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Mani Pulite Operação Mãos Limpas - 25 anos depois

Francesco D'Ippolito e Marcelo Figueiredo

Mani pulite. Com esta expressão entende-se a ação judiciaria que entre os anos 1992-1994 enfrentou de forma maciça a corrupção na Itália.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Atualizado às 10:11

Este ano corre o 25º aniversário do episódio conhecido na Itália com o nome de "Mani pulite" (Mãos limpas) que sacudiu a vida política daquele país no período 1992-1994.

Considerando o que está acontecendo recentemente no Brasil, muitos, também aqui, frequentemente citam este evento e escrevem em jornais.

Por isto achei oportuno também eu escrever algo, dando a minha opinião.

Mani pulite. Com esta expressão entende-se a ação judiciaria que entre os anos 1992-1994 enfrentou de forma maciça a corrupção na Itália.

Origem e difusão da corrupção na Itália

Com certeza a corrupção não era um fato novo na experiência política Italiana, mas se tornou endêmica com o advento da República. Em 1948 se rompeu a coalisão entre as esquerdas social-comunistas e a Democracia Cristã; coalisão que havia governado a Itália no pós-guerra e que havia permitido o surgimento da Constituição republicana.

Pelos acordos de Yalta, a Itália deveria fazer parte da esfera de influência ocidental, mas, por causa da presença de um partido comunista muito forte, havia uma clara pressão para que a Itália se aproximasse ao bloco soviético.

O partido comunista era muito bem organizado e dispunha de fundos advindos tanto das contribuições dos inscritos, quanto (supunha-se) do financiamento não oficial da União Soviética.

Para poder contrabalancear tal eficiente organização, a Democracia Cristã (e seus aliados) deveriam poder dispor de fundos financeiros adequados para desenvolver todas as atividades partidárias. O dinheiro advinha da corrupção, ou seja, do pagamento de propinas que os benificiários de serviços e grandes obras pagavam (os termos usados eram: tangente, mazzetta, bustarella, etc.) aos partidos políticos em troca de benesses ou facilidades.

A situação era conhecida e até se tornou costumeira (Di Pietro cunhou o termo 'dazione ambientale'; isto é: dou a propina porque é assim que se faz). Este mal era tolerado, porque não se queria a derrocada dos partidos do governo, sob pena de a Itália entrar na esfera de influência da União Soviética. A economia ia bem (nos meados dos anos 80' aconteceu o segundo milagre econômico italiano) e a sangria do malgoverno era absorvida pelos superávit econômicos.

O ponto de ruptura.

A partir do final dos anos 80', início dos anos 90', tudo mudou. Em 1988 aconteceu a derrocada do muro de Berlim e a União Soviética não era mais considerada uma ameaça; já o partido comunista italiano havia dado amplos passos em direção a uma postura socialdemocrata, especialmente sob a orientação do seu secretário Enrico Berlinguer. Em contraposição a economia passava por grandes dificuldades: a dívida pública alcançava 112% do PIB; as pessoas perdiam seus empregos, o sistema de aposentadoria, outrora generoso, mostrava sinais de insustentabilidade. A Itália estava saindo com fatiga do período chamado de 'anos de chumbo' (terrorismo e máfia).

O ambiente favorável ao enfrentamento da corrupção

Neste clima, surgiu na sociedade um fenômeno de rejeição aos grandes desvios e fraudes (às maracutaias) que repercutiam no bolso do trabalhador e da população em geral.

Quem se incumbiu de iniciar o processo de limpeza (inconscientemente, porque o estopim foi um episódio absolutamente marginal) foi a Procuradoria de Milão, comandada pelo Procurador Geral Francesco Saverio Borrelli.

É bom esclarecer que 1) na Itália o representante do Ministério Público é um magistrado que se submeteu ao mesmo concurso para o provimento do cargo de juiz, de forma que não existe a separação das carreiras entre juiz e ministério público; e 2) o Ministério Público não somente pode fazer a investigação criminal, mas é o próprio dominus desta, sendo a polícia apenas um auxiliar dele.

