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Bioética: o que é isso?

Livia Maria Amentano Koenigstein Zago

A tecnologia e a mecanização foram, em parte responsáveis pelo fato de encarar o ser humano em algo impessoal, despido de protagonismo.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Atualizado às 15:46

No século curto, o XX, assim denominado, porque transcorrido entre duas Guerras Mundiais, o nazismo de Hitler pôs por terra os Direitos Humanos insculpidos na Declaração de Direitos de 1789.

As consequências das duas guerras mundiais foram impressionantes: a par do desenvolvimento técnico científico indiscutível, ficou estabelecido o caos mundial, a miséria, a deterioração dos mores e da dignidade humana.

O mundo conheceu, estarrecido, as atrocidades cometidas nos campos de concentração nazistas. Nada obstante submetidos ao Juramento de Hipócrates, valeram-se da perfeita legalidade erigida pelo arcabouço jurídico do III Reich para justificar suas condutas pavorosas!

De 1933 a 1945, mais de 300 médicos participaram de atrozes pesquisas nos campos de concentração. Estas pesquisas envolviam grávidas, idosos, crianças, gêmeos, submetidos à remoção e transplantes de ossos, órgãos, músculos, inoculação de vírus, bactérias, levados a frio insuportável, até o limite da vida, até o anseio pela morte!

Levados ao Tribunal Internacional de Nuremberg, uma das consequências do julgamento destes médicos, em 1947, foi a elaboração do Código de Nuremberg, que representa o marco fundante da Bioética, ao determinar a conduta dos médicos e de todos os envolvidos nas pesquisas científicas envolvendo seres humanos.

Seus princípios irradiam, até hoje, em documentos jurídicos e éticos modernos, como Declaração de Helsinque, de 1964 (modificada em Tóquio 1975, Veneza 1983, Hong Kong 1989, Somerset West 1996, Edimburgo 2000, Washington 2002, Tóquio 2004 e Seoul, 2008); Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, adotada pela Conferência Geral da UNESCO, 1997, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos de 2005.

São eles: a autonomia, exercida pelo consentimento/assentimento livre e esclarecido; a beneficência, que é o comprometimento com o máximo benefício e o mínimo risco; a não maleficência, que significa evitar danos e a justiça, na seleção dos participantes da pesquisa científica envolvendo seres humanos e na igual consideração de seus interesses, direitos e respeito.

Num certo momento da História, em 1927, Fritz JAHR cria a Bioética como sendo a ética das relações dos humanos com os seres vivos.

Posterior e precisamente em 1971, o Prof. Van Rensselaer Potter, americano, bioquímico, nascido em 27 de agosto de 1911 e falecido em 6 de setembro de 2001, pesquisador na área de oncologia, propôs um conceito interdisciplinar, que relaciona ética e ciência da sobrevivência da vida na Terra, ao qual denominou Bioética. Estava muito preocupado com as consequências do desenvolvimento científico e tecnológico da década de 60, do Século XX.

A Bioética, neste estágio inicial, tinha o sentido de ser uma Ponte para o Futuro, que visava sobretudo questões de saúde, restrita às áreas médica e da ética das pesquisas científicas em seres humanos.

Posteriormente, em 1988, Potter passa a perceber a Bioética como Bioética Global, que abraça todos os aspectos relativos ao viver, isto é, a saúde e a questão ecológica. Finalmente, a Bioética passa adquirir um molde mais humanista, abrangendo a vida, a saúde e o ambiente, agora chamada de Bioética Profunda.

Um movimento forte promoveu o encontro da Bioética com os Direitos Humanos, transformando-a em batalhadora pela dignidade humana em seus diversos vieses, dos quais se destacam a autonomia, a não discriminação de qualquer tipo, a proteção aos vulneráveis, pessoas ou grupos, a não estigmatização, a intimidade, a privacidade. Além da luta pelo meio ambiente, pela ecologia profunda, a preocupação com as futuras gerações, com a política e a economia.

Há quem enxergue uma macrobioética preocupada com as responsabilidades frente à vida planetária ameaçada, o crescimento da população mundial, a crise do meio ambiente global e o patrimônio comum da humanidade, as tecnologias emergentes, a guerra e as injustiças, entre tantos outros temas. Que convive com a microbioética das situações individuais de cada ser em sua vida, integridade, saúde e bem-estar, e os direitos devem preservar estes valores individuais ao mesmo tempo que os valores sociais.

