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O Peloponeso, as criptomoedas e uma questão processual

Nós, contudo, os que lidamos com o Processo Civil no dia-a-dia, gostaríamos de que a moção para regulamentação das criptomoedas no Brasil fosse moderna e eficiente, e não que já viesse ultrapassada.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Atualizado em 18 de setembro de 2017 11:46

"Guerra é esforço, é inquietude, é ânsia, é transporte.
É a dramatização sangrenta e dura
Da avidez com que o espírito procura
Ser perfeito, ser máximo, ser forte..."
(Excerto de soneto de Augusto dos Anjos)

Quando li que Kim Jong-Un tem uma bomba de hidrogênio pequena e muitas vezes mais poderosa que aquela usada pelos norte-americanos na Segunda Guerra Mundial, e isso quase concomitantemente com a informação de que a China (aliada da Coreia do Norte) derrubou o valor dos Bitcoins, encontrei-me preso entre dois pólos distantes, porém esmagadores: o extremo concreto e o extremo abstrato. Entre as trincheiras marciais e as nuvens (de informações). Entre os muros d'A Cidade Antiga e o iconoclasmo de uma talvez união mundial em torno do real-impalpável. Assistir à Parúsia antes de ver a própria Criação, sob efeito de noticiário alucinógeno, é terrível.

Somos contrastes: dentro de nós há neblina. Dos Laços Borromeanos ao Vel, de Lacan; do Yin-Yang que mais parece um uróboro; da Roda de Ixion a que estamos presos; da diáspora de nossos eus; das paralelas que não vão encontrar-se no infinito; do panteísmo-niilismo interior, dissolvemo-nos a cada instante no todonada da existência. Nossas diatribes interiores tiveram início quando nascemos e segurarão ao menos uma alça de nosso caixão, e o que se chama "disrupção" vem dominar o mundo sob todos os ângulos.

Hélio Jaguaribe, o Ilustre prefaciador da obra1 que norteia este trabalho, diz, das nefandas consequências da Guerra do Peloponeso:

"... opondo letalmente as duas principais cidades-estado da Hélade e seus respectivos aliados, gerou as condições que conduziriam ao declínio da Grécia clássica, à hegemonia macedônica e, a longo prazo, à final dominação da Grécia por Roma. Arrasada pela guerra, Atenas jamais recuperou, depois de 404 a.C., sua precedente capacidade de liderança, não obstante um momento de relativo ressurgimento, no século I, com a denominada Segunda Liga Ateniense. Vencedora da guerra, com a relevante ajuda do "ouro persa", Esparta se revelou incapaz de liderar a Grécia. Não se resignando, de conformidade com suas tradições e instituições, a refluir para sua natural área de predomínio no Peloponeso, deixando as cidades gregas se auto-regularem, Esparta, que contara com amplo apoio para sua proclamada intenção de liberar a Hélade do imperialismo ateniense, pretendeu, sem condições culturais para tal necessárias, se substituir a Atenas na direção da Grécia. Em vez de uma liderança esclarecida, exerceu uma hegemonia despótica, controlada por seus harmostes, que provocou geral repulsa e a bem sucedida reação de Tebas, com Epaminondas, a que se seguiu a Segunda Liga Ateniense e, subseqüentemente, a emergência da hegemonia macedônica sob Felipe II.

Tucídides deixa ver que entre Esparta (Cidade-Estado eminentemente marcial) e Atenas (Centro de pensamento político e grande desenvolvimento econômico) recrudescia o interesse na estratégica Península do Peloponeso. Estamos em aproximadamente 440 a.C.

Desde as Guerras Médicas2, cerca de meio século antes, as relações entre Esparta e Atenas eram eivadas de uma espécie de paz vigilante. Esparta e Corinto cogitaram a hipótese de construir um muro no Cabo Coríntio, isolando-se dos atenienses e deixando-os haver-se com os Persas. A Liga de Delos (grosso modo, congregação dos aliados de Atenas contra Esparta), segundo Tucídides, crescia e tornava o conflito inevitável. Uma provocação aqui, um teste de míssil ali, uma bomba de hidrogênio acolá (ooops!, não é isso!), mas a verdade é que não eclode uma guerra assim, de súpito, sem antecedentes.

Jaguaribe, ao enaltecer o trabalho de Tucídides (que infelizmente faleceu pouco mais de seis anos antes do fim da guerra), ressalta a diferença desta para outras guerras até então havidas: quase todos os Estados gregos foram envolvidos. Com lastro em Tucídides e Heródoto, Hélio Jaguaribe sugere que o anteâmbulo do grande conflito, que culminou com a autodestruição da Hélade, data de pelo menos cinquenta anos antes do início das primeiras batalhas3.

