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RPPNs não são unidades de conservação de uso sustentável

Considerado o art. 21 da lei do SNUC, RPPNs são unidades de conservação de proteção integral.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Atualizado em 28 de dezembro de 2017 14:10

A "Reserva Particular do Patrimônio Natural" (RPPN) é uma unidade de conservação criada a partir da iniciativa de particulares, proprietários de terras.

Ainda que surjam benefícios financeiros, da criação de uma RPPN (isenção de ITR, pagamento por serviços ambientais, etc.), ela é, em algum grau, fruto de um ato de generosidade, de pessoa física ou jurídica, para imprimir um caráter preservacionista, com gravame perpétuo, a uma área sobre a qual venha a ser reconhecido um interesse público ambiental, pelo órgão competente.

De outro modo, a RPPN serve para agregar, a uma atividade econômica, uma perspectiva de preservação ambiental, como, por exemplo, em um hotel fazenda com atividades de ecoturismo, ou, se a RPPN é criada perto de um loteamento, para valorização imobiliária, ou até para "marketing verde", por empresas. Mesmo nessas hipóteses, o resultado esperado é a preservação da Natureza.

Ou, ainda, a RPPN é criada para compensação ambiental por uso de recursos naturais em outra área e, como tal, insere-se obrigatoriamente num contexto moral e legal de preservação da Natureza.

Em qualquer das situações acima descritas, o proprietário de terras que mobiliza a Administração Pública para nelas instituir uma RPPN, o faz, ou deve fazê-lo, para fins preservacionistas.

Quanto ao que é uma RPPN, o marco regulatório deve ser uniforme, para isonomia entre os particulares perante o Estado brasileiro, equilíbrio de incentivos à criação de novas RPPNs e para fins federativos, pois RPPNs podem ser instituídas, após requerimento do proprietário das terras, por ato federal, estadual ou municipal.1 Todos os entes federados devem seguir as normas gerais instituídas pela União (Supremacy Clause, CF/88, art. 24, §§ 1º e 4º).

A lei federal 9.985/00, conhecida como "Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação" (LSNUC), criou dois grupos de unidades de conservação: "Unidades de Proteção Integral" e "Unidades de Uso Sustentável" (incisos I e II do art. 7º da LSNUC).

O objetivo básico das unidades de proteção integral é preservar a natureza, sendo admitido, via de regra, apenas o uso indireto dos seus recursos naturais (LSNUC, art. 7º, § 1º) e o objetivo básico das unidades de uso sustentável é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais (LSNUC, art. 7º, § 2º).2

O projeto de lei que se transformaria na LSNUC foi sancionado pelo Vice-Presidente da República, no exercício do cargo de Presidente da República, Sr. Marco Antônio de Oliveira Maciel, trazendo, no art. 8º, o grupo das "Unidades de Proteção Integral", composto por cinco categorias de unidades de conservação: estação ecológica, reserva biológica, parque nacional, monumento natural e refúgio de vida silvestre. E, no art. 14, o grupo das "Unidades de Uso Sustentável", composto por sete outras categorias de unidades de conservação.

Cada categoria comporta inúmeras unidades de conservação daquele perfil, v.g., o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (MA) e o Parque Nacional de Itatiaia (RJ) são unidades de conservação da categoria "parque nacional", do grupo das unidades de proteção integral.3

A Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) veio prevista no inciso VII do art. 14 da LSNUC, porque seria uma das sete categorias de unidades de conservação de uso sustentável. Seria, mas não o é.4 O Sr. Presidente da República em exercício vetou o inciso III do § 2º do art. 21 da LSNUC. Teria a seguinte redação, para atividades permitidas em uma RPPN: "a extração de recursos naturais, exceto madeira, que não coloque em risco as espécies ou os ecossistemas que justificaram a criação da unidade". Razões de veto:

