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À luz do aborto

Infelizmente, em função dos problemas educacionais próprios de uma sociedade que valoriza a materialidade em detrimento do "ser", inúmeras pessoas, diante de caminhos diversos que por ventura, se apresentem adiante, escolhem o caminho mais rude, embora, preambularmente, pareça-lhe o mais fácil.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Atualizado às 14:18

O homem moderno, pesquisador da estratosfera e do subsolo, esbarra, ante os pórticos do sepulcro, com a mesma aflição dos egípcios, dos gregos e dos romanos de épocas recuadas.

Janaína estava grávida. No segundo mês de gestação, pensava, afinal, teria ou não o filho (a), haja vista, que sequer sabia quem era o genitor. A concepção se dera na praia, em pleno calor de carnaval.

Obtemperava a jovem esguia, nas demandas da maternidade e nos conflitos advindos de uma infância carente da destra paterna. Ela também não tivera pai. Na indecisão, cerrou os olhos e passou a contemplar a própria infância.

Quando criança, sofrera sobremaneira, ao perceber que todos os colegas tinham pai. E, sobretudo, no dia dos pais, quando todas as atividades na escola eram voltadas a esta data comemorativa, ela, tinha de destinar suas homenagens a mãe. Justo a mãe, que lhe impedira de ter um pai. Também a mãe engravidara em uma relação transitória de carnaval. Que destino!

Toda sua infância, até aquele momento, lhe ocorrera à mente e, desta maneira, suportando grande mágoa, decidiu que se a criança não nascesse não haveria de passar por todos estes dissabores que lhe foram próprios. Afinal, que falta faria a vida para quem sequer nasceu?

Decidida, quanto à interrupção da gravidez, procurou uma clínica onde pudesse ser realizado o aborto, haja vista, que recentemente o aborto fora regulamentado no Brasil. Contudo, fora informada de que após assinar os termos de responsabilidade, haveria de passar por acompanhamento psicológico antes e depois do procedimento. Pensou consigo:

- Fosse outros tempos, quando o aborto fosse ilegal, não haveria de passar por tamanha burocracia.

Acontece que com a regulamentação do aborto, as clínicas clandestinas minguaram ao ponto de fecharem por completo, haja vista, o Sistema Único de Saúde realizar o procedimento com toda a segurança necessária e sem qualquer custo financeiro.

Chegado o dia da primeira consulta psicológica, rumou para o endereço, ainda decidida a dar fim à existência do feto. Avistou o endereço do consultório e adentrou, sendo recebida com muita afabilidade pela secretária.

Os consultórios de psicologia que prestavam o atendimento eram todos particulares, entretanto, absorviam toda a demanda através de convênios com as respectivas prefeituras.

Iniciada a primeira consulta, a psicóloga, muito amorosa, pediu que Janaína discorre-se acerca da sua infância e adolescência, para depois, dizer, por que chegara a decisão de interromper a gravidez.

À medida que Janaína ia elencando os dissabores da infância e da adolescência, já desenhando uma narrativa a justificar a interrupção da gravidez, empregava grande ênfase as dificuldades pelas quais passou em decorrência da ausência da figura paterna. E não obstante, empregava relevância aos tropeços que a vida lhe destinara, como se todas as mazelas de sua vida fossem consequência da ausência do amparo paterno.

A Psicóloga apenas ouvia. Passiva; atenta, com olhar sereno e acolhedor.

Terminada a narrativa, seriam necessárias mais duas consultas com a psicóloga para que fosse enviado o relatório a Secretaria de Saúde do Município, autorizando o procedimento.

Todavia, quando Janaína fora se despedir daquele primeiro encontro, a psicóloga lhe sugeriu:

- Estimada Janaína, para o nosso próximo encontro, quero que você reflita se de alguma maneira as dificuldades pelas quais você passou lhe ajudaram a formar o seu caráter e se, de certa maneira, estes dissabores fizeram de você uma pessoa mais sensível aos problemas alheios.

Aquela orientação lhe causou grande impacto. Até aquele momento não havia pensado sob tal perspectiva. Ora, será que todas as dificuldades pelas quais passou lhe moldaram o caráter? Afinal, a mão do destino que forma o vaso de barro, tem maior êxito quando exerce pressão sobre o molde?

Naquela noite, ao deitar-se para dormir, passou a noite em claro. Como algo tão óbvio pôde lhe passar despercebido? Em que pese o ato leviano no carnaval, julgava-se mais madura do que a maioria das amigas de semelhante faixa etária. Estava clarividente que as dificuldades enfrentadas lhe forjaram um caráter mais sólido, preparando-a para as agruras da vida em sociedade.

Na próxima consulta, ao sentar-se no divã, fora imediatamente interpelada pela psicóloga, que lhe solicitou minúcias acerca das reflexões. Janaina não calou:

- Doutora, preciso lhe confessar, que a sua proposta de reflexão me proporcionou importante quebra de paradigma. De fato, olhando a vida sob a perspectiva de que as dificuldades são lições benditas, eu, realmente, não posso acreditar que enfrentaria as dificuldades presentes com a postura altiva de agora, não fossem os tropeços educativos que a vida me impôs.

- Diante de minha nova realidade, compreendo que subtrair desta vida que se forma em meu íntimo de carne e espírito, as dificuldades que a existência impõe, configuraria um crime do qual não desejo ser acusada.

- Portanto, doutora, resolvi levar adiante minha gestação, e dar a esta criança que vai nascer, as melhores lições para que possa enfrentar os problemas próprios da vida com a mesma postura altiva que me caracteriza a personalidade.

Sem que a psicóloga precisa-se dizer qualquer palavra de incentivo, Janaína se despediu e agradeceu pela compreensão. Saiu do consultório com a impressão de que, o simples fato de ter alguém disposta a ouvi-la, com atenção e carinho, fora o suficiente para o vislumbre de perspectivas estrangeiras.

Amparada pelo Estado, Janaína seguiu seu caminho, a luz da razão, e tive um lindo e saudável filho(a), o que não teria acontecido, caso a mesma tivesse sido relegada a clandestinidade, aos porões da ilegalidade.

Infelizmente, em função dos problemas educacionais próprios de uma sociedade que valoriza a materialidade em detrimento do "ser", inúmeras pessoas, diante de caminhos diversos que por ventura, se apresentem adiante, escolhem o caminho mais rude, embora, preambularmente, pareça-lhe o mais fácil.

Para Janaína, ser-lhe-ia mais fácil, a primeira impressão, interromper a gravidez, entretanto, bastaria o amparo paternal de um Estado de Bem Estar Social, para lhe direcionar no caminho que lhe traria maior proveito, enquanto criatura humana em evolução permanente.

Diante de uma sociedade tão desigual, o Estado, se pretende a paz social, não pode deixar na clandestinidade seus(a) filhos(a) desventurados(a).

Quem não despreza a vida, preza pela regulamentação do aborto.

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*Nelson Olivo Capeleti Junior é assessor jurídico na Schulze Advogados Associados.

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