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Atenção ao investir em ações preferenciais de sociedades de economia mista!

Bernardo Araujo Mitre e Thais Nunes Freitas Barros

Apresentamos um fator de risco quase sempre invisível nos estatutos, prospectos de ofertas públicas e formulários de referência que contemplam ações preferenciais emitidas por sociedades de economia mista de capital aberto.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Atualizado em 27 de novembro de 2017 18:19

1. Introdução

É questionável se as ações preferenciais emitidas por sociedades de economia mista de capital aberto estão sujeitas, integralmente, à mesma disciplina imposta às demais companhias de capital aberto, em decorrência das imprecisões aferidas nos respectivos estatutos, prospectos de oferta pública e formulários de referência.

Para esclarecermos essa dúvida, reproduzimos a peculiar exceção lecionada por José Edwaldo Tavares Borba:

"As ações preferenciais sem direito de voto poderão pertencer inteiramente ao capital privado, posto que não afetam o poder de controle. Cabe, porém, assinalar que essas ações, quando o dividendo fixo a elas destinado deixar de ser pago, poderão, pela regra geral (art. 111, § 1º, da Lei nº 6.404/76), adquirir o direito de voto, o que poderia interferir sobre o poder de controle. Esse efeito, todavia, considerada a natureza da sociedade de economia mista, cujo controle deve pertencer ao poder público, não seria aplicável nos casos e na medida em que viesse a afetar a efetividade do poder de controle estatal." (grifamos)1.

2. Diferença entre as ações preferenciais e ordinárias

Existem duas espécies de ações negociadas no mercado de valores mobiliários, destacadas e resumidas abaixo2.

i. Ações preferenciais (arts. 17 e 111 da Lei 6.404/76) usualmente não possuem o direito de voto, mas têm prioridade no recebimento de dividendos fixos ou mínimos em relação às ações ordinárias, nos termos do estatuto da companhia (art. 19). São destinadas a investidores que almejam majoritariamente a obtenção de proveitos patrimoniais, sem a pretensão de envolvimento na administração do empreendimento, querendo simplesmente alocar seus recursos e conseguir o retorno compatível.

ii. Ações ordinárias (art. 110) são aquelas que necessariamente têm direito a voto.

Na hipótese da companhia emissora deixar de pagar os dividendos fixos ou mínimos a que fizerem jus os acionistas preferencialistas sem direito de voto, pelo prazo estipulado no estatuto, não superior a três exercícios consecutivos, em regra, esses adquirirão a concessão do sobredito direito, que será conservado enquanto estiver pendente o pagamento, se tais dividendos não forem cumulativos, ou até que sejam quitados os cumulativos em atraso (art. 111, § 1°).

Essa premissa tem como lógica o fato de que, não havendo a concretização da vantagem econômica legalmente garantida aos titulares de ações preferenciais com prioridade no recebimento de dividendos fixos ou mínimos, é inválida a manutenção da restrição política a que estavam obrigados, facultando-se a prerrogativa de voto para poderem participar ativamente nas deliberações sociais e nos esforços para a recuperação financeira da companhia3.

3. Noções gerais sobre as sociedades de economia mista

A sociedade de economia mista é definida pelo art. 5º, III, do decreto-lei 200/67 como: "a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da Administração Indireta." (grifamos), repetido com pequenas modificações pelo art. 4º, caput, da Lei 13.303/16.

Rafael Carvalho Rezende Oliveira enfatiza: "(...) ainda que seja possível a participação societária de pessoas da iniciativa privada, o controle societário deve permanecer com os Entes federados ou com entidades da Administração Pública Indireta." (grifamos)4.

As sociedades de economia mista se submetem ao regime jurídico próprio das "empresas privadas" (art. 173, § 1º, II, da CRFB) e podem ser constituídas com o capital aberto ou fechado, sendo esse primeiro o mais comum, onde se permite a captação de recursos junto ao público, por meio da emissão de valores mobiliários, havendo subordinação às normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários (art. 235, § 1°, da Lei 6.404/76 e art. 4°, § 2º, da 13.303/16).

Na condição de capital fechado, a companhia não formula apelo à poupança pública, obtendo recursos entre os próprios acionistas e/ou terceiros subscritores 5.

São exemplos atuais de sociedades de economia mista de capital aberto: Petrobras, Banco do Brasil, Banco do Nordeste e Eletrobras (cuja proposta de desestatização foi aprovada em 23/8/17 e comunicada ao mercado no dia seguinte).

4. Análise da norma geral e da lei especial

Pela justaposição do art. 235, caput, da Lei 6.404/76 - "As sociedades anônimas de economia mista estão sujeitas a esta Lei, sem prejuízo das disposições especiais de lei federal.", com a parte final do art. 5º, III, do decreto-lei 200/67 - "(...) cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da Administração Indireta." (grifamos), reiterada pelos arts. 4°, caput, e da lei 13.303/16, percebe-se a harmônica convivência entre esses diplomas legais.

