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Imunidade tributária das organizações da sociedade civil, segundo o STF

O julgamento em testilha serviu para sedimentar um entendimento já influente no judiciário pátrio, tornando-se, nesta senda, incontestável que as condições capazes de regulamentar o instituto da imunidade tributária das organizações da sociedade civil, devem obrigatoriamente ser aqueles previstos em lei complementar - regras essas que despontam, atualmente, no art. 14 do Código.

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Atualizado às 17:36

O instituto da imunidade tributária, para as entidades beneficentes de educação, de saúde e de assistência social (atualmente denominadas como "organizações da sociedade civil"1 ), encontra-se previsto no artigos 150, inciso VI, alínea 'c' (imunidade dos impostos) e 195, §7 (imunidade das contribuições destinadas à seguridade social), ambos da Constituição da República de 1988, assegurando a essas organizações, o direito de ter o seu patrimônio, renda ou serviços, imune ao alcance dos impostos de competência da União, Distrito Federal, Estados e Municípios.

O dispositivo assegura às referidas organizações o direito à imunidade "desde que atendidos os requisitos da lei". Mas que tipo lei?

Em razão dessa dúvida, muito embora a presente questão apresenta-se de modesta constatação, as organizações da sociedade civil viram a necessidade de ir ao judiciário para ter o seu direito constitucional reconhecido com base no preenchimento dos 3 (três) requisitos previstos no art. 14 do CTN.

As ações judiciais fundaram-se na necessidade de desburocratizar o reconhecimento à benesse constitucional em favor das organizações, pois considerando-se que elas desempenham atividades complementares à atividade estatal - conforme art. 6º da Constituição da República Federal de 1988 -, deveria o Estado (destinatário da norma limitadora do art. 150, VI, 'c' da CR/88) assegurar às organizações condições simplificadas para zelarem (em seu nome e da própria sociedade), pelos direitos sociais à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

Ocorre que o Estado, em desconformidade com a orientação constitucional, editou diversas normas jurídicas2 hierarquicamente inferiores à lei complementar para regulamentar o direito à imunidade tributária, exigindo das organizações um série de requisitos, tais como a determinação de obter certificados de entidades beneficentes de assistência social (CEBAS), o reconhecimento como entidade de utilidade pública, exercício das assistenciais atividades de modo gratuito, celebração de convênios com o SUS e reserva de 60% dos seus leitos ao referido Sistema (organizações de saúde), concessão de bolsas de estudo para 20% dos alunos pagantes (organizações de educação), dentre várias outras condições que, nitidamente, extrapolam os 3 (três) requisitos previstos no CTN.

Sacha Calmon Navarro Coêlho faz questionamento análogo em sua obra e responde que obviamente é a lei complementar que deve regular o referido instituto, pois a imunidade tributária é limitação ao poder de tributar imposta pela Constituição da República em face do Estado3.

Neste esteio, Paulo de Barros de Carvalho, classifica a imunidade como a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional para instituir regras definidora de exações que alcancem determinadas situações, suficientemente caracterizadas4. Misabel Derzi, em nota de atualização à obra do saudoso Aliomar Baleeiro, por sua vez, sustenta que imunidade tributária é uma regra de exceção, somente inteligível se conjugada à outra que limita o poder tributário a extensão de forma lógica e não sucessiva no tempo5 .

Assim, torna-se imperativo responder o questionamento supra com os olhos voltados para a Constituição da República de 1988, encontrando apoio no artigo 146, que prevê que as matérias relativas às limitações impostas ao Estado, pois reserva legal exige a obrigatoriedade de tratamento de determinadas e específicas matérias por meio de lei complementar6 envolvendo sempre questão de competência.

Ou seja, determinadas matérias somente podem ser manejadas mediante texto expresso em lei, sendo vedado a atribuição a qualquer outra espécie normativa, senão a própria lei complementar, conforme inciso II do artigo 146, assegurando-se que caberá lei complementar para regular as limitações ao poder de tributar.

Nesta senda, as organizações da sociedade civil travaram verdadeira batalha judicial em face do Estado, com o fito de ser reconhecido o seu direito constitucional à imunidade tributária, desde que preenchidas apenas as condições prescritas em lei complementar. É cediço, neste contexto, que a única norma jurídica com status7 de lei complementar que versa sobre o instituto da imunidade tributária, é a lei 5.172 de 25 de outubro de 1996, conhecida popularmente como Código Tributário Nacional.

A norma jurídica traz no seu bojo os seguintes requisitos de observância obrigatória pelas organizações:

Art. 14. O disposto na alínea c do inciso IV do artigo 9 é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:

I - não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; (Redação dada pela Lcp
104, de 2001)

II - aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;

III - manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.

O referido embate chegou ao Supremo Tribunal Federal em Outubro de 2007, por meio do Recurso Extraordinário 566.622, do Rio Grande do Sul. Quando da sua recepção, o Ministro Marco Aurélio reconheceu a repercussão geral do tema, ante a circunstância do posicionamento a ser aferido pela Suprema Corte definir as ações análogas em trâmite nos tribunais federais e estaduais, admitindo-se a repercussão geral, a fim de que o pronunciamento sobre a higidez, ou não, do artigo 55 da lei 8.212/91 obtivesse contornos vinculantes.

