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A jurisprudência defensiva ataca novamente¹

Em pleno século XXI, frente a um CPC moderno e preocupado com o exame do mérito, não há espaço para que a jurisprudência defensiva continue atormentando os jurisdicionados e a comunidade jurídica, esta que é, senão absoluta, majoritariamente contrária a tal prática.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Atualizado em 4 de setembro de 2017 11:43

"É inevitável o travo de insatisfação deixado por decisões de não conhecimento; elas lembram refeições em que, após os aperitivos e os hors d'oeuvre, se despedissem os convidados sem o anunciado prato principal" (José Carlos Barbosa Moreira, Restrições ilegítimas ao conhecimento dos recursos. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 386, ano 102, 2006, p. 155)

A jurisprudência defensiva pode ser entendida como a prática adotada pelos tribunais brasileiros, notadamente as cortes superiores, para o não conhecimento de recursos em razão de apego formal e rigidez excessiva em relação aos pressupostos de admissibilidade recursal. A inadmissão de recursos não é, por si só, o problema. O busílis reside justamente na criação de entraves formalistas (por vezes contra legem), que prezam pelo rigorismo exacerbado, pernicioso, em detrimento do exame do mérito. Esse famigerado mecanismo há muito é objeto de reprovação da doutrina.2

O advento da lei 13.105/15, responsável pela promulgação do vigente CPC, trouxe à comunidade jurídica boas esperanças no que diz respeito ao fim da jurisprudência defensiva. Isso porque o novo diploma preocupou-se em prestigiar o julgamento do mérito (tanto em primeira instância quanto em grau recursal), eliminando formalismos descomedidos, que apenas dificultavam a efetiva e completa prestação jurisdicional. Especificamente quanto ao sistema de recursos, a exposição de motivos do CPC de 2015 dispõe o seguinte: ". permite-se no novo CPC que os Tribunais Superiores apreciem o mérito de alguns recursos que veiculam questões relevantes, cuja solução é necessária para o aprimoramento do Direito, ainda que não estejam preenchidos requisitos de admissibilidade considerados menos importantes. Trata-se de regra afeiçoada à processualística contemporânea, que privilegia o conteúdo em detrimento da forma, em consonância com o princípio da instrumentalidade" (itálico nosso).

Ainda no que toca à sistemática dos recursos, é possível identificar diversos dispositivos que contribuem para extinguir (ou, em última análise, para mitigar) a jurisprudência defensiva, realçando a importância da primazia do mérito (CPC, art. 4º) e da colaboração entre os sujeitos do processo (CPC, art. 6º). Citem-se três exemplos, não exaustivos:

(I) O preenchimento incorreto ou incompleto da guia de custas era penalizado com a declaração de deserção do recurso, sendo vedada a juntada posterior da guia correta, sob o argumento de que se teria operado a preclusão consumativa.3 O § 7º do art. 1.007 do CPC resolve esse problema: prevê que o equívoco no preenchimento da guia de custas não torna o recurso deserto, cabendo ao relator intimar o recorrente para sanar o vício no prazo legal de cinco dias, se, de fato, houver dúvida quanto ao recolhimento do valor devido;

(II) O manejo de recurso especial antes do julgamento dos embargos de declaração era considerado extemporâneo se a parte recorrente deixasse de ratificar as razões recursais após a publicação da decisão do julgamento dos aclaratórios.4 O § 5º do art. 1.024 colocou pá de cal sobre a questão ao dispor o seguinte: "Se os embargos de declaração forem rejeitados ou não alterarem a conclusão do julgamento anterior, o recurso interposto pela outra parte antes da publicação do julgamento dos embargos de declaração será processado e julgado independentemente de ratificação"; e

(III) O recurso especial interposto contra acórdão embasado em matéria constitucional era, também, motivo de inadmissão.5 Em boa hora, o art. 1.032, caput, do CPC prescreve hipótese de fungibilidade entre ambos os recursos excepcionais: "Se o relator, no Superior Tribunal de Justiça, entender que o recurso especial versa sobre questão constitucional, deverá conceder prazo de 15 (quinze) dias para que o recorrente demonstre a existência de repercussão geral e se manifeste sobre a questão constitucional."

Nada obstante o esforço e o incontestável avanço normativo no trato da matéria, a jurisprudência defensiva, infelizmente, persiste. Fala-se, aqui, da questão referente à (im)possibilidade de comprovação a posteriori de feriado local para fins de atestar a tempestividade recursal.

Até o mês de setembro de 2012, o STJ não admitia a comprovação posterior de feriado local ou suspensão de expediente forense no tribunal de origem que implicasse prorrogação do prazo para apresentação de recurso. A jurisprudência dominante à época foi modificada pela Corte Especial no julgamento do AgRg no AREsp 137.141/SE, de relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, passando-se a adotar a tese de que seria possível a comprovação posterior de feriado local para fins de tempestividade. Referido julgado paradigma acompanhou o entendimento que havia sido firmado pelo Pleno do STF, em março daquele mesmo ano, no julgamento do AgRg no RE 626.358/MG, relatado pelo ministro Cezar Peluso.