A Bioética, cuja característica e natureza consistem na multidisciplinaridade e na interconexão com todos os saberes, sem alterar-lhes a autonomia, indica, outrossim, forte propensão a tornar-se a filosofia do século XXI.

Um alerta merece ser feito: os dois fenômenos realmente formidáveis, deslumbrantes e assustadores de nossa era são a genética, que das ervilhas de Gregor Mendel, em 1865, salta para a descoberta do genoma humano ( 2001) e a comunicação, que nos aprisiona em redes, ao mesmo tempo libertadoras!

Novas realidades nos desafiam: vida projetada, vida utilitária, vida em potência, vida oriunda de vários atores. A morte assume possibilidades de ser boa, de ser retardada, de não sê-lo, de ser congelada. O morto tem utilidade e serviência, à perpetuação da vida e da saúde!

Outras interpretações do ser humano como identidade de gênero, as diversas composições familiares, o nascer de um por intermédio de vários, o nascer projetado, postergado, o nascer suspenso e condicionado.

A tecnologia e a mecanização foram, em parte responsáveis pelo fato de encarar o ser humano em algo impessoal, despido de protagonismo.

Evidencia-se um clamor ético, pelo retorno da honestidade, pela humanidade e humanização do humano, pela realização do higth touch nos relacionamentos em geral e em especial na área profissional, tão low touch atualmente! O Direito busca impregnar-se de afeto!

A realizadora destas utopias, destas realidades de humanização e de condução à dignidade e à autonomia do ser humano é a Bioética, na interface com todos os ramos do conhecimento humano.

Mas o ser humano bom por natureza, de Jean Jacques Rousseau, está amedrontado pelo monstro Leviatã moderno, que emerge perpetuando o terrorismo, as drogas, o consumo insano, a violência contra a mulher, a manipulação da cidadania pela política predadora, pela economia maquiada de verde, pelos meios de comunicação massivos, pela invasão da privacidade e da intimidade de todos nós, pelo descaso do Estado em fornecer saúde, cada vez mais privatizada, pela medicalização da vida, pela criação de novas enfermidades, pela terceirização da pesquisa científica, cujos resultados, programados e adredemente conhecidos, são projetados pela indústria farmacêutica estrangeira, que usa o participante de pesquisa de países pobrezinhos como o nosso e põe no mercado remédios caríssimos, de pouca eficácia e segurança!

Esta situação fez emergirem novas e nocivas Bioéticas, que espelham o retrocesso ao qual assistimos.

Como bem apreendido pelo professor Dr Victor Penszchasadh 1 , cujas palavras copio como fecho e que consiste em outra resposta à indagação inaugural Bioética, o que é isso?

''Existem versões da Bioética que são extremamente negativas, como a Bioética anglo saxônica, dos USA, que contemporizam os interesses da indústria e grandes corporações, e o sistema econômico depredador imperante.

Esta Bioética convalida por omissão a ordem imperante e opera como instrumento de dominação cultural.

Sua retórica individualista contrasta com sua visão benevolente dos abusos éticos da indústria farmacêutica e da falta de vigência do direito da saúde.

Por sua vez, as Bioéticas baseadas em preceitos confessionais pretendem influir indevidamente nas normas bioéticas destinadas à população, formada por crentes e não crentes.

As correntes bioéticas confessionais baseadas em dogmatismos religiosos e em verdade revelada não são aptas ao diálogo pluralista. São os mesmos preceitos que apoiaram, há 500 anos, a invasão colonial e o genocídio de povos originários e em épocas mais recentes os terrorismos de Estado que assolaram nossos países''.

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1 Ex-professor de Genética, Bioética e Saúde Pública da Universidade De Colúmbia, NY e Presidente da Rede Latino Americana e do Caribe de Bioética da UNESCO, em palestra proferida na cidade de Córdoba, IX Encuentro Abierto de Ex Alumnos del Programa de Educación Permanente en Bioética da Redbioética UNESCO.

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*Livia Maria Amentano Koenigstein Zago integra a Rede de Educação Permanente em Bioética - RedBioética UNESCO, como docente em Bioética.

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