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O caso Ana Hickmann e o excesso na legítima defesa

Não se pode avaliar os atos daquele que age em legítima defesa como se estes fossem passíveis de serem empregados de forma prévia e serenamente calculada.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Atualizado em 26 de dezembro de 2017 11:29

O triste episódio envolvendo a apresentadora Ana Hickmann instalou uma indignação sem precedentes na sociedade civil brasileira. Muitos não conseguem entender como o cunhado da apresentadora pôde ser colocado na condição de réu e, consequentemente, ser acusado de homicídio. A situação é delicadíssima, pois envolve aquilo que o próprio Código Penal brasileiro estabelece ser um "excesso punível". Pelo parágrafo único do artigo 23, o agente pode responder pelo excesso, doloso ou culposo, quando agir em alguma situação de excludente de ilicitude. Com base nesse dispositivo que o Ministério Público pediu a condenação do cunhado de Ana Hickmann, pois este teria desfechado três tiros na nuca do rapaz, situação que, para o acusador público, teria ultrapassado os limites da legítima defesa e atingido o dito excesso punível.

Com a devida vênia ao promotor subscritor da denúncia, o argumento é fraco e negligencia um fato relevantíssimo: quem age em legítima defesa se encontra em uma situação tal que não se lhe pode exigir que atue com reflexão e calma. Conforme as ponderações do filósofo alemão Samuel Pufendorf, "embora seja verdade que não devemos tirar a vida de outrem quando for possível para nós evitarmos, de um modo mais conveniente, o perigo em que nos encontramos; no entanto, por conta dessa grande perturbação mental que costuma ocorrer diante de um dano iminente, não é comum que haja excesso de rigor na apreciação dessas questões; pois não é provável que um homem, tremendo sob o temor de perigo, consiga descobrir exatamente os meios de escapar, que podem ser bastante claros para alguém que considera calmamente o caso."1 Noutros termos, não se pode avaliar os atos daquele que age em legítima defesa como se estes fossem passíveis de serem empregados de forma prévia e serenamente calculada. Ao contrário! Em casos que tais, é o instinto de sobrevivência que passa a ditar a conduta do homem, restando pouca ou quase nenhuma reflexão no seu agir. Donde a figura do excesso na legítima defesa pode facilmente conduzir a injustiças, pois negligencia esses aspectos fundamentais que circundam a ação da pessoa que age em legítima defesa.

Não por outro motivo que o jurista italiano Julio Fioretti, em estudo específico sobre o tema, criticou severamente a figura do excesso na legítima defesa, bem como a exigência da "moderação dos meios" utilizados:

"...querer punir o ato cometido por excesso de defesa é resolução perigosíssima, senão de completa impossibilidade na prática. Os penalistas, discutindo esse assunto, são preocupados pela ideia sistemática e apriorística de punir aquele resquício de imputabilidade que aparece além dos limites assinalados pelo moderamen inculpatae tutelae; sofismam atrás da ideia de proporcionar a cada centigrama de imputabilidade tantos meses ou tantos dias de cárcere, do mesmo modo por que se esforçam para proporcionar a cada quantidade de ação ofensiva um tanto e não mais de reação defensiva. O raciocínio é sofístico em um e outro caso, e em um e outro caso conduz às mesmas deploráveis consequências: favorecer o delinquente em prejuízo do homem honesto. (...). O excesso de defesa não deveria ser elevado à dignidade de forma especial de crime."2

E mais adiante, ao se referir aos Códigos Penais do Século XIX, enfatiza que quase todos eles aboliram essa nefasta figura do excesso: "...note-se que quase todos os códigos precedentemente citados aboliram em massa quase que inteiramente o crime de excesso da defesa, sancionando que ele não é punível quando o autor, na perturbação, medo ou terror, ultrapassou os limites da defesa. Ora, é claro que, tratando-se de defesa, é difícil imaginar um caso no qual não se devam reputar existentes essas perturbações."3

Nesse contexto, uma vez que a legítima defesa quase sempre se opera em condições nebulosas, a dita punibilidade do excesso acaba sempre por conter um coeficiente de injustiça em sua aplicação.