Embora tenha reconhecido a ausência de vinculação da decisão exarada pela Suprema Corte, o ministro Antonio Carlos Ferreira consignou, em seu voto, que "o novo entendimento adotado pelo Pleno do e. Supremo Tribunal Federal deve ser acompanhado por este STJ, em homenagem ao ideal de uniformização da jurisprudência nacional" (itálico nosso). Ou seja: em essência, alterou-se a jurisprudência do STJ para o fim de respeitar o prévio entendimento firmado pelo STF a respeito de uma mesma questão processual.

Sucede que o STJ, a partir da entrada em vigor do CPC de 2015, alterou, uma vez mais, sua jurisprudência com relação ao tema em voga. O mais atual entendimento da Corte é no sentido de ser impossível a comprovação posterior da ocorrência de feriado local para fins de aferir a tempestividade de recursos apresentados sob a égide do novo CPC.6 Tal orientação tem se dado no âmbito daquele tribunal mediante a interpretação puramente gramatical - e, no caso, restritiva - do § 6º do art. 1.003 do CPC, assim redigido: "O recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso."

A compreensão que vem sendo conferida pelo STJ ao mencionado dispositivo é absolutamente ilegítima, pois desatende ao modelo constitucional do processo e impede a efetiva prestação jurisdicional, uma vez que ceifa o direito do jurisdicionado de ter apreciado o mérito de seu recurso, além de configurar retrocesso de todo incompatível com o espírito do CPC.

Não se nega que o § 6º do art. 1.003 do CPC impõe à parte recorrente o dever de fazer prova (em regra, documental) do feriado local no momento em que for interposto o recurso. É exatamente isso o que se infere pela leitura do texto legal. Mas não há nada que condicione a comprovação da ocorrência de feriado local somente ao ato de interposição do recurso - a ausência de tal advérbio tem relevância na interpretação dessa regra. Em outras palavras, o art. 1.003, § 6º não dispõe que o vício da falta de comprovação do feriado local é insanável.

Nesses termos, nada obsta que o operador do direito se utilize de outros meios interpretativos para alcançar a melhor exegese da regra. Aliás, é salutar que o intérprete assim proceda.

A análise sistemática do CPC leva a crer que a interpretação literal, com viés restritivo (feita pelo STJ), não reflete a melhor leitura do § 6º do art. 1.003. O estudo dessa disposição legal em conjunto com os arts. 932 e 1.029 do CPC afasta quaisquer dúvidas a esse respeito. Com efeito, o parágrafo único do art. 932 elenca verdadeiro poder-dever do relator, proibindo-o de considerar inadmissível um recurso sem antes conceder o prazo de cinco dias para que o recorrente sane eventual vício constatado ou, então, complemente a documentação exigível. Por seu turno, o § 3º do art. 1.029 permite que os tribunais superiores desconsiderem vício formal de recurso tempestivo ou determinem a sua correção, desde que o defeito não seja reputado grave.

A falta de prova acerca da ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso constitui mero vício de forma, que nem de longe pode ser declarado como sério. Trata-se da ausência de regularidade formal do recurso (requisito de admissibilidade extrínseco), e não de intempestividade. Daí por que o CPC de 2015 outorga à parte recorrente a oportunidade de corrigir eventual vício formal identificado pelo tribunal. É preciso que fique bem claro que o interessado tem a faculdade de corrigir a eiva, ao passo que o relator tem, repita-se, o poder-dever de possibilitar tal correção.7-8

A jurisprudência do STJ, relativamente à comprovação posterior de feriado local para atestar a tempestividade de recurso, está na iminência de ser novamente remodelada. Em julgamento submetido à Corte Especial, o ministro Raul Araújo, relator do AgInt no AREsp 957.821/MS, votou pela viabilidade de comprovação a posteriori do feriado local, com arrimo no art. 1.029, § 3º, do CPC, defendendo a primazia do mérito também na seara recursal, tal como estruturado no diploma processual civil de 2015. A ministra Nancy Andrighi, em sentido oposto, votou pela manutenção do entendimento atual da Corte, no sentido de que a comprovação do feriado local deve se dar no ato de interposição do recurso. Pediu vista antecipada o ministro Herman Benjamin.