Até onde pudemos saber, a Guerra do Peloponeso foi como que um marco entre as batalhas apenas terrestres, pois necessárias muitas invectivas marítimas, e as de maior dimensão espacial e estratégica. Se em terra os combates duravam menos tempo, pois os choques de infantaria, talvez com número insuficiente para mais conflito, permitiam apenas aquilo, a verdade é que o recurso ao universo equóreo e o crescimento da importância das tropas com números cada vez maiores de soldados, o destaque cada vez maior dos Peltastas sobre os Hoplitas, que acabaram por perder o papel que tinham, tudo isso levou a grandes modificações no cenário bélico.

A história é grande e complexa, mas preciso ater-me a uma pequena fracção sua. Escolhi, não por acaso, o undécimo ano da guerra (por volta de 420 a.C).

Após explicar como Pagondas (general tebano) persuadiu os beócios acerca do ataque aos atenienses, no décimo-primeiro ano de belicosidade (vale dizer: era mais uma batalha - com o fito de chegar a Délion), relata que nas tropas dos beócios havia cerca de sete mil hoplitas, quinhentos peltastas, uns mil cavalerianos e os outros aliados dos tebanos (haliártios, coroneus, copeus).

Do lado ateniense, hoplitas em igual número ao do inimigo, tropas ligeiras que estavam a pé, já que convocadas às pressas, com pouca organização e comandadas pelo General Hipócrates. Nenhuma referência aos peltastas.

Os Hoplitas eram soldados de infantaria pesada. Usavam lanças enormes e se mostravam sempre impiedosos: avançavam em direção ao inimigo em blocos, andando, e dificilmente eram vencidos. Suas vestes bélicas pesavam, com o escudo (Hóplon), cerca de 35kg. Tamanha era a carga, que eles costumavam paramentar-se para uma batalha somente pouco tempo antes que ela começasse.

Já os Peltastas, esses eram guerreiros considerados mais leves (e, portanto, mais ágeis, além de custarem menos)4. Usavam um pequeno escudo, denominado Pelta, algumas lanças, menores que a dos Hoplitas e não usavam armadura, o que lhes permitia correr mais e atacar as cargas de cavalaria. No começo eram considerados soldados auxiliares das batalhas, mas aos poucos, dada a leveza e o menor ônus econômico, foram ganhando vez.

Era a arte dos generais que definiria como Hoplitas e Peltastas atacariam. Se os Peltastas iam proteger os flancos dos Hoplitas, ou se iriam à frente, já que podiam subir mais rapidamente montanhas, enfim.

Naquele ano da Guerra do Peloponeso os atenienses não tinham tropas ligeiras regularmente armadas; nem a cidade as tinha, embora houvesse forças mais leves, porém sem armas...

Se a formação das tropas, numa batalha, era o escorreito cumprimento da obrigação pelos dois pólos em conflito, ou do cidadão para com o Estado, falharam os atenienses e perderam aquela batalha para os beócios.

Seja pela pressa, pela desorganização, pelo erro estratégico ou então qualquer outro motivo, a verdade é que quem cumpriu a obrigação estritamente levou seu galardão; e aqueles a quem o rito adotado não era o correto sucumbiram.

Novas batalhas vieram (na Guerra do Peloponeso) e novas batalhas virão, na vida (haja vista a disseminação das criptomoedas, de blockchains5 e de coisas que a tecnologia ainda nos trará); contudo, o conceito básico de cumprimento da obrigação comme il faut, seja pela forma mais concreta possível, seja pela forma virtual, ainda persiste. Resta saber como haver perdas e danos no extremamente concreto (uma guerra nuclear) e no quase abstrato (o sumiço ou uma espécie de dumping envolvendo moedas criptografadas).

Que há de normas processuais sobre constricção judicial de bens? No art. 523, par. 3º, do CPC a expedição de mandado de penhora. Só haverá como penhorar criptomoedas se elas forem, no mínimo, rastreáveis. O art. 524, inc. VII, também determina que o exequente indique bens para que sejam penhorados, mas... se isso for possível. O art. 526, par. 2º, garante que o réu, antes da intimação para cumprimento da sentença, pode indicar bens à penhora e, se forem insuficientes, o juiz mandará prosseguir, após imposição de multa, com a penhora. Como o devedor indicaria (e quem aceitaria) criptomoedas? Indicar criptomoedas à penhora seria, nos termos do art. 774, incisos III e V, ato atentatório à dignidade da justiça? E onde estariam, no rol do art. 835 do CPC, as criptomoedas?

"Ex facto oritur jus", diz o brocardo romano até hoje aplicável. O que temos visto, em grupos de investidores em criptomoedas, do Facebook? Algumas pessoas (não sabemos se reais ou se perfis falsos) dizendo que têm lucro a cada dia, que se tornaram milionárias de uma hora para outra. Uma grande maioria reclamando de golpes, como pirâmides, sumiço de 'moedas', desvalorização causada por grandes investidores (já que hoje há mais de 1000 'moedas' virtuais em circulação pelo mundo, e tudo o que os seus simpatizantes querem é trabalhar longe das normativas do Banco Central e das hipóteses de incidência tributária) e perda dos códigos que davam acesso a seu patrimônio virtual.

