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Desconstitucionalização

Os tempos são realmente bicudos, mas não temos o que comemorar no aniversário da constituição brasileira, a qual ostenta boa parte do nosso retrocesso, da judicialização de conflitos e do moroso serviço judiciário nas mais variáveis vertentes jurisdicionais.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Atualizado em 6 de outubro de 2017 13:10

Ao tempo em que a Constituição Federal completa 29 anos de vigência, cabe uma profunda reflexão sobre seus contornos e a necessidade de se repensar a mudança do sistema.

Ao invés de adotarmos a linha de Montesquieu de separação de poderes, convivemos com a constante confusão entre os poderes. Um pecado original a Assembleia Nacional Constituinte ter sido fundada exclusivamente no poder do Parlamento, alijando a sociedade civil de sua feitura.

Mas não é só. Os problemas oriundos de uma Constituição livre, aberta e ostentando direitos em abundância, não veio acompanhada de qualquer regulação prudencial, jogando aos ventos conceitos programáticos de liberdade, igualdade e garantias que, em tese, não passam de retoques formais. Com razão, nesses quase trinta anos de vigência da Carta Política, pouco se mudou e a evolução para melhor, se houve, fora mínima.

Além disso, tudo repousa numa interpretação de conotação constitucional. Não podemos submeter a Corte Suprema ao opinamento, e com ele o malsinado foro privilegiado. Temos que sair da visão maniqueísta de que sem uma solução de consenso derrama-se uma questão sobre os ombros do STF para que ele venha a se pronunciar sobre a interpretação da Constituição Federal. Essa conduta não ocorre em qualquer parte do planeta. Nos países do Primeiro Mundo, a Corte Suprema julga poucos recursos, mas de repercussão geral. Esse modelo faliu literalmente, como a Federação e a República foram espinafradas pela absorção de valores pouco éticos de grupelhos que assaltaram o poder e, na promiscuidade do público e privado, cuidaram apenas do particular.

Não tem o menor sentido prosseguirmos na esfera de uma Constituição que, ao longo dos anos, ficou esclerosada e divorciada do sistema e não confere à sociedade o direito de ter uma representatividade mais forte. Uma Constituição deve e necessita ser concisa, enxuta e clara. Não pode ter centenas de artigos e um número maior de emendas constitucionais, a significar que o texto original já fora alterado e com isso houve uma deformação do sistema elaborado pela Assembleia Nacional Constituinte. Propostas de emenda constitucional são saudáveis, porém não na intensidade e no mecanismo de 513 deputados federais e 81 senadores; nada funciona a contento e o entrechoque de interesses entre os poderes instituídos provoca fraturas e rupturas, colocando em risco o regime democrático.

A radicalização é sempre possível, mas não agrada. Na França de hoje, um candidato de centro esqueceu-se acertadamente do confronto e propôs um país pacificado e livre de arroubos que levariam aos extremismos. Foi assim que Macron revolucionou a França e saiu com a candidatura de alguém sem o vício de ligação com o poder corroído pelo descrédito.

E a desconfiança da população e o total pessimismo da sociedade civil se somam à falta de opção para o ano de 2018. O canhestro sistema de voto obrigatório e o horário político gratuito são coisas inaceitáveis, bem como o fundo partidário bilionário.

A Constituição de 1988 de 5 de outubro, acreditou que bastaria construir as pilastras de um regime democrático que logo em seguida a governabilidade tornaria a letra em atividade, mas, ao contrário, se consolidou em letra morta.

Dessa maneira, portanto, sem uma reforma constitucional profunda, não evoluiremos e não sairemos da zona de conforto, comodismo de que a sociedade não pode ser vítima. Sem as reformas políticas ambicionadas pela sociedade civil, elas passam inexoravelmente pelas mãos do STF.

Exigir que o candidato tenha partido configura uma camisa-de-força inaceitável. Ele pode ter boas ideias, disputar o cargo e ter um vácuo de até dois anos para se filiar a alguma legenda sem perder o mandato para o qual fora eleito. Findar o fundo partidário e reduzir os partidos a, no máximo, meia dúzia, parece-nos inadiável.

Ao que tudo indica, conviveremos com múltiplas crises, porquanto a nossa Constituição trouxe cláusulas pétreas inaplicáveis e construiu um modelo virtuoso dentro de um círculo vicioso de muitos direitos e excesso de garantias, tudo muito belo numa pintura cuja foto não se transforma num filme a ser assistido pela soberania popular - outro predicado que é meramente teórico, já que a população sempre paga impostos e com ele todas as contas de um endividamento público enorme.

Ao lado disso, pesados grupos políticos e econômicos não permitiram que diversos dispositivos fossem regulados para efeito de implementação, dentre os quais a assistência à saúde, proteção à família, taxa de juros de 12% ao ano etc.

O contexto constitucional, nesse seu aniversário de plena mocidade de apenas 29 anos, nos leva a diversas interrogações e muitas perplexidades. Se uma Carta Política longa fosse suficiente para a construção de uma democracia e a pacificação do povo, a nossa seria a melhor do mundo. Mas, no entanto, deixa e muito a desejar.

Devemos, a passos largos, desconstitucionalizar o modelo, conferir autonomia mais ampla aos Municípios e permitir que os Estados se autodisciplinem e autogovernem. A intervenção da União haverá de ser pontual e em campos estratégicos e momentos específicos. No Brasil, a União é o primo rico da carga tributária, e os primos pobres os Estados e Municípios, literalmente quebrados e submetidos ao escárnio do refinanciamento de suas dívidas. A carga tributária, sempre em excesso, bloqueia a atividade empresarial, mas sempre aparece um refinanciamento para não ser cumprido, dando alento e fôlego aos maus pagadores, quando não aos sonegadores.

É chegado o tempo de revermos a Lei Maior, desconstitucionalizar o funcionamento do Brasil e conferir autonomia e livre discernimento para Municípios e Estados. Aqueles sem orçamentos controlados sofreriam processo de monitoramento e, se o caso, seriam absorvidos pelos mais ricos.

Vemos em pleno Século XXI que o conflito entre poderes não é uma "jabuticaba" brasileira. Na Espanha, sequer a decisão da Corte fora obedecida na votação da independência da Catalunha.

Os tempos são realmente bicudos, mas não temos o que comemorar no aniversário da constituição brasileira, a qual ostenta boa parte do nosso retrocesso, da judicialização de conflitos e do moroso serviço judiciário nas mais variáveis vertentes jurisdicionais.

Uma Constituição depende da participação de todos os membros da sociedade civil, e a blindagem que nela existe em prol dos parlamentares é um dos principais motivos do divórcio entre a sociedade e o eleito.

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*Carlos Henrique Abrão é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo






 

*Laércio Laurelli é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo


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