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Crise política e Poder Constituinte: uma breve reflexão sobre a formação do Estado de Direito, e como o Brasil pode estar caminhando para mais um colapso constitucional

Existe uma tensão permanente entre o poder constituído e o poder constituinte. Os governantes de hoje podem ter interesse em aumentar seu poder, ou passar a incluir no poder um grupo que lhes seja conveniente. Para isso, provavelmente vai ferir interesses de outras pessoas.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Atualizado às 08:46

Quando a gente aprende sobre República e sobre como funciona um Estado de Direito, a lição número um é que ninguém pode estar acima da lei. Até nas monarquias existe um limite de conduta mesmo para a família real. Em casos como o Brasil - e todos os países oriundos da ideia de um governo feito pelo povo e para o povo - a crença básica é de que em um belo dia, por grande sorte, um grupo de representantes de todo o povo se reuniu para fundar um Estado democrático e criou suas leis. A partir daí, todos devem obediência às instituições, às normas e às autoridades do governo.

Acima de tudo, as autoridades do governo devem servir ao povo cumprindo estritamente as suas obrigações legais. O que chamamos de corrupção é o crime de usar dinheiro e outras vantagens para desviar os agentes do governo de sua missão para que estes retribuam os agrados pessoais recebidos com outros agrados, só que às custas de todo o povo.

Em termos ainda mais simples, corrupto é aquele que quebra a regra básica da fidelidade entre governantes e governados, e passa a usar o poder e os recursos do Estado para se beneficiar. Quando surgem os escândalos de corrupção, há uma ansiedade geral para que os corruptos sejam logo punidos. Isso é natural, até porque ninguém gosta de se ver enganado e traído. A Operação Lava Jato criou esse clima no país, uma caça aos corruptos.

O que não se esperava era que chegaríamos no ponto onde estamos, em que se acusa de corrupção não uma pessoa ou uma quadrilha qualquer, mas os maiores empresários e mais poderosos políticos do país. E não por um crime qualquer, mas um crime que não se sabe quando começou e nem quando vai terminar. É o Estado brasileiro que está em cheque. A origem dos crimes perseguidos pelo Ministério Público Federal remete aos acordos feitos ainda na década de 1980, durante a redemocratização.

O sonho da Constituição Cidadã está sendo manchado, e alguns até ousam propor um novo começo, uma nova República (de Curitiba). O que quase ninguém entende é que nesse ritmo estamos caminhando para uma crise de Estado, e caso tudo entre em colapso, estaremos mais uma vez obrigados a chamar o Poder Constituinte Originário para uma reunião de refundação do Estado brasileiro. Neste texto, vou procurar reforçar algumas preocupações óbvias (mas esquecidas) e outras nem tão óbvias (e que precisam ser conhecidas) sobre como ocorre a criação de um Estado nacional na prática.

O primeiro ponto é entender que os Estados nacionais são criados por um Poder Constituinte. Como o nome já diz, é o poder de constituir, de criar um Estado. O que não é tão simples enxergar nesse conceito, é que para se fundar um Estado, é preciso que já exista um grupo de pessoas com poder de comando sobre um território e sobre um grande número de pessoas. Ou seja, para que haja um poder constituinte, é pressuposto lógico que já exista um poder de fato, ainda que não exista um poder de direito.

Numa linguagem mais simples, existe um "dono do pedaço", uma "facção" que manda e desmanda. O que acontece é que quando os chefões não estão mais dando conta do recado, resolvem entrar num acordo mais amplo de poder. Com toda a influência do renascimento cultural no ocidente, os grupos mais poderosos de cada parte foram se convencendo de que esse acordo deveria ter um formato mais ou menos parecido com a ideia de Estado implantada na Inglaterra a partir do século XII, com forte influência da experiência romana. O modelo se espalhou e foi sendo melhorado ao longo dos últimos séculos até chegarmos nessa concepção universal, propagada hoje pela Organização das Nações Unidas.

Seja como for, em qualquer parte do mundo, existe ou existiu, com mais ou menos evidência, um grupo de pessoas poderosas que só obedecem aos próprios interesses e conveniências, e conseguem, com o uso da força e outros mecanismos não-violentos, comandar a população dentro de um território.

