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Licença compulsória e medicamentos no Brasil

Fernando Braune

A patente é uma via de mão dupla, tendo, de um lado, o titular com o seu direito de excluir terceiros, sem o seu consentimento, de utilizar comercialmente o objeto da patente, enquanto que, do outro, fluem os deveres a serem cumpridos por ele. Por ser um título de propriedade outorgado pelo Estado, a patente deverá retornar à sociedade algo por ela alcançado. Sendo assim, o privilégio exercido pela patente possui um limite além do temporal, não podendo exceder a suas prerrogativas sociais. Para a manutenção do equilíbrio, deverá prevalecer o princípio da proporcionalidade entre esses dois requisitos - a proteção da propriedade e o interesse público.

quarta-feira, 21 de junho de 2006

Atualizado em 20 de junho de 2006 14:23


Licença compulsória e medicamentos no Brasil


Fernando Braune*


A patente é uma via de mão dupla, tendo, de um lado, o titular com o seu direito de excluir terceiros, sem o seu consentimento, de utilizar comercialmente o objeto da patente, enquanto que, do outro, fluem os deveres a serem cumpridos por ele. Por ser um título de propriedade outorgado pelo Estado, a patente deverá retornar à sociedade algo por ela alcançado. Sendo assim, o privilégio exercido pela patente possui um limite além do temporal, não podendo exceder a suas prerrogativas sociais. Para a manutenção do equilíbrio, deverá prevalecer o princípio da proporcionalidade entre esses dois requisitos - a proteção da propriedade e o interesse público.


Esse duplo objetivo encontra respaldo no artigo 5º, inciso XXIX da Constituição Federal brasileira de 1988, o qual estabelece que "a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país". Portanto, o texto constitucional privilegia o uso exclusivo da propriedade, desde que não haja prejuízo ao interesse social e econômico do país, abrindo brechas para se estabelecer, em lei específica, salvaguardas contra possíveis abusos ao direito conferido pela patente, como é o caso da licença compulsória.


Na legislação brasileira, a licença compulsória de patentes é regulada pelos artigos 68 a 74 da Lei de Propriedade Industrial, a Lei nº 9.279, de 1996 (clique aqui), encontrando amparo legal no Acordo TRIPs, na Declaração de Doha, na Convenção da União de Paris (CUP) e, principalmente, no citado artigo 5°, inciso XXIX da Constituição Federal. Nesses casos, para que a licença compulsória seja concedida deverá existir a constatação do não-atendimento ao interesse público, comprovado por documento hábil e contendo fundamentação legal e fática.


Em dois momentos o governo brasileiro entendeu que o interesse público estava sendo prejudicado em detrimento do direito de propriedade. Primeiramente, no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e posteriormente no atual governo Lula, provocando, nos dois casos, redução substancial nos preços dos medicamentos.


A licença compulsória não deve ser, portanto, encarada como uma panacéia para soluções de curto prazo


No intuito de regulamentar o programa da aids no Brasil, o Ministério da Saúde elaborou a Portaria nº 1.360, de 23 de julho de 2003, a qual criou o Grupo de Negociação para Aquisição e Produção de Medicamentos Anti-Retrovirais, tendo, dentre outras, a responsabilidade de adequar os preços dos medicamentos à disponibilidade orçamentária do Ministério da Saúde. Portanto, o que se pode depreender de suas funções é que o grupo deverá tentar uma negociação com as empresas detentoras das patentes para que haja redução nos preços de seus medicamentos, de forma a que eles se adequem à limitação orçamentária do governo brasileiro.


Não restam dúvidas de que o governo tem respaldo legal para lançar mão da licença compulsória, uma vez constatado o direito de propriedade se sobrepondo ao interesse público. No entanto, levando-se em consideração as responsabilidades do referido grupo, não se tem total clareza a respeito da real motivação para o requerimento da licença compulsória conforme implementada.


Diante da situação levantada, fica a questão: o governo está realmente comprando os medicamentos anti-retrovirais por um preço excessivamente alto ou o problema encontra-se na precária dotação orçamentária do Ministério da Saúde para o programa da aids? Caso esta última premissa prevaleça, não parece haver fundamento legal para a requisição de uma licença compulsória tendo como base insuficiência orçamentária governamental. Nestes casos, os direitos de propriedade não deveriam sofrer limitação em função de problemas internos da administração pública.


Na realidade, a questão da manutenção da qualidade do programa da aids no Brasil vai além da licença compulsória e das negociações de redução de preços dos medicamentos. Nada adiantará o Brasil permanecer eternamente discutindo preços ou ameaçando empresas produtoras de medicamentos, pois estas serão sempre medidas emergenciais, de eficácia, quando muito, a curto prazo. Enquanto o país não se conscientizar da necessidade de produzir os próprios princípios ativos para a produção dos medicamentos, o titular das patentes poderá explorá-las legalmente e continuaremos a vivenciar o drama da negociação de preços.


A licença compulsória, portanto, não deve ser encarada como uma panacéia para soluções de curto prazo. Embora a matéria a que se tem proposto a licença compulsória no Brasil esteja envolvida por uma aura de emotividade, faz-se necessária isenção na sua interpretação jurídica, aplicando-a dentro de sua legalidade, lembrando sempre que ela é uma exceção ao direito de exclusividade conferido pela patente, trazendo, assim, desdobramentos diretos a quem investiu no desenvolvimento de novos produtos, em prol de toda a humanidade.

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* Engenheiro químico e agente da propriedade industrial do escritório Daniel Advogados









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