O Ministério Público havia adquirido poderes enormes (a beira do estado de exceção) com as leis que procuravam contrastar o terrorismo e a máfia; tais como: a delação premiada, a detenção preventiva longa - até trinta dias - o regime carcerário diferenciado (o famigerado 41bis), etc.

A Procuradoria de Milão era particularmente eficiente sob o comando do magistrado Borrelli.

Por outro lado, o ambiente judiciário romano não gozava da mesma boa fama, sendo até definido como um verdadeiro "cais das brumas" ('porto delle nebbie').

O fato

Aconteceu um fato menor; um funcionário do Hospital Trivulzio havia embolsado uma propina de (em dinheiro de hoje) cerca de 3000 Euros. Ele foi pego com as mãos na marmelada porque o substituto procurador Antonio Di Pietro havia armado uma tocaia. Este insignificante meliante (tal de Mario Chiesa) teve a infelicidade de declarar que a propina não era para ele, mas para o partido (no caso o Partido Socialista Italiano de Bettino Craxi, o mandachuva da época).

Foi a partir daí que iniciou o efeito cascata ou dominó.

O procurador chefe Borrelli formou a sua equipe de investigação e acusação: o próprio Di Pietro, Gherardo Colombo e Piercamillo Davigo.

Di Pietro não se destacava certamente pelo seu notável saber jurídico e frequentemente tropeçava nos subjuntivos. Mas havia iniciado a sua carreira como policial e tinha a astúcia de policial, sabia como conduzir um interrogatório, era um mestre na arte da armadilha e do blefe. Os pobres acusados suavam quando submetidos ao rolo compressor de Di Pietro.

Assim começou a fileira de investigados, elevando-se, cada vez mais a hierarquia dos mesmos; dos pés de chinelo se passava aos mais graúdos e destes aos chefões do mundo da política e do empresariado. Submetidos a um procedimento que havia sido pensado para infratores de outro tipo (terroristas e mafiosos), estes não aguentavam a pressão e entregavam cumplices e mandantes; alguns se suicidaram (trinta e seis entre 1992 e 1994).

O ápice foi alcançado com o indiciamento do próprio Craxi, o qual tentou uma defesa desesperada no Parlamento; mas seus pares, temerosos da reação da opinião pública, que a esta altura era enfurecida e queria ver sangue, não o sustentaram. Craxi, para fugir ao processo, refugiou-se na Tunísia (que não tinha tratado de extradição com a Itália e lá morreu tempos depois).

Ao mesmo tempo a imprensa, jacobina, insuflava o clamor público colocando ainda mais gasolina na fogueira.

As consequências a curto e médio prazo

A consequência a curto prazo foi a derrocada dos principais partidos que governaram a Itália desde o início da Republica: Democracia Cristã e Partido Socialista Italiano, os quais sumiram do mapa político, deixando espaço para o avanço de forças novas, tais como a Lega Nord (federalista, xenófobo), Forza Italia (centro direita, fortemente dependente do seu líder Silvio Berlusconi) e Ulivo (centro esquerda, herdeiro do velho Partido comunista) e, mais tarde, Movimento 5 stelle (populista e jacobino). É neste período que se verifica a alternância de poder através do bipolarismo (centro direita: Berlusconi e aliados - centro esquerda: Ulivo, depois Ds, depois PDs e aliados); isto pelo menos até o advento do 'terceiro incomodo', isto é "movimento 5 Stelle".

Esta mudança abrupta no esquema a que Itália havia se acostumado desde o início da Republica, fez surgir a concepção da 'Mani Pulite' como um divisor de aguas na vida pública italiana, de forma que se fala de Primeira República (antes de Mani Pulite) e Secunda República (depois de Mani Pulite), apesar de não ter ocorrido alguma ruptura institucional - os termos são apenas jornalísticos, mas entraram na linguagem comum e, com certeza, entrarão na história.