O julgamento iniciou-se em Junho de 2014, sendo proferido voto favorável às organizações da sociedade civil pelos ministros Marco Aurélio (Relator), Joaquim Barbosa (Presidente, à época do julgamento), Cármen Lúcia (atual Presidente da Suprema Corte) e Roberto Barroso. O julgamento foi interrompido pelo Ministro Teori Zavascki nesta assentada que, em Outubro de 2016, proferiu voto negando provimento ao Recurso da Organização, que foi acompanhado pelos Ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski.

Em Fevereiro de 2017, deu-se prosseguimento ao julgamento e por maioria dos votos, com reajuste de voto pelo Ministro Lewandowski, apreciando-se o tema da repercussão geral, deu-se provimento ao Recurso Extraordinário interposto pela organização da sociedade civil, fixando-se a tese de que "os requisitos para o gozo de imunidade hão de estar previstos em lei complementar".

Conforme voto do Ministro Marco Aurélio, quando o legislador ordinário edita norma jurídica contendo outros requisitos além dos previstos no Código Tributário Nacional, sob o argumento de este dispor de regras da constituição e funcionamento das entidades beneficentes, esta, na verdade, restringindo o alcance subjetivo da regra constitucional, impõe condições disfarçadas reveladoras de autênticos limites à imunidade. Em seu voto, destaca o Ministro que a Constituição da República de 1988, autorizou as limitações com o nítido propósito de assegurar que as entidades beneficentes cumpram efetivamente o papel de auxiliar o Estado na prestação de assistência social.

Não significa que as entidades estejam livre de certificações ou titulações, sendo que, sob a ótica constitucional, tais condições possuem apenas eficácia declaratória, de modo que a sua negativa de registro implique motivo para o controle da Receita Federal do Brasil, que tem o condão de investigar se a entidade atende ou não às condições previstas em lei complementar - condições dispostas no art. 14 do CTN.

Em sua conclusão, devidamente acompanhada pela maioria dos ministros da Suprema Corte, os requisitos previstos em normas jurídicas inferiores à lei complementar que regulamentam o exercício da imunidade tributária, que despontem como condições prévias para o gozo da benesse, devem ser reconhecidos como inconstitucionais, pois extrapolam os requisitos dispostos no art. 14 do Código Tributário Nacional, por violação ao artigo 146 da Constituição da República de 1988:

"Em síntese conclusiva: o artigo 55 da lei 8.212, de 1991, prevê requisitos para o exercício da imunidade tributária, versada no § 7 do artigo 195 da Carta da República, que revelam verdadeiras condições prévias ao aludido direito e, por isso, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade formal desse dispositivo no que extrapola o definido no artigo 14 do Código Tributário Nacional, por violação ao artigo 146, inciso II, da Constituição Federal. Os requisitos legais exigidos na parte final do mencionado § 7, enquanto não editada nova lei complementar sobre a matéria, são somente aqueles do aludido artigo 14 do Código."

O Acórdão relativo ao presente recurso foi publicado em 23/8/17, com a seguinte ementa:

IMUNIDADE - DISCIPLINA - LEI COMPLEMENTAR. Ante a Constituição Federal, que a todos indistintamente submete, a regência de imunidade faz-se mediante lei complementar8.

A conclusão que se chega é que o julgamento em testilha serviu para sedimentar um entendimento já influente no judiciário pátrio, tornando-se, nesta senda, incontestável que as condições capazes de regulamentar o instituto da imunidade tributária das organizações da sociedade civil, devem obrigatoriamente ser aqueles previstos em lei complementar - regras essas que despontam, atualmente, no art. 14 do Código Tributário Nacional.

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1 Conforme art. 2, inciso I da lei 13.019 de 31 de julho de 2014.

2 Art. 55, da lei 8.212/91; art. 4 da lei
9.732/98; arts. 2, inciso IV; 3, inciso VI, § 1 e § 4; art. 4, parágrafo único, todos do decreto 2.536/98; assim como dos arts. 1º, inciso IV; 2, inciso IV, e § 1 e § 3; e 7, § 4, do decreto 752/93; dispositivos da lei 12.101/09, dentre vários outros, por exemplo.

3 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. - 8ª Ed. - Rio de Janeiro : Forense, 2005, p. 300

4 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 14ª ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 178

5 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. - 8ª Ed., por DERZI, Misabel Abreu Machado - Rio de Janeiro : Forense, 2010.

6 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 431.

7
Muito embora o CTN seja uma "lei ordinária", conforme sua edição no ano de 1966, data bem anterior à Constituição da República de 1988, afirma-se que o mesmo foi recepcionado pela atual Constituição, justamente por dispor das matérias enumeradas no art. 146, tal como conflito de competência, regulamentação às limitações ao poder de tributar do Estado e em razão da fixação das normas jurídicas gerais do direito tributário.

8
Supremo Tribunal Federal. RE 566622, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-186 DIVULG 22/8/17 PUBLIC 23/8/17.


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*Tales de Almeida Rodrigues é advogado, sócio do escritório Tomáz de Aquino, Costa Vilar Sociedade de Advogados.

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