Um outro fator que jamais pode ser deixado de ser levado em consideração é aquele que diz respeito ao iniciador da agressão, pois aquele que inicia o uso ilegítimo da força contra alguém torna a sua agressão injusta, impedindo se lhe permita invocar a legítima defesa, ainda conforme as lições de Julio Fioretti: "A agressão injusta faz desaparecer desde o primeiro momento a possibilidade da existência desse direito no agressor; porque a sociedade não pode ter interesse em que um malfeitor conserve a vida."4

John Locke, à sua época, também sustentou essa tese: "O uso da força sem autoridade põe sempre aquele que a emprega em estado de guerra, como agressor, e sujeita-o a ser tratado nos mesmos termos."5

Dessas ponderações pode-se tirar a seguinte conclusão: a partir do momento que uma pessoa entra na casa6 de alguém armado, este alguém está autorizado, por lei, a praticar todos os atos necessários a proteger sua vida e de seus familiares. Ora, como vou saber o que a pessoa pretende? Quer ela roubar? Estuprar? Agredir? Tão somente assustar? Ninguém poderá dizê-lo. Daí que o Código Penal diz que a legítima defesa existe não só quando a agressão contra a pessoa é atual, mas também iminente. Esta expressão não foi colocada ali por acidente. Tem um propósito específico, a saber: proteger os inocentes naquelas situações em que algo de maléfico se lhes pode acometer, embora não se possa saber com certeza. E nem se poderia, pois "Perante o livre-arbítrio alheio, nada é previsível..."7.

Estes são, portanto, os contornos essenciais da legítima defesa, segundo o autor italiano citado: "É preciso não esquecer também os limites que dão a verdadeira figura da legítima defesa, isto é: a injustiça da agressão, a iminência do perigo, a impossibilidade (sempre a juízo do agente) de recorrer ao auxílio da força pública, a subtaneidade da reação defensiva."8 Pelo que se sabe, todos esses requisitos estavam presentes por ocasião da conduta do cunhado de Ana Hickmann. Ele repeliu uma agressão injusta, iminente, não só a direito seu, mas dos demais que ali se encontravam, e que não poderiam recorrer ao auxílio da força pública, pois estavam em um recinto fechado e inacessível ao público. Parece, no entanto, que o Ministério Público quer inovar, introduzindo um novíssimo requisito à legítima defesa: a pontaria. Para que o cidadão possa se valer do direito de legítima defesa, deve ele ser calculista, frio e preciso (na situação desesperadora em que se encontra), de modo a atingir o malfeitor frontalmente. Se os tiros que ele desfere atingirem a nuca ou as costas, a legítima defesa se descaracteriza, nada obstante a presença de todos os requisitos acima transcritos, tornando o malfeitor a vítima e o agente em autor de homicídio doloso. Tal argumento atenta contra a lógica e o mais comezinho senso de justiça.

Por fim, jamais se pode esquecer que do fato praticado é inseparável o móvel da conduta, pois "se é certo que a morte de um homem é a maior infelicidade que pode acontecer a um ser humano, é inegável que o porque da morte, o seu móbil, a causa que leva um homem a matar outro homem, tem uma força e um valor decisivos para o julgamento moral e para o julgamento penal."9
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1
PUFENDORF, Samuel. Os deveres do homem e do cidadão de acordo com as leis do direito natural, Editora Topbooks, p. 140. (sem grifos no original)

2 FIORETTI, Julio. Legítima defesa, Editora Líder, p. 74, 75. (sem grifos no original)

3 FIORETTI, Julio. Legítima defesa, Editora Líder, p. 94. (sem grifos no original)

4 FIORETTI, Julio. Legítima defesa, Editora Líder, p. 86. (sem grifos no original)

5 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, Editora Martins Fontes, p. 523. (sem grifos no original)

6 Obviamente que aqui se emprega a palavra casa no sentido dado pelo §4º do art. 150 do Código Penal.

7 ROHDEN, Huberto. Sabedoria das parábolas, Editora Martin Claret, p. 45.

8 FIORETTI, Julio. Legítima defesa, Editora Líder, p. 85. (sem grifos no original)

9 FERRI, Enrico. Discursos forenses - defesas penais, Editora Martin Claret, p. 76. (sem grifos no original)
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*Nadir Mazloum é advogado da Advocacia Nadir Mazloum.

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