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A pluriparentalidade e o direito à felicidade, Eudes Quintino

A pluriparentalidade e o direito à felicidade

Todo tipo de relacionamento, em qualquer idade, na realidade, se traduz no apego.

domingo, 1 de outubro de 2017

Atualizado em 29 de setembro de 2017 12:52

Apresenta-se revestida de grande interesse a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em tema de repercussão geral, na qual se discutiu a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica. Oito votos seguiram o relator Luiz Fux, no sentido de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento baseado na origem biológica, podendo ambos coexistirem na mesma certidão, além de conferir todos os direitos e deveres decorrentes do novo estado registral1.

Referida decisão abriu um novo cenário jurídico, até então desconhecido. É de se observar que o Código Civil de 1916, vetusto e vencido em sua ideologia, tinha por fundamento que a filiação era proveniente do casamento, distinguindo os filhos em legítimos, ilegítimos e legitimados. Diziam os romanos pater id est quem nuptiae demonstrant, sem qualquer ponderação a respeito dos critérios biológicos e afetivos. A Constituição Federal de 1988 fez com que a realidade familiar saísse da vala comum da rígida presunção de paternidade, desprezasse o critério de filho pré-concebido pela lei e abraçasse novos institutos condizentes com a evolução da sociedade brasileira, dentre eles, a união estável, abrangendo a união homoafetiva (art. 226, § 3º CF), a família monocrática (art. 226, § 4º CF) ou qualquer outro tipo de paternidade que tivesse como paradigma o afeto e a origem biológica (art. 227,§ 6º CF).

Tinha-se, então, pelo novo perfil da família, que pai e mãe não eram aqueles que cederam o material procriativo e sim os que criaram, educaram e dispensaram afeto e carinho, procurando conferir um ambiente perfeito e responsável para que a criança pudesse desenvolver suas qualidades, viver em harmonia e atingir a plena realização. É o demonstrativo mais sincero de que o afeto fala mais alto do que qualquer prova sanguínea. Todo tipo de relacionamento, em qualquer idade, na realidade, se traduz no apego. A convivência de vários anos com canais comunicantes faz com que as pessoas vivam muito próximas, criando vários espaços de sintonia afetiva. A criança, em razão da tenra idade, vive em função de seus cuidadores e junto deles procura criar uma base estrutural com a solidez necessária. A vulnerabilidade do ser humano inicia com seu próprio nascimento e se desenvolve pelas várias fases da vida. É justamente nos primeiros anos que surge a convivência de dominação, não no sentido egoístico, mas sim no de exploração de todas as qualidades e virtudes recomendadas, mesmo sem o determinismo genético.

Nesta linha de raciocínio, bastava somente o nome do pai socioafetivo no registro que supriria o vácuo do biológico e a criança se sentiria amparada. No caso em comento, no entanto, o pai biológico, que nunca teve contato com a filha, relutou e recorreu da decisão que foi favorável em segunda instância a ela, reconhecendo-o como pai biológico, justificando que já contava com um pai socioafetivo, que a registrou e sempre demonstrou por ela o carinho necessário. Assim, pleiteou para que fosse reconhecida somente a paternidade biológica, excluídos os direitos e obrigações dela decorrentes.

Pela nova decisão, o pai biológico é chamado para compor o cenário de filiação, figurando como tal na certidão de nascimento. Quer dizer, mesmo que a filha tivesse sido criada por outro pai, deve assumir as obrigações impostas pela lei, como uma forma de efetivação da paternidade responsável. Nesta nova configuração, a filha passa a ter o pai que se incumbiu de proporcionar o afeto, juntamente com o biológico que possibilita a decifração de sua origem genética.

A pluripaternidade, local onde se aloja a dupla paternidade, deve atender as exigências protetivas em favor da criança, tutelando-a de forma diferenciada, com um plus sinalizador de uma paternidade responsável. Neste sentido a manifestação do relator, que conseguiu buscar a interpretação mais adequada e condizente ao caso: O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei.

É interessante observar que o relator invocou em favor da filha o direito à busca da felicidade, fazendo ver que tal estado não é compreendido na retratação de uma situação efêmera, como a figura da bolha de sabão retratada por Lygia Fagundes, que após atrair os olhos com seu balé, desfaz-se no ar em poucos segundos. E muito menos um lugar utópico imaginado por Thomas Morus, que possibilitasse a sociedade perfeita e ideal, mesmo sabendo-a inatingível.

Na realidade, a decisão proporcionou à filha libertar-se dos grilhões que a atormentavam com relação à sua origem biológica, permitindo a natural emanação do direito de personalidade, tão importante para definir seu passado e desenhar seu futuro no âmbito da dignidade da pessoa humana, para que possa fruir do direito à felicidade, de forma concreta e definitiva.

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1 STF reconhece dupla paternidade.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.








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