Espera-se que a maioria dos integrantes da Corte Especial do STJ acompanhe o voto do relator, para que seja extirpada a jurisprudência defensiva ressuscitada em torno do art. 1.003, § 6º do CPC e prevaleça a interpretação sistemática e finalística da legislação processual. Vale apenas registrar que, ao que consta, o STF continua decidindo em favor da possibilidade de comprovação posterior de feriado local, mesmo durante a vigência do CPC de 2015.9

O formalismo oco e vazio, característico da jurisprudência defensiva, deve ser combatido com veemência. Em pleno século XXI, frente a um CPC moderno e preocupado com o exame do mérito, não há espaço para que a jurisprudência defensiva continue atormentando os jurisdicionados e a comunidade jurídica, esta que é, senão absoluta, majoritariamente contrária a tal prática. O formalismo exasperado deve dar espaço ao formalismo-valorativo, informado pela lealdade, boa-fé e cooperação processuais, sob pena de se colocar em xeque a legitimidade democrática do direito.10

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1 Este artigo reflete apenas a opinião pessoal dos autores.

2 Citem-se dois exemplos: Cruz e Tucci, José Rogério. Um basta à perversidade da jurisprudência defensiva. Medina, José Miguel Garcia. Pelo fim da jurisprudência defensiva: uma utopia? Um dos autores deste escrito já teve a oportunidade de se pronunciar nesse mesmo sentido: A jurisprudência defensiva no STJ à luz dos princípios do acesso à justiça e da celeridade processual. Revista de Processo. v. 254. São Paulo, Editora RT, 2016, pp. 339-373.

3 V., por todos: AgRg no REsp nº 1.034.913/MA, Rel. Ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, julgado em 26/11/2013, DJe 3/12/2013. Entendimento sedimentado no verbete nº 187 da Súmula do STJ: "É deserto o recurso interposto para o Superior Tribunal de Justiça, quando o recorrente não recolhe, na origem, a importância das despesas de remessa e retorno dos autos."

4 Verbete nº 418 da Súmula do STJ: "É inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação."

5 V., por todos: AgRg no AREsp nº 418.395/RS, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado em 19/11/2013, DJe 10/12/2013.

6 AgInt no AREsp nº 1.064.113/SE, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, julgado em 27/6/2017, DJe 2/8/2017; AgInt no REsp nº 1.626.179/MT, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 7/3/2017, DJe 23/3/2017; AgInt no AREsp nº 1.005.100/SP, Rel. Ministro Sérgio Kukina, 1ª Turma, julgado em 23/5/2017, DJe 29/5/2017; AgInt no AREsp nº 990.221/MT, Rel. Ministra Assusete Magalhães, 2ª Turma, julgado em 4/5/2017, DJe 10/5/2017; AgInt no AREsp nº 1.024.123/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 23/5/2017, DJe 31/5/2017; AgInt no AREsp nº 991.944/GO, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 20/4/2017, DJe 5/5/2017.

7 Há, pelo menos, dois enunciados do FPPC nesse sentido: "82. É dever do relator, e não faculdade, conceder o prazo ao recorrente para sanar o vício ou complementar a documentação exigível, antes de inadmitir qualquer recurso, inclusive os excepcionais"; "197. Aplica-se o disposto no parágrafo único do art. 932 aos vícios sanáveis de todos os recursos, inclusive dos recursos excepcionais."

8 Na doutrina: "O Código fulmina a jurisprudência defensiva (empecilhos artificiais criados pelos Tribunais para não apreciarem o mérito dos recursos) com o parágrafo único do art. 932. . O atual dispositivo, ao contrário, obriga o julgador a facultar ao recorrente o prazo de cinco dias, antes de inadmitir o recurso. Trata-se de um direito do recorrente, e não de uma faculdade do julgador (diz o Código: 'o relator concederá'). Ademais, é aplicável a todos os recursos, inclusive aos recursos excepcionais" (Freire, Rodrigo da Cunha Lima, Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Arruda Alvim Wambier, T.; Didier Jr., F.; Talamini, E.; Dantas, B. (coords.). São Paulo, Editora RT, 2015, p. 2.090). ". o poder de inadmitir recurso monocraticamente somente pode ser exercido depois de o relator conceder a possibilidade de eliminação do vício formal sanável. Deve, portanto, o relator dar a oportunidade prévia de o recorrente, no prazo de 5 dias, eliminar o obstáculo ao conhecimento do recurso, sanando o vício ou complementando a documentação exigível. No rol de vícios que o relator deve abrir a oportunidade para a solução estão, por exemplo, . a comprovação do feriado local caso exista dúvida quanto à tempestividade do recurso (art. 1.003, § 6º) ." (Camargo, Luiz Henrique Volpe; Ramos Neto, Newton Pereira. Comentários ao Código de Processo Civil. Streck, L. L.; Nunes, D.; Cunha, L. C. (org.). São Paulo, Saraiva, 2016, p. 1.216).

9 AgRg no ARE nº 984.391/GO, Rel. Ministra Cármen Lúcia, julgado em 24/11/2016.

10 Oliveira, Carlos Alberto Álvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo-excessivo. Revista de Processo. v. 137. São Paulo, Editora RT, 2006, p. 20.

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*Gustavo Fávero Vaughn é advogado no escritório Cesar Asfor Rocha Advogados.

*Natália Salvador Veiga é advogada no escritório Souza Cescon Advogados.





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