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Considerações acerca de um dogmatismo penal econômico

Nota-se o entrelaçamento epistemológico que há entre o Direito Penal e o Direito Econômico, exsurgindo-se uma ciência detentora de institutos próprios, que é o Direito Penal Econômico.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Atualizado às 11:57

1 Introdução

É de notável certeza a íntima relação da fenomenologia sociológica para com o ordenamento jurídico, este, por sua vez, enquanto produto da interação e da linguagem humana, criativa de normas e sistemas normativos de regulação social, finda por gerenciar direta e indiretamente o cotidiano dos indivíduos, espelhando um ideal de "civilidade".

Notável ainda que, dentre os vários ramos dos sistemas jurídicos, a ingerência estatal por meio de seu braço punitivista, louvando-se da força de seu ius puniendi nas relações sociais, vem tomando proporções sem precedentes nos últimos séculos, no sentido de agir com mais veemência com o direito penal junto à sociedade.

Neste diapasão, o Estado Democrático de Direito, consubstanciado nas instituições democráticas e de limitação social, busca, ou ao menos deveria buscar, se amoldar às "novas" realidades, aos "novos" modus faciendi dos seus atores sociais.

Tem-se um modelo de agir amplificado, de caráter transnacional ou mundializante das diversas culturas, uma interação transfronteiriça das sociedades, bem como a interligação das ciências de um modo geral.

Tomando por base esse fenômeno global e diante, porém, do constante grau de ineficácia da atuação estatal, sob o prisma jurídico, notadamente pela falta de uma efetiva concretização material do direito, urge a necessidade de, cada vez mais, haver uma (re)adaptação do próprio Estado às estruturas e conceitos cunhados na contemporaneidade ou pós-modernidade, os quais seguem, diuturnamente, num entrelaçamento contínuo de redes e mais redes de distinções valorativas.

Isto porque, os novos anseios, as novas exigências ínsitos a esse modelo de sociedade refletem um imperativo de (re)valoração de conceitos jurídicos que sejam, de fato, aplicáveis com eficácia às circunstâncias nas quais o Estado de Direito está mergulhado.

No que diz respeito ao ius puniendi, detidamente ao direito penal, à luz desse "cenário (re)valorativo", ou seja, de (re)construções de valores e paradigmas da sociedade pós-moderna e contemporânea, merece reflexão para uma concreta solução de mudança no cerne axiológico de sua formulação, seguido de uma efetiva implementação de política criminal e, sobretudo, de um novo padrão dogmático jurídico-penal.

O primitivo emprego coercitivo estatal, apesar de se valer dos institutos e das "instâncias formais de controle", acaba não sendo o instrumento mais adequado para delitos de maior potencial ofensivo, ou delitos de natureza "macro", do ponto de vista tanto do bem da vida tutelado, como até mesmo no tocante à vítima, esta que transborda o mero aspecto individualista.

Neste diapasão, indaga-se se a atual estrutura dogmática-penal é capaz de suportar o modelo tipificador de infrações de natureza transindividuais, que ferem a ordem econômica nacional em um nível totalmente diverso e mais amplo, com relação aos outros tipos penais, por exemplo o roubo, o latrocínio.

Tratar de justiça e desenvolvimento econômico, mormente em âmbito nacional, combatendo as modalidades criminosas e sofisticadas de delitos econômicos, é obrigação estatal, garantindo-se a ordem e o progresso da sociedade como um organismo único, composto pelos mais diversos órgãos, pelas mais diversas células.

Nesta toada, deve-se ter como norte a busca de uma estrutura firme e eficaz no ordenamento normativo para o resguardo de bens jurídicos supraindividuais, balizando o ius puniendi estatal, transladando-o ao combate das sobreditas "infrações penais multiníveis", reformulando conceitos e institutos dogmáticos, com o fito da justiça e do desenvolvimento econômico-social.

É dizer, a formulação de um sistema penal de caráter transnacional, ante a supranacionalidade integrativa que se vivencia, abarcando tantos outros ramos científicos, notadamente a filosofia e sociologia jurídica, aliada a uma política criminológica de alcance concreto para a tutela de bens jurídicos de natureza macro, que abarquem, mormente, as estruturas econômico-financeiras e/ou outros pilares de relevante existência estrutural do Estado de Direito.

1 A interrelação jurídica entre o penal e o econômico

No perpassar histórico, verifica-se que a criminalidade relacionada às atividades de cunho econômico sempre existiram, cujo tratamento dado varia de acordo com o momento pelo qual passa a sociedade que a vivencia.

Assim, onde sempre existiu um sistema criminal houve também uma tutela penal das atividades econômicas, mais ou menos desenvolvida e consoante a correspondente estrutura social e grau de evolução da economia, já que o direito penal deve estar adaptado à realidade socioeconômica subjacente em um dado momento histórico.1

A conjugação entre o penal e o econômico, isto é, um direito penal econômico vem à tona apenas após o acontecimento das duas guerras mundiais, justamente à vista da vasta depredação causada e os danos às economias dos países envolvidos e de todo o mundo e aliado a este evento, tem-se a crise americana de 1929. Ambos alavancaram os Estados no desejo de se sobrepor aos ideais liberais e tomar novo rumo, em direção a uma postura em face das atividades econômicas.

Surge o chamado Welfare State por meio do qual os Estados assumem definitivamente uma postura intervencionista em papéis fundamentais no desenvolvimento econômico de suas nações. Nesse contexto, o direito penal transforma-se então em importante instrumento, primeiramente para a proteção das fragilizadas economias dos países centrais na primeira metade do Século XX e, mais adiante, como um mecanismo de direcionamento para a reformulação dessas economias, agora não mais sob a égide do Mercado, mas sob a tutela estatal.2

No cenário brasileiro, como surgimento do Código Penal de 1940, formularam-se transformações sistêmicas na esfera das penas na Parte Geral, além de tipificar novos crimes, dentre os quais alguns delitos de índole econômica, sem mencionar as legislações penais especiais correlatas.

As normas do direito penal econômico, nutridas pelas sequelas das crises econômicas e dos afrontamentos bélicos, constituem produto da atuação estatal na reforma dos sistemas econômicos abalados pelas guerras como a mais grave forma de intervenção do Estado na economia.3

Nota-se, portanto, o entrelaçamento epistemológico que há entre o direito penal e o direito econômico, exsurgindo-se uma ciência detentora de institutos próprios, que é o direito penal econômico.

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1 MARTOS NUÑEZ. Juan Antonio. Derecho Penal Económico. Madrid: Montecorvo, 1987. p. 111

2 ROYSEN, Joyce. Doutrinas Essenciais. Direito Penal Econômico e da Empresa. Teoria Geral da tutela penal transindividual. Organizadores: Luiz Régis Prado e René Ariel Dotti, vol. I São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 543.

3 RIGHI, Esteban. Derecho penal económico comparado. Madrid: Reunidas, 1991, p. 12
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*Hioman Imperiano de Souza é Juiz Instrutor Estadual, do Tribunal de Justiça da Paraíba (TJ/PB). Auditor Disciplinar, do Tribunal de Justiça Desportiva da Paraíba (TJD/PB). Articulista e palestrante jurídico. , mestrando em direito constitucional, com ingerência em direito penal econômico.

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