As consequências jurídicas

O procedimento penal italiano havia sido amplamente manobrado pelo Ministério Público, talvez para um fim maior, mas extrapolando os limites impostos pelas garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Desta forma surgiu um forte movimento, chamado 'garantista', que queria que fossem fixadas claras regras na Constituição, reclamando tais direitos. O movimento desaguou na redação do novo artigo 111 da Constituição que contempla o devido processo legal (giusto processo), dando ênfase à posição de terceiro (entre as partes) do juiz, ao aperfeiçoamento dos meios de defesa, à razoável duração do processo, a formação da prova em contraditório, etc.

As consequências de longo prazo e a lição

As modernas interpretações do fenômeno Mani Pulite convergem para o diagnóstico de que o mesmo foi um fracasso (o próprio Borrelli hoje se declara arrependido): mais de 70% dos réus se beneficiaram da prescrição; criou-se uma fratura entre dois poderes, executivo e judiciário, nunca sanada; os partidos populistas conseguiram bom êxito; a economia entrou em estagnação ou declino; alguns magistrados adquirirão uma sensação de omnipotência; e, para completar, a corrupção não foi debelada. O legado positivo pode ser encontrado na melhora da percepção do conceito de legalidade (obrigando os corruptos a serem ainda mais ardilosos). A lição que se pode colher e de que as mudanças não se fazem pela via judiciaria-populista.

A versão brasileira

A lição da Itália é histórica e deve nos servir ao menos para reflexão. Afirma-se que há identidade entre as duas situações, a italiana e a brasileira.

Talvez em ao menos alguns pontos possa ser adequada a comparação. A corrupção, tanto lá como aqui é um fenômeno antigo. Talvez mais antigo, proporcionalmente que na Itália no seguinte sentido. No Brasil temos corrupção desde a colonização pelos portugueses. Na Itália o fenômeno se agravou com o advento da República a partir de 1948.

Há aspectos históricos peculiares na Itália. A pujança do partido comunista assustava o eixo e teve consequências no pós-guerra com o surgimento da Democracia Cristã e seus aliados com o financiamento da corrupção.

É dizer um fato histórico que proporcionou uma reação no quadro político para contrabalançar e até desestabilizar o partido comunista e a esquerda. Aqui não houve esta motivação. Os recentes episódios e seu combate à corrupção são fenômenos um pouco diferentes da Itália. Aqui não houve um único fenômeno a desencadear o combate sistemático recente à corrupção.

Seu combate pode ser atribuído a uma conjugação de fatores. Primeiro, a grande força atribuída ao Ministério Público (Federal e Estadual) como órgão fiscalizador da República e da sociedade após o período de exceção. Segundo, a organização eficiente de várias organizações criminosas no Poder (Legislativo e Executivo) em larga medida, que tomando de assalto o Estado para propósitos individuais de poder, passaram a gerir a coisa pública como um sindicato do crime.

Pouco importa os motivos ou objetivos imaginados. Aparelhou-se o Estado de forma clara dentre outros motivos porque se acreditou na impunidade dos poderosos e dos chefes, seja advindos do setor público seja do setor privado, ambos coniventes na perpetração dos crimes cometidos.

Diversos núcleos criminosos neste período mais crítico formaram-se segundo análise do Supremo Tribunal Federal.

No Mensalão, o esquema de corrupção, de um modo geral, envolvia políticos, empresários, agentes públicos e operadores financeiros os quais atuavam cada qual em seu núcleo específico, da seguinte forma:

a) O núcleo político formado por partidos e por seus integrantes, principalmente parlamentares, os quais indicavam e mantinham funcionários de alto escalão na Administração Pública, recebendo vantagens indevidas pagas pelas empresas componentes do núcleo econômico;
b) O núcleo econômico, formado pelas empresas cartelizadas que eram contratadas pela Administração Pública e que pagavam vantagens indevidas a funcionários de alto escalão e aos componentes do núcleo político;
c) O núcleo administrativo, formado pelos funcionários de alto escalão da Administração Pública, os quais eram indicados pelos integrantes do núcleo político e recebiam vantagens indevidas das empresas cartelizadas componentes do núcleo econômico;
d) O núcleo financeiro, formado pelos operadores tanto do recebimento das vantagens indevidas das empresas cartelizadas integrantes do núcleo econômico como do repasse dessa propina aos componentes dos núcleos político e administrativo, mediante estratégias de ocultação da origem desses valores1.