Há ainda cartões vinculados às criptomoedas e as eternas dúvidas sobre (I) como convertê-las para alguma moeda palpável, (II) em que país, (III) a que momento, para perder o mínimo possível, se entre credor e devedor não houver a aceitação, por exemplo, de bitcoins.

Não é demais lembrar que a Secretaria da Receita Federal incluiu na declaração deste ano a obrigatoriedade da declaração como ativo de cifra superior a 35mil bitcoins, vale dizer: é um reconhecimento do Estado brasileiro de que o bitcoin é um ativo para fins de ganho de capital.

Em tal diapasão, ainda, houve a publicação da circular da CVM 588/17, para reconhecimento das "moedas" digitais com possibilidade de crowdfunding de startups. Isto equivale a admitir que outra esfera do governo reitera a condição de ativos das moedas digitais (não só o Bitcoin, mas outras mil e tantas outras).

Finalmente, a tecnologia do blockchain permite a rastreabilidade pelos órgãos como o Bis e a Interpol, além dos Bancos Centrais, mas principalmente via auto-regulamentação pela comunidade do blockchain, que defende a reputação deste. Já entregaram alguns traficantes com esta finalidade.

Nós, contudo, os que lidamos com o Processo Civil no dia-a-dia, gostaríamos de que a moção para regulamentação das criptomoedas no Brasil fosse moderna e eficiente, e não que já viesse ultrapassada. Pela forma como as coisas acontecem, onde ainda não há regulação para proteger os investidores menores, nem proteção alguma contra espécie de criptodumping.

Enquanto se digladiam os atenienses e os espartanos, valendo-se apenas de ligas belicosas, como a do Peloponeso e a de Delos; enquanto perfunctórias e ilusórias vitórias sobre forças lacedemônias destroem frotas atenienses no Egito, para apoiar a Líbia num embate contra o Império Aquêmida, clamando por tréguas de um lustro no mínimo; enquanto se aguarda uma temerária Paz dos Trinta Anos, Samos e Mileto vão tentar controlar Priene, os Sâmios procurarão os Persas e... a história é tão repetida (!) Kin Jong-Un continuará a ameaçar o mundo por terra, pelo ar, os detentores do poderio 'criptomonetário' dominarão nas nuvens e o mundo das garantias efetivadas por intermédio do Código de Processo Civil continuará a ver navios. De guerra. Essas guerras internas são um prato cheio para terceiros interessados, que chegarão quando estivermos mais frágeis, graças à ganância de alguns.

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1 História da Guerra do Peloponeso, fls. 317 e 318. Tradução do Grego por Mário da Gama Kury, Editora Universidade de Brasília, Edições Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Clássicos IPRI.

2 Guerras Médicas.

3 Xerxes, sucedendo seu pai Dario em 486, exige dos gregos o ato simbólico de submissão, oferecendo-lhe "terra e água". Como a maioria dos Estados se tenha recusado a fazê-lo, Xerxes decide enviar uma poderosa expedi¬ção punitiva à Grécia, visando particularmente Atenas. Em 484 inicia seus preparativos, mobilizando, segundo Heródoto'', 1.700.000 homens. Historiadores modernos reduzem esse contingente a menos de dez por cento desse número, mas aceitam como provável o número de 1.207 naves reunidas pelos persas, sendo construídas em 480 duas pontes sobre barcos atravessando o Helésponto e aberto um canal na península do Acte, na Calcídice. Alarmados ante esses preparativos, os gregos convocam um congresso pan-helênico que se reuniu em 481 no istmo de Corinto, a que compareceram quase todas as cidades-estado. Os gregos que decidiram resistir, uma trintena de cidades-estado, compreendendo, notadamente, a Liga do Peloponeso, fundada no século VI e Atenas e seus aliados iônios, formaram uma aliança e juraram mútua defesa e comum ação contra os persas, com pronta suspensão de querelas recíprocas, como a corrente guerra entre Atenas e Egina. Delegou-se a Esparta o comando das operações. Decidiu-se, em seguida, escolher o sítio mais adequado para posicionar a primeira linha de resistência da Grécia. Os gregos setentrionais, mais imediatamente expostos à agressão persa, requereram que essa linha se situasse ao norte da Tessália. Constatou-se, entretanto, que essa posição era indefensável. Decidiu-se, assim, defender a Grécia mais ao sul, numa linha que, para a defesa terrestre, se situasse entre os desfiladeiros das Termópilas e o promontório do Artemision, junto ao qual a marinha se posicionaria no canal do Oreos (...)

4 Peltasta.

5 Estes, ao que tudo indica, o porto-seguro dos que vão aventurar-se no mundo digital.

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*Renato Maluf é advogado do escritório Amaral Gurgel Advogados.

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