cit.

8 Ibid, p. 90.

9 Ibid, pp. 93 e 94.

10 WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade - a obra recente de Jürgen Habermas. Trad. Márcio Pugliesi. Editora Ícone. São Paulo, 1995.

11 Ibid., p. 111.

12 Op. cit.

13 Ibid., p. 114.

14 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido A. de Almeida. Editora Zahar. Rio de Janeiro, 1985, p. 3.

15 SANTOS, Boaventura de Souza. O Estado e o Direito na Transição Pós-moderna: para um novo senso comum. Revista Humanidades, vol. 7, núm. 3., 1991, p. 14.

16 Op. cit., p. 15.

17 FREITAG, Bárbara. Habermas e a Filosofia da Modernidade. Editora Perspectivas. São Paulo, 1993, p. 43.

18 Op. cit., p. 44.

19 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Nova edição. Editora Elsevier. Rio de Janeiro, 2004, p. 120.

20 Op. cit., p. 124.

21 Ibid., p. 125.

22 Esta proposta poderia ser a chave para a solução da problemática das pessoas deslocadas no mundo, principalmente os apátridas.

23 Ibid., pp. 53 e 54.

24 Ibid., p. 67

25 Ibid., p. 35.
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*Lícia Christynne Ribeiro Porfírio é advogada, especialista em Direito Internacional.

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