Maria Sylvia Zanello di Pietro elucida que as sociedades de economia mista são regidas por uma estrutura jurídica híbrida na qual jamais se subalternam totalmente ao direito privado. A derrogação do direito privado por normas do direito público tem por escopo preservar o equilíbrio entre a supremacia do ente estatal (interesse público) e a liberdade de atuação típica das pessoas jurídicas de direito privado6.

Modesto Carvalhosa arremata essa explicação ao ensinar que: "(...) as leis administrativas sobrepõem-se à lei societária."7, bem como: "(...) é forçoso admitir que o preceito de instauração do direito de voto por ausência de pagamento de dividendos não se aplica às preferenciais emitidas por companhias sujeitas à legislação especial sobre a matéria." (grifamos)8.

Ainda que se vislumbre uma antinomia aparente, a correta hermenêutica determina a adoção do critério da especialidade (lex specialis derogat legi generali) que privilegia o comando legal das sociedades de economia mista9, consentâneo ao art. 2°, § 2º, do decreto-lei 4.657/42, no sentido de inutilizar o art. 111, § 1°, da lei 6.404/76 quando houver ensejo para a perda do controle acionário estatal.

5. Entendimento da Comissão de Valores Mobiliários (CVM)

A autarquia abordou a matéria pela primeira vez nos Processos CVM RJ-2015-4307 e RJ-2015-4341 deflagrados pela Superintendência de Relações com Empresas (SEP), tratando da interrupção do prazo de convocação de assembleia geral extraordinária (AGE) da Petrobras.

No âmbito dos referidos processos constatou-se que em função do prejuízo de R$ 21,7 bilhões apurado pela companhia no exercício social de 2014, a administração propôs para deliberação na mencionada AGE que não fossem distribuídos dividendos, nem mesmo aos acionistas preferencialistas, estatuídos como beneficiários de dividendos mínimos prioritários; por conta disso os solicitantes alegaram que em função do estatuto da Petrobras ser silente quanto ao prazo para aquisição do direito de voto às ações preferenciais, esse direito seria conferido imediatamente conforme a redação do art. 111, § 1º, da Lei 6.404/76, nos diversos pleitos encaminhados à SEP com o intuito primacial apontado no parágrafo anterior. Instada a se manifestar, a companhia defendeu que as ações preferenciais por ela emitidas nunca poderão ter direito a voto, nos moldes do art. 62, parágrafo único, da Lei do Petróleo (lei 9.478/97).

Somente depois que os processos foram iniciados, a Petrobras alterou a seção "18.1 - Direito das ações" do seu Formulário de Referência (página 711 de 814) para alertar:

"A Lei 9.478/97 e o art. 5º do Estatuto da Cia estabelecem que o capital social seja dividido em ações ordinárias, com direito de voto, e ações preferenciais, estas sempre sem direito de voto. Pelo princípio da especialidade e segundo o art. 235 da Lei das S/A, destaca-se, dentre outras excepcionalidades, que o art. 111, §1º da Lei das S/A é inaplicável às ações preferenciais da Petrobras." (grifamos).

Com base nisso, a SEP expôs no RA/CVM/SEP/GEA-3/ 045/15 a seguinte observação:

"50. Muito embora a Companhia descreva que as ações preferenciais não possuem direito a voto- mesma informação que muitas outras companhias sujeitas ao art. 111, §1º, da Lei 6.404/76 prestam ao mercado -, ela deveria ter sido mais clara quanto à impossibilidade de as ações preferenciais por ela emitidas, especificamente, jamais virem a adquirir tal direito, em razão de estarem sujeitas a legislação especial." (grifamos).

Nesse relatório foi recomendado ao colegiado da CVM que inadmitisse o pedido de interrupção do prazo de convocação da AGE da Petrobras, que veio a ser efetivamente realizada em 25/5/15, resultando no arquivamento dos processos.

Após isso, foi instaurado pela SEP o Processo CVM RJ-2015-6065 em que se analisou a prestação de informações pela companhia sobre a possibilidade de aquisição de direito de voto pelas ações preferenciais da Petrobras, que originou o Processo Administrativo Sancionador CVM RJ 2015/10276.

Considerando que a decisão terminativa, proferida em 11/7/17 com unanimidade de votos, não enfrentou o mérito de incidência da alegada ressalva sobre a companhia, absolveu a Petrobras e outros acusados da imputação de eventuais falhas informacionais na oferta pública de distribuição de ações da companhia, e, não foi revisada pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN); parecem-nos equivocados o julgamento e os aspectos registrados, notadamente, nos itens 30, 39, 42 e 43 do voto do relator, transcritos e comentados adiante.

"30. Não estou a afirmar que essa seja a melhor interpretação jurídica20, até porque não me cabe, dentro dos limites deste processo sancionador, opinar a respeito da aparente antinomia entre o disposto no art. 62, parágrafo único, da Lei do Petróleo e o artigo 111, §1º, da Lei das S.A. O objeto deste processo administrativo sancionador consiste, precisamente, em apreciar a acusação de falta de diligência na elaboração do Prospecto da Oferta.

(...)