Mesmo que tenhamos uma ideia generalizada de que todas as nações devem viver em paz, em solidariedade e sob um regime global de respeito mútuo, isso não corresponde à realidade. Isso é uma típica utopia. Em termos não utópicos, um Estado nacional deve ser reconhecido como um território onde há um grupo de pessoas com força suficiente para comandar a população que vive ali, e para impedir que outro grupo tente fazer suas vezes nesse comando. O chamado Poder Constituinte se instalou na história europeia quando esse grupo poderoso sentiu que não podia mais ficar sozinho no comando, e então se viu obrigado a uma transição para um governo completamente "dentro da lei". Esse foi um processo complexo, como dá para imaginar, com peculiaridades em cada nação.

O Estado de Direito surge como uma concessão de um grupo que já detém o poder, pois é preciso que mesmo na transição haja um comando. Uma das experiências mais traumáticas e lendárias foi vivida na França no final do século XVIII. A monarquia tentou se constitucionalizar, mas foi derrubada com a proclamação da Primeira República. Com o País em guerra, pouco durou essa primeira experiência republicana, e só em 1848 a queda da Bastilha de fato começa a fazer sentido para os franceses revolucionários.

Por outro lado, algumas experiências foram até bem simples, como no caso do grito do Ipiranga aqui no Brasil. Mas até na história de Pindorama, pessoas morreram resistindo contra a independência, e a coroação de D. Pedro I como o primeiro chefe de Estado do Brasil teve uma fase complicada de adaptação. Entre os que aceitaram a instalação de uma monarquia por aqui, havia os que gostariam de ganhar mais poder, ter mais influência, e que não foram contemplados. Sempre há gente insatisfeita, sempre há quem se sinta mais merecedor do trono. E até no Estado de direito, manda quem pode e obedece quem tem juízo (mesmo que não goste). O poder é de quem realmente pode mandar, não de quem acha que pode [Dilma que o diga].

Existe uma tensão permanente entre o poder constituído e o poder constituinte. Os governantes de hoje podem ter interesse em aumentar seu poder, ou passar a incluir no poder um grupo que lhes seja conveniente. Para isso, provavelmente vai ferir interesses de outras pessoas. Também é possível que um grupo esteja insatisfeito com um governante e queira tirá-lo do poder. Nessas horas costuma surgir a tentação de se "refundar" o Estado, zerar, começar do zero. A história mostra que isso não traz bons auspícios. Os Estados mais fortes, são aqueles onde os grupos governantes conseguem manter longa continuidade, mesmo que mudem as pessoas, não devem mudar as regras. É difícil aceitar, mas o certo é que vão-se os dedos, e ficam os anéis.

Então, quem banca a reunião dos Constituintes? Aqui no Brasil, no começo foi relativamente simples. A Coroa portuguesa já tinha instalado um governo, uma estrutura de poder já existia e ninguém menos do que o filho de Rei bancou tudo e assumiu o comando. Claro que não fez isso sozinho, mas o que está claro é que as forças que já obedeciam ao rei de Portugal tinham todo interesse em criar um rei para chamar de seu. Não existia a mínima chance de algo como os Estados Unidos da América do Norte surgir por aqui, porque aqui tínhamos uma colônia única, com poder centralizado. O território já estava unido, e assim ficou: "Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824". Essa é nossa verdadeira primeira lei brasileira.

Com a constituição de um Estado, muitas vezes o acordo entre quem vai mandar e quem vai obedecer não fica bom o suficiente para manter as coisas funcionando por muito tempo. O Brasil, por exemplo, já teve que fazer esse imenso trabalho oito vezes. A Constituição de 1934, por exemplo, durou só três anos, e a de 1967, mal inteirou dois.

Alguém pagou a conta e não gostou do que recebeu. Como se trata de interesses de altíssimo valor, incluindo até mesmo a vida, nenhum poderoso é facilmente convencido a sair perdendo num acordo de tamanha magnitude. Além disso, fica claro que ninguém, nenhum indivíduo é capaz de pagar uma conta dessas sozinho. E na lista de pagantes há inclusive inimigos mortais. Assim é como são criados os Estados nacionais, uns maiores, outros menores, uns mais fortes, outros mais fracos, todos sob uma complexa estrutura de comando, onde grupos se alternam nos cargos de poder, até que o acordo se quebre e seja feita a vontade de mais um Poder Constituinte, não necessariamente melhor do que o último.

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*Samuel Pontes do Nascimento é professor da Universidade Federal do Piauí e doutor em Direito Público pela PUC/MG.

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