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Da inaplicabilidade e inconstitucionalidade da lei municipal de São Paulo 16.386/16 (moagem de carne)

André Souza

A lei municipal 16.386/16 padece de inconstitucionalidade, devendo-se observar que, caso o interesse seja desobrigar os estabelecimentos varejistas de somente realizar a moagem da carne na presença do consumidor, é necessário que se busque a alteração da legislação estadual referenciada.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Atualizado às 15:49

Os açougues e estabelecimentos do comércio varejista de carnes localizados no Estado de São Paulo, em regra, apenas podem comercializar produtos procedentes de estabelecimentos licenciados e registrados. Há exceção quanto a comercialização de carne fresca moída, sendo permitido seu fornecimento somente quando a moagem for realizada na presença do comprador/consumidor e a seu exclusivo pedido.

Esta regra encontra-se prevista no artigo 461, §1º, 2, do Regulamento constante do decreto estadual 12.342/78 (com a redação alterada pelo decreto estadual 45.248/00), que dispõe sobre normas de promoção, preservação e recuperação da saúde, e fora editado com fundamento no decreto-lei 211/70 do Estado de São Paulo. O referido dispositivo prevê que:

Artigo 461 - Os açougues são destinados à venda de carnes, vísceras e miúdos frescos, resfriados ou congelados, fracionados e/ou preparados em condições higiênicas e provenientes de animais em boas condições de saúde, procedentes de estabelecimentos licenciados e registrados.

§ 1.º - Será, entretanto, facultado aos açougues e estabelecimentos do comércio varejista de carnes:

2. a venda de carne fresca moída, desde que a moagem seja, obrigatoriamente, feita na presença do comprador e a seu exclusivo pedido;

A inobservância do dispositivo em questão caracteriza prática abusiva prevista no artigo 39, VIII, da lei federal 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), que considera abusiva a prática de colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro), observando-se, ainda, como fundamento, o disposto no artigo 7º do referido diploma legal, que atraí a incidência de quaisquer outras regras correlatas.

Aliás, a respeito do mencionado artigo 39, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, Antonio Herman V. Benjamin1 assevera que:

Em uma sociedade de produção em massa é mister, para o próprio sucesso do mercado, certa uniformidade entre produtos ou serviços. Esse é o papel da normalização, ou seja, estabelecer normas para o regramento da produção e, em certos casos, também da comercialização. E, muitas vezes, tal significa melhorar a qualidade dos bens de consumo.

[...].

Tudo leva a crer que, quanto maior o número de normas técnicas, maior é o grau de desenvolvimento do país.

Em consequência, tal descumprimento, ao caracterizar-se como prática abusiva, acarreta ao fornecedor a aplicação das sanções enumeradas no artigo 56 do Código de Defesa do Consumidor2, sem prejuízo de outras sanções que podem ser aplicadas no âmbito da citada legislação3.

Destarte, o Município de São Paulo editou a lei municipal 16.386, de 3 de fevereiro de 2016, que, a propósito de dispor sobre a identidade e as características mínimas de qualidade a que o produto cárneo, denominado Carne Moída, obedecerá quando destinado à venda, manipulado e embalado no comércio varejista de carnes, acabou por permitir a moagem da carne moída sem a presença do consumidor, dispondo tão somente que o consumidor tem a faculdade de solicitar que a moagem seja realizada na sua presença. A lei em tela, outrossim, fora regulamentada pelo decreto municipal 57.005/16.

Há, portanto, claro conflito entre as legislações Estadual e Municipal, o que demanda uma análise mais detida a respeito.

Por primeiro, reitere-se que, de acordo com o artigo 461, §1º, 2, do Regulamento constante do decretoEstadual 12.342/78 (com a redação alterada pelo decretoEstadual 45.248/00), os açougues e estabelecimentos do comércio varejista de carnes somente podem comercializar carne fresca moída quando a moagem for realizada na presença do comprador e a seu exclusivo pedido.

O referido decreto estadual 12.342/78, por sua vez, fora editado em decorrência e com fundamento no decreto-lei 211, de 30 de março de 1970 - ato legislativo equiparado à lei (estadual)4 -, especialmente em razão de seu artigo 22, que prescreve, in verbis:

Artigo 22 - O Poder Executivo expedirá os Regulamentos necessários à execução deste decreto-lei.

Portanto, a primeira premissa que deve ser fixada consiste na conclusão de que a obrigação relativa a moagem da carne lastreia-se em lei estadual (à época, editada como decreto-lei), qual seja, o decreto-lei 211/70.

Tem-se, na hipótese, ato legislativo que veicula matéria relativa essencialmente a produção e consumo. E, para tais matérias, a Constituição Federal fixou a competência legislativa concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal, na esteira de seu artigo 24, V:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

[...].

V - produção e consumo;

Lembre-se que a defesa do consumidor é direito fundamental e princípio basilar da ordem econômica, nos termos do artigo 5º, XXXII, e artigo 170, V, ambos da Constituição Federal.

Por outro lado, no que concerne a lei municipal 16.386/16, editada pelo município de São Paulo, que autorizaria a comercialização de carne já moada, deve-se interpretá-la em conformidade com a Constituição Federal, notadamente quanto a competência legislativa conferida aos municípios.

Nesse sentido, dentre as competências legislativas conferidas pelo Constituição Federal aos municípios, importa destacar àquelas referidas nos incisos I e II do artigo 30, conforme abaixo transcrito:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

Quanto ao inciso II (suplementar a legislação federal e a estadual no que couber), vê-se que somente se autoriza a suplementação, que tem o sentido de complemento, não havendo possibilidade de tal suplementação afrontar ou colidir com a legislação federal ou estadual.