39. Não estou convencido de que, nos termos da Instrução CVM 400, de 2003, o Prospecto deva indicar, para toda interpretação de norma legal ou regulamentar, uma avaliação do risco de contestação jurídica. De acordo com o art. 38 da aludida Instrução, a informação contida no Prospecto deve ser não só completa, precisa, verdadeira e atual, mas também "clara, objetiva e necessária". Em outras palavras, o documento deve fornecer, de maneira direta e inequívoca, as informações necessárias para que os investidores possam formar criteriosamente a sua decisão de investimento.

(...)

42. Quanto ao caso em apreço, vale ressaltar, adicionalmente, que, desde ao menos o ano de 2000, a Petrobras vinha publicamente informando que as ações preferenciais poderiam adquirir direito de voto, em caso de não pagamento do dividendo, sem que esse entendimento tenha sofrido qualquer questionamento até o momento da Oferta. Examinada a questão nesse contexto, e levando ainda em consideração os argumentos jurídicos que respaldavam a posição da Companhia, parece-me, portanto, exagerado concluir que o Prospecto deveria conter um fator de risco, que, à época, sequer se vislumbrava.

43. No que toca especificamente à informação sobre o prazo para aquisição do direito de voto pelas ações preferenciais, vale reiterar, como já visto, que a posição adotada pela Companhia e refletida no Prospecto não se afigurava contrária ao entendimento doutrinário pacificado, tampouco à orientação desta autarquia. Diante disso, não acredito que fosse exigível da Ofertante e do seu DRI a inclusão no Prospecto de alerta quanto ao risco de questionamento." (grifamos).

5.1. Comentários

O julgamento desprezou a taxatividade da declaração da Petrobras de que as ações preferenciais por ela emitidas nunca poderão ter direito a voto, confirmada pelos art. 62, parágrafo único, da Lei do Petróleo, art. 5º, III, do decreto-lei 200/67, arts. 1º, parágrafo único, e 5º, caput, do Estatuto Social da Petrobras, seção "18.1 - Direito das ações" do Formulário de Referência, e, pela SEP; diametralmente oposta ao teor divulgado na página 60 do último Prospecto Definitivo da Oferta Pública de Ações da Petrobras (2010):

"(...) os titulares das nossas Ações Preferenciais, (...), não têm direito de voto nas deliberações das nossas assembleias gerais de acionistas, exceto em circunstâncias especiais, incluindo na eventualidade de deixarmos de pagar a esses acionistas o dividendo mínimo prioritário a que fazem jus, de acordo com nosso estatuto social, por três exercícios consecutivos." (grifamos).

Essa inverdade ocasionou a omissão de fato de relevo e induziu os investidores a erro (art. 39 da Instrução CVM 400/03), demandando a responsabilização da companhia dentre outros acusados (art. 56 da Instrução CVM 400/03 e art. 14 da Instrução CVM 480/09), máxime, por se cuidar da segurança jurídica de sociedade de economia mista de capital aberto.

Salientamos que nenhuma das doutrinas e concepções citadas nos autos detalha a predominância do art. 111, § 1º, da Lei 6.404/76 em face das sociedades de economia mista.

Foram contrariadas, sem justo motivo, as manifestações elaboradas pela SEP nos RA/CVM/SEP/GEA-3/ 045/15 (Processos CVM RJ-2015-4307 e RJ-2015-4341) e RA/CVM/SEP/GEA-3/ 078/15 (Processo CVM RJ-2015-6065).

Em virtude das inconsistências verificadas, de apenas dois dos diretores que participaram da sessão continuarem no colegiado da CVM, composto por cinco membros, e, de o CRSFN até o momento não ter sido provocado a examinar esse tipo de inquirição, é muito provável que numa próxima oportunidade judicante o desfecho seja diferente.

6. Conclusão

A advertência estampada e fundamentada nesse estudo precisa constar de modo claro e inequívoco em todos os estatutos, prospectos de ofertas públicas e formulários de referência que contemplem ações preferenciais com prioridade no recebimento de dividendos fixos ou mínimos, emitidas por sociedades de economia mista de capital aberto, em linha com os art. 19 da Lei 6.404/76, arts. 39 e 56 da Instrução CVM 400/03, art. 14 da Instrução CVM 480/09, o princípio da boa-fé, e, as boas práticas de governança corporativa (arts. e 8°, III, da lei 13.303/16 e arts. 13, III, e 19, II, do decreto 8.945/16).

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1 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 15ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017, p. 506-507.

2 PARENTE, Norma Jonssen. Tratado de Direito Empresarial: Volume 6 - Mercado de Capitais. Coordenação Modesto Carvalhosa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 140-142.

3 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada - Volume II. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 185-186.

4 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 5ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p. 118.

5 MIRANDA, Maria Bernadete. Sociedade de Economia Mista e Concentração de Empresas, p. 7. In Revista Virtual Direito Brasil - Volume 5, nº 1, 2011.

6 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanello. Direito Administrativo. 30ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 533.

7 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Volume 4 - Tomo I. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 348.

8 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Volume 2. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 420.

9 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito; compiladas por Nello Morra; tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 205.

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*Bernardo Araujo Mitre e Thais Nunes Freitas Barros são advogados.


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