Difícil afirmar qual foi a motivação desses grupos que cometeram diversos atos de corrupção. É possível no mínimo dizer que tinham convicção da impunidade e que a aliança para o crime jamais seria desfeita pois todos estavam satisfeitos com seus resultados.

Não houve aparentemente aqui a intenção de uma organização política com o produto do crime desestabilizar outras já estabelecidas.

Entretanto há similaridades em ambas as situações. A energia e a mobilização dos órgãos fiscalizadores da corrupção, notadamente, agentes policiais, auditores, juízes e promotores, em uma verdadeira força-tarefa uniram-se e fizeram verdadeira cruzada para descobrir e desbaratar atos de corrupção no período, como nunca foi visto no Brasil.

Pontos positivos e negativos advieram dessa ação e conduta. Abusos foram cometidos e violações ao Estado Democrático de Direito e ao devido processo legal tanto lá como aqui foram cometidos em nome da restauração da "moralidade administrativa".

Até hoje é claro esse cenário em manifestações conscientes ou inconscientes, inclusive de Ministro do Supremo Tribunal Federal que em nome da restauração da moralidade interpretam dispositivos constitucionais e legais elevando o princípio a um patamar sobranceiro e, algumas vezes, ignorando garantias constitucionais como o devido processo e a ampla defesa com os instrumentos a ela inerentes.

Aí há uma ação idêntica ao que se passou na Itália. Tanto lá como aqui, o amplo apoio da imprensa e a mobilização da opinião pública em ações exemplares e espetaculares (cênicas) da polícia federal passam uma imagem de que todos temos a missão de passar o Brasil a limpo a partir dessas ocorrências.

O núcleo de Milão pode ser comparado a nossa Curitiba, onde a Lava-Jato se desenvolveu com mais vigor. Surgem neste cenário, sempre vítimas de injustiças e de açodamento pela busca de culpados. Tome-se o exemplo do Reitor da UFSC no Brasil e Betino Craxi na Itália, guardadas as devidas proporções.

Mas talvez a maior lição aprendida pelos italianos e ainda não percebida pelos brasileiros esteja na conclusão da experiência italiana segundo a qual a missão de combate à corrupção não pode ser atribuída a apenas um grupo ou um Poder, mas é de todos os poderes e sobretudo da sociedade.

De nada valem ações exemplares sem que as causas e motivações que levam ao fenômeno não sejam efetivamente estudadas e combatidas em suas raízes.

Talvez por isso devemos nos perguntar quais mudanças deve a sociedade operar e exigir do poder político para que esses escândalos não voltem a ocorrer, e o que fizemos para preveni-los, antes de combater apenas seus efeitos pontuais.
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1 A atuação do Núcleo Econômico era intrinsecamente dependente da atuação do Núcleo Político, uma vez que este era responsável por indicar e manter um Núcleo Administrativo nos órgãos públicos contratantes voltados para a realização dos interesses ilícitos. O Núcleo Econômico pagava vantagens ilícitas aos integrantes do Núcleo Político, seja para se beneficiar das contratações públicas seja para obter proteção política. (Proc. n.54347/2017-GTLJ-PGR-STF).
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*Francesco D'Ippolito
foi advogado na Itália; é instrutor do idioma italiano, tradutor e interprete.

*Marcelo Figueiredo
é advogado, consultor jurídico em SP e professor de Direito Constitucional.

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