"O comando inserto na disposição, ao permitir a extração de recursos naturais em Reservas Particulares do Patrimônio Natural, com a única exceção aos recursos madeireiros, desvirtua completamente os objetivos dessa unidade de conservação, como, também, dos propósitos do seu instituidor. (.). Justifica-se, pois, o veto ao inciso III do § 2º do art. 21, certo que contrário ao interesse público."5

Portanto, a RPPN se presta à pesquisa científica e/ou à visitação com objetivos turísticos, recreativos e educacionais (incisos I e II do § 2º do art. 21 da LSNUC). Não é compatível com a RPPN a extração de recursos naturais, nem mesmo se realizada de forma sustentável. A extração de recursos naturais em RPPN viola a LSNUC e o inciso III do § 1º do art. 225 da CF/88, que proíbe qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem a proteção de um espaço territorial especialmente protegido. Os atributos são verificados a partir do quadro legal em razão do qual a unidade de conservação foi criada.

Embora a RPPN conste do inciso VII do art. 14 da LSNUC, como se fosse uma categoria de unidade de conservação de uso sustentável, na verdade não pertence a este grupo, porque: (i) não é permitida, em seu interior, a extração de recursos naturais (uso direto de parcela dos seus recursos naturais, de que trata o art. 7º, § 2º, ao criar e conceituar o grupo das unidades de uso sustentável), em razão do veto presidencial ao inciso III do § 2º do art. 21, todos da LSNUC; (ii) as atividades que podem ser desenvolvidas dentro de uma RPPN, de pesquisa científica e visitação com objetivos turísticos, recreativos e educacionais, colocam-na, substancialmente, no grupo das unidades de conservação de proteção integral.6

Entretanto, a correta reclassificação da RPPN, no texto da LSNUC, como unidade de proteção integral, acabou nunca acontecendo. É necessário que lei da União corrija isso. E, inclusive, na lei 9.605/98 ("Lei de Crimes Ambientais"), notadamente o § 1º do seu art. 40 e o § 1º do seu art. 40-A, que, como foram redefinidos pela LSNUC, estão conceitualmente errados, em razão do veto ao inciso III do § 2º do art. 21, quando a própria LSNUC foi sancionada.

Esse equívoco de classificação, no art. 14 da LSNUC, quanto à RPPN, gera distorções, também, nas legislações estaduais. Apenas por exemplo, o parágrafo único do art. 1º do Decreto nº 46.519, de 22/07/2009, do Rio Grande do Sul (DOE nº 140), dispôs que "A Reserva Particular do Patrimônio Natural Estadual - RPPN Estadual está classificada no Grupo das Unidades de Conservação de Uso Sustentável, cujo objetivo básico é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais, conforme disposto na lei federal 9.985, de 18 de julho de 2000".7

Na verdade, em razão do veto ao inciso III do § 2º do art. 21, a RPPN exatamente não tem por objetivo básico "compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais".8

Consideremos, para ambientação das normas gerais, em matéria ambiental, os incisos VI, VII e VIII e parágrafos 1º a 4º, todos do art. 24 da CF/88. Da lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, colhemos:

"Deveras, se é próprio de quaisquer leis serem gerais, ao se referir a 'normas gerais', o Texto da Lei Magna está, por certo, reportando-se a normas cuja 'característica de generalidade' é peculiar em seu confronto com as demais leis. Em síntese: a expressão 'norma geral' tem um significado qualificador de uma determinada compostura tipológica de lei. Nesta, em princípio, o nível de abstração é maior, a disciplina estabelecida é menos pormenorizada, prevalecendo a estatuição de coordenadas, de rumos reguladores básicos e sem fechar espaço para ulteriores especificações, detalhamentos e acréscimos a serem feitos por leis que se revestem da 'generalidade comum' ou quando menos nelas é reconhecível uma peculiaridade singularizadora em contraste com as demais."9

Apenas a União pode editar normas gerais, que se impõem a todos os entes federados (CF/88, art. 24, § 1º c/c § 4º). Na ausência das normas gerais da União, os Estados-membros podem legislar sobre a matéria da legislação concorrente, mas com limitação espacial a seus territórios e apenas para suas peculiaridades, conforme competência legislativa que vem prevista no § 3º do art. 24 da CF/88, conhecida como competência estadual concorrente cumulativa.

