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O direito ao tratamento para gestantes portadoras de trombofilia

As limitações impostas por meio de atos normativos, protocolos, não podem prevalecer em face da Constituição Federal e tampouco fundamentar eventual inércia ou descaso do Estado no fornecimento de medicamento de custo elevado, de uso necessário para as gestantes, segundo prescrição médica idônea.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Atualizado em 30 de março de 2020 10:51

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A trombofilia é a propensão a desenvolver trombose ou outras alterações em qualquer período da vida, inclusive, durante a gravidez, parto e pós-parto, devido a uma anomalia no sistema de coagulação do corpo.

 

Na gravidez existem maiores possibilidades de uma mulher desenvolver a trombofilia. As causas não são todas conhecidas, mas sabe-se que o fator genético da doença é uma delas e por ser um problema grave de saúde precisa ser tratada o mais rápido possível. Se ignorada, pode trazer sérios problemas para a mãe e até causar a morte do bebê. O risco é que os coágulos obstruam os vasos sanguíneos, causando o entupimento das veias dos pulmões, coração e cérebro materno, como também obstruindo a circulação na placenta.

 

Com efeito, é necessário o devido acompanhamento médico com a gestante para que não ocorra o óbito fetal. Dessa forma, como o tratamento depende de ingestão de medicamento, mormente por enoxoparina de baixo peso molecular, medicamento este de alto custo, não raras vezes a gestante não tem como adquiri-los, necessitando, portanto, de pronta intervenção judicial já que há negativa pelo Poder Público.

 

Dessa forma, é importante ressaltar que o direito à manutenção da saúde e da vida é amparado constitucionalmente pelo artigo 196, e pela lei estadual 10.782/01, especialmente nos artigos 1º, inciso V e artigo 3º da mesma lei.

 

Por força do disposto no artigo 196 da Constituição Federal, a saúde constitui direito público subjetivo do cidadão e dever do Estado, devendo o atendimento ser integral (artigo 198, inciso II, da Carta Magna). Dessa forma, não pode a Administração eximir-se dessa obrigação sob quaisquer pretextos, tais como repartição de competências, falta de numerário, necessidade de prefixação de verbas para o atendimento dos serviços de saúde ou por não se enquadrarem os medicamentos receitados no protocolo técnico.

 

As limitações impostas por meio de atos normativos, protocolos, não podem prevalecer em face da Constituição Federal e tampouco fundamentar eventual inércia ou descaso do Estado no fornecimento de medicamento de custo elevado, de uso necessário para as gestantes, segundo prescrição médica idônea.

 

Certamente prestar atendimento à saúde precário ou insuficiente para o tratamento prescrito é o mesmo que não o prestar, em especial porque estamos diante do direito ao bem maior que é a vida da gestante e do feto.

 

Em veraz, as gestantes não necessitam do medicamento por mero diletantismo ou hipocondrismo, eis que o mesmo se revela precípuo e indispensável para que se mantenha viva e com razoável saúde.

 

Ademais, os profissionais da medicina que a acompanham as gestantes prescrevem medicamentos únicos que tem por objetivo salvar a vida da gestante e do feto, eis que em função de seu dever profissional e do juramento feito, deve obrar sempre em prol da saúde de seu paciente, não sendo, portanto, obrigado a prescrever esse ou aquele medicamento apenas para se amoldar àqueles disponibilizados pelo Estado.

 

Ainda, não se pode olvidar que sobre os cidadãos brasileiros recai onerosa carga tributária, não sendo admissível que quando esses mesmos cidadãos-contribuintes necessitem de uma contraprestação do Poder Público, o mesmo permaneça inerte; é ilógica a contumácia do Estado, que ao invés de propiciar meios para assegurar à população o direito constitucionalmente assegurado à saúde e à vida, opta por assistir silente ao perecimento lento e gradativo de seres humanos. Também, não se pode dizer que as gestantes com essa deficiência tenham "optado" pelo uso do medicamento não padronizado, eis que o mesmo se revela como única possibilidade viável de manter a grave doença que a aflige sob certo controle, não se mostrando crível, lógico, ou mesmo razoável, pretender que em razão de entraves burocráticos, a vida de uma cidadã venha a sucumbir.

 

Assim, não cabe à autoridade administrativa questionar o procedimento ou medicamento prescrito, uma vez que o profissional da área médica, além de ser responsável pelo tratamento prescrito, é a pessoa mais indicada para aferir qual a melhor forma de tratar as moléstias que acometem seus pacientes, levando em conta peculiaridades clínicas.

 

A orientação pacífica dos Tribunais Superiores assentaram ser a saúde um direito público subjetivo e consequência constitucional indissociável do direito à vida, razão por que entendem ser um dever do Poder Público, incluídos os entes das três esferas da Federação, disponibilizar por meio de políticas públicas os instrumentos e insumos necessários para o tratamento da saúde de todo e qualquer indivíduo, direito esse reconhecido recentemente para a gestante portadora de trombofilia com uso do fármaco Clexane (AREsp. 1052087 e REsp 1614265).

 

Diante da prescrição médica, forçoso é concluir que o princípio ativo do medicamento associa-se à eficácia do tratamento da enfermidade das gestantes portadoras de trombofilia, devendo, portanto, o Ente Público prestar o atendimento adequado e durante o período em que se fizer necessário, sem entraves burocráticos, haja vista que a ausência de utilização do medicamento pode colocar em risco a vida da paciente e do feto.

 

Ademais, a observância de uma política de saúde consubstanciada no cumprimento de normas constitucionais (arts. 196 e 197, CF) e legais (lei 8080/90) não podem depender da observância de outras regras ou prioridades a que está atrelada a Administração Pública, pois, nesses casos, estamos diante do mais importante direito do cidadão, o direito à vida.

 

O direito à vida e à saúde são corolários do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF), o qual é o norteador da interpretação e aplicação do direito. Assim, se o Estado-Administração não atender a tais direitos de forma voluntária, o Poder Jurisdicional o compelirá ao cumprimento das garantias fundamentais dos cidadãos, até porque vigente o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional a toda lesão ou ameaça a direitos (artigo 5º, inciso XXXV, da CF).

 

É diante desse direito que nos alicerçamos perante a Justiça, para que o Judiciário determine que o Poder Público forneça os medicamentos necessários às gestantes pelo período que se fizer necessário.

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*Paulo César Tavella Navega é advogado cível sócio da Pedroso Advogados Associados e professor de direito civil.

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