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Desastres, categoria de risco e dano potencial associado em barragens

O desafio não é somente a construção do marco regulador, é também ultrapassar um paradigma de compreensão cultural e jurídica que ignora o Direito dos Desastres como uma ramificação própria e específica na sociedade complexa e de risco.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Atualizado em 31 de julho de 2017 16:50

O desastre socioambiental de Mariana é um marco na sociedade brasileira. Não somente pelos efeitos catastróficos ocorridos, mas também por sua necessária tematização quando se debate o marco regulador do risco. Marco regulador que determina uma necessária estruturação de aplicabilidade do Direito dos Desastres, afastando a plataforma comum e linear própria da responsabilidade civil. Isto significa que desastres ambientais não devem ser pensados na ótica da responsabilidade civil ordinária, cuja linha sequencial entre dano e reparação é linear, mas sim na ótica circular das causas dos desastres.

Sob o paradigma do Direito dos Desastres, a sujeição a situações de ameaça socioambiental é constante, o que exige uma percepção cíclica que considere etapas e sucessão concatenada de ações. O ciclo de desastres remete a ações voltadas para mitigação do risco de ocorrência; desenvolvimento do planejamento e da execução de respostas em face do desastre e de situações de emergência geradas; adoção de medidas e programas de compensação e estabilização; reconstrução das áreas e vidas afetadas, seguindo-se de novos painéis de execução e planejamento de mitigação, com reabertura do ciclo1.

O Direito dos Desastres trabalha sob o paradigma da correlação entre potencialidade de ocorrência, ou probabilidade, e magnitude dos efeitos da ocorrência. Isto significa que a baixa probabilidade de ocorrência não é fator de desacompanhamento do risco, pelo contrário, é fator de maior atenção quando a magnitude dos eventos possíveis gere uma expectativa aterradora de consequências. Inserida nesse marco regulador, adveio a Portaria 70.389, de 17/5/17, editada pelo Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, que visa efetivar e regulamentar as bases normativas da lei 12.334, de 20/9/10, relativa à Política Nacional de Segurança de Barragens - PNSB.
A Portaria cria o Cadastro Nacional de Barragens de Mineração e o Sistema Integrado de Gestão em Segurança de Barragens de Mineração. Considerando a natureza triangular da gestão de dados de risco, pela qual o órgão público labora com relatórios que lhe são apresentados, e não por ele próprio produzidos, como geralmente se imagina, a Portaria estabelece a periodicidade de execução ou atualização, a qualificação dos responsáveis técnicos, o conteúdo mínimo e o nível de detalhamento do Plano de Segurança da Barragem, das Inspeções de Segurança Regular e Especial, da Revisão Periódica de Segurança de Barragem e do Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração.

Destacam-se aqui duas variáveis essenciais na consideração da gestão do risco. A categoria de risco da barragem e o dano potencial associado. A categoria de risco remete à classificação da barragem de acordo com os aspectos que possam influenciar na possibilidade de ocorrência de acidente, levando-se em conta as características técnicas, o estado de conservação e o Plano de Segurança da Barragem. Os riscos podem ser aqui enquadrados como alto, médio ou baixo. A classificação é alcançada segundo a pontuação que o empreendimento receba na análise técnica.

A Inspeção de Segurança Regular de Barragem deve ser realizada pelo empreendedor, ou seja, é sua atribuição inerente, considerando dever de prevenção e mitigação de risco, etapa primeira na gestão do risco de desastres. Os relatórios são enviados ao DNPM, donde os dados e aferições são geradores de responsabilidade do empreendedor e dos profissionais envolvidos. Cabe ainda ao empreendedor e ao responsável técnico da análise assinarem e encaminharem ao DNPM a Declaração de Condição de Estabilidade - DCE - da barragem, documento assinado pelo empreendedor e pelo responsável técnico que o elaborou, atestando a condição de estabilidade da estrutura. A não apresentação da DCE determina o embargo imediato da barragem.

A categoria de risco da barragem está ligada à potencialidade de ocorrência, ou probabilidade de materialização do desastre ou dano ambiental. Coisa diferente é o dano associado. É possível, e comum, um empreendimento cuja categorização de risco seja baixa, mas cuja proporção de dano associado seja alta. Para fins de comparação, a situação remete a um acidente aéreo. Seu dano associado é alto, embora a categoria de risco seja mais baixa, por exemplo, do que acidentes automobilísticos em algumas rodovias.

O dano potencial associado - DPA - refere-se aos efeitos de ocorrência acaso se materialize o desastre. Nesse sentido, a Portaria o define como aquele que pode ocorrer devido ao rompimento ou mau funcionamento de uma barragem, independentemente da sua probabilidade de ocorrência, a ser graduado de acordo com as perdas de vidas humanas, impactos sociais, econômicos e ambientais. A relevância não fica assim somente na consideração da prevenção do dano socioambiental, mas na sua dimensão de ocorrência, independente da probabilidade. Isso significa a possibilidade de um empreendimento ter um dano potencial associado alto mesmo sendo de uma categoria de risco baixa.

A combinação entre categoria de risco e dano potencial associado é um dos pilares na concretização do marco regulador do risco de desastres, assim como é o parâmetro de configuração da gestão do risco e da atuação fiscalizatória do Poder Público. A perspectiva da responsabilidade civil, em sua matriz civilista de construção é não somente inadequada, mas incompatível com um patamar cíclico de gestão dos desastres em uma sociedade de risco. Não obstante, o quadro jurídico brasileiro ainda está mergulhado na compreensão linear dos danos socioambientais, mesmo quando sua dimensão revele situação de reprodução e magnitude de lesão. O desafio não é somente a construção do marco regulador, é também ultrapassar um paradigma de compreensão cultural e jurídica que ignora o Direito dos Desastres como uma ramificação própria e específica na sociedade complexa e de risco.

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1 CARVALHO; Délton Winter de. DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 33.

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*Marcelo Kokke é especialista em processo constitucional; Procurador Federal da Advocacia-Geral da União; Professor de Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara; Professor de Pós-graduação da PUC-MG; Professor colaborador da Escola da Advocacia-Geral da União; Professor do IDDE - MG; Membro da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil; Membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública; Membro da Academia Latino Americana de Direito Ambiental.

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