Ademais, no que concerne ao inciso I (legislar sobre assuntos de interesse local), deve-se observar, por primeiro, que, conforme já afirmou o Supremo Tribunal Federal, a competência constitucional dos municípios de legislar sobre interesse local não tem o alcance de estabelecer normas que a própria Constituição, na repartição das competências, atribui à União ou aos Estados5.

Outrossim, ao estabelecer as competências concorrentes, a Constituição Federal fixou alguns requisitos nos parágrafos 1º a 4º do artigo 24, especialmente a impossibilidade, no caso, de lei estadual contrariar lei federal.

Tal lógica deve se estender à correlação entre a lei municipal e a lei estadual, não podendo esta ser contrariada por aquela, como vem defendendo a doutrina. Nessa linha, confira-se o escólio de Thiago Magalhães Pires6:

Aplicam-se aqui, por analogia, os parágrafos do art. 24. Se não houver lei federal ou estadual em vigor sobre o tema, os Municípios podem exercer a competência supletiva prevista no art. 24, §3º; caso haja ou sobrevenha legislação nacional ou estadual, suspende-se a eficácia dos dispositivos municipais incompatíveis com as normas federais ou estaduais.

De forma análoga, pode-se mencionar a súmula 419 do Supremo Tribunal Federal7, que possui o seguinte verbete: Os municípios têm competência para regular o horário do comércio local, desde que não infrinjam leis estaduais ou federais válidas. Ou seja, garante-se a competência legislativa do município (no caso específico, relativa a uma temática própria, mas que pode ser caracterizada como de interesse local), condicionada a não infringência de legislação federal ou estadual.

Também de forma análoga - em julgamento que despertou discussões semelhantes a questão ora posta -, o Supremo Tribunal Federal fixou o entendimento de que o município é competente para legislar sobre meio ambiente com União e Estado, no limite de seu interesse local e desde que tal regramento seja e harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (art. 24, VI c/c 30, I e II da CRFB)8.

Por fim, em abono, registre-se que a proibição de moagem da carne fora da presença do consumidor visa o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, encontrando amparo no próprio Código de Defesa do Consumidor (no caso, em seu artigo 4º, caput), sendo inviável a existência de legislação municipal que lhe afronte, seja por representar inevitável retrocesso (observando-se que o direito do consumidor é direito fundamental), seja pela necessidade de observância ao princípio da ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor (artigo 4º, II), verificando-se, no mais, que a legislação estadual guarda consonância com o artigo 55 do diploma legal em tela.

Portanto, nota-se que, em razão da vigência do artigo 461, §1º, 2, do Regulamento constante do decreto estadual 12.342/78 (com a redação alterada pelo decreto estadual 45.248/009), a lei municipal 16.386/16 do município de São Paulo padece de inconstitucionalidade, devendo-se observar que, caso o interesse seja desobrigar os estabelecimentos varejistas de somente realizar a moagem da carne na presença do consumidor, é necessário que se busque a alteração da legislação estadual referenciada.10

___________

1 BENJAMIN, Antonio Herman V; et al. Manual de Direito do Consumidor. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 317 e 318.

2 Conforme inclusive jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a exemplo dos julgados proferidos na Apelação 0043515-68.2011.8.26.0562 (7ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Eduardo Gouvêa, j. 10/12/12) ne Apelação 0003432-83.2007.8.26.0292 (13ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Borelli Thomaz, j. 9/5/12).

3 Exemplo: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 1ª Câmara de Direito Público, Apelação 9066687-69.2001.8.26.0000 (220.017-5/0-00), Relator Desembargador Demostenes Braga, j. 20/9/05.

4 Em razão da competência conferida pelo artigo 2º, §1º, do Ato Institucional 5, de 13/12/68 (editado pelo então Presidente da República Federativa do Brasil, somente sendo revogado em 1978 (observando-se o artigo 3º da Emenda Constitucional 11, de 13 de outubro de 78)), e em razão do recesso instituído pelo artigo 1º do Ato Complementar 47, de 7/2/69 (editado pelo Presidente da República, depois suspenso pelo Ato Complementar nº 85, de 20 de maio de 1970), ambos posteriormente mantidos em vigor pelo artigo 182 da Emenda Constitucional 1/69 a Constituição Federal de 1967.

5 Segunda Turma, RE nº 313060, Relatora Ministra Ellen Gracie, j. 29/11/05.

6 PIRES, Thiago Magalhães. As competências legislativas na constituição de 1988: uma releitura de sua interpretação e da solução de seus conflitos à luz do Direito Constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p 194.

7 Há, ainda, a súmula vinculante 38.

8 Pleno, RE 586.224/SP (com repercussão geral), Relator Ministro Luiz Fux, j. 5/3/15.

9 O que se pode cogitar, eventualmente, é se o Decreto em tela extrapolou da matéria tratada no decreto-lei 211/70, situação que demanda uma análise mais aprofundada.

10 Ressalta-se que o projeto de lei 599/2016 em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo busca permitir a moagem da carne fora da presença do consumidor, cuja redação é bastante similar à lei municipal 16.386/16. Ademais, no âmbito federal, o projeto de lei 699/15 em tramitação na Câmara dos Deputados prevê a obrigatoriedade da moagem da carne na presença do consumidor, na linha da regra atualmente vigente no Estado de São Paulo.

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*André Boccuzzi de Souza é advogado

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