A norma que conceitua uma categoria de unidade de conservação e que define as atividades possíveis nesta unidade, como, v.g., em uma RPPN, é "norma geral", no contexto constitucional. Assim, se algum Estado possuía lei sobre RPPN, antes da LSNUC, com a entrada em vigor desta, cessou, no que lhe seja contrário, a eficácia daquela (CF/88, art. 24, § 4º). E, se o Estado não tinha lei própria sobre RPPN, aquela que tenha editado ou venha a editar, após a entrada em vigor da LSNUC, deve com esta ser compatível, ou será inconstitucional.

A lei estadual que contraria normas gerais da União é inconstitucional, porque usurpa competência legislativa que a Constituição Federal atribuiu à União. Vejamos: "(.) 6. É que afronta o texto maior lei estadual que regule fora das peculiaridades locais e de sua competência suplementar, atentando contra as normas gerais de competência da União em manifesta usurpação de competência (CRFB/88, arts. 22, XXI, e 24, § 2º). 7. É inconstitucional, por vício formal, lei estadual que inaugura relação jurídica contraposta à legislação federal que regula normas gerais sobre o tema, substituindo os critérios mínimos estabelecidos pela norma competente. 8. (..)".10

As normas gerais da União estabelecem piso a ser seguido pelos Estados-membros, isto é, um nível mínimo de proteção ambiental, cabendo aos Estados o detalhamento normativo dos assuntos objetivados pelas normas gerais e, além disso, em assim querendo, legislar pela ampliação desta proteção ambiental, no exercício da competência legislativa suplementar (CF/88, art. 24, § 2º), pela competência estadual concorrente não cumulativa.11 Não podem os Estados-membros, contudo, reduzir a proteção ambiental, por lei estadual, para nível inferior àquele assegurado em normas gerais da União.

Uma RPPN é, por definição (caput do art. 21 da LSNUC), uma área privada (1), gravada com perpetuidade (2), com o objetivo de conservar a diversidade biológica (3), para as finalidades previstas nos incisos I e II do § 2º do art. 21 da LSNUC (4). Se uma lei estadual prevê que numa "RPPN" pode ocorrer extração de recursos naturais, das duas, uma: ou esta lei estadual está com eficácia suspensa, se entrara em vigor antes da LSNUC, ou é inconstitucional, se entrou em vigor após a mesma. Em qualquer caso, esta "RPPN" não é do SNUC, nem mesmo excepcionalmente, porque o parágrafo único do art. 6º da LSNUC não a acolhe, por não ser possível fazer-se "uma clara distinção" entre a unidade prevista nesta lei estadual e a RPPN da lei federal, sem que sejam contrariadas as razões do veto ao inciso III do § 2º do art. 21 da LSNUC. E têm conteúdo impositivo os incisos I e II do § 2º do art. 21, enquanto normas gerais. "Só poderá ser permitida, .", diz o texto do referido § 2º, do art. 21 da LSNUC.12

O SNUC é constituído "pelo conjunto das unidades de conservação federais, estaduais e municipais" (LSNUC, art. 3º). Por isso é o "Sistema Nacional de Unidades de Conservação". Municípios, apesar de não constarem do art. 24 da CF/88, podem legislar em matéria ambiental (CF/88, art. 30, I e II).13 Por dever de obediência às normas gerais da União, municípios não podem editar leis que permitam ou autorizem, em RPPNs, atividades de extração de recursos naturais.

RPPN constituída com base em lei estadual ou municipal que permita, autorize ou de qualquer modo promova, em seu interior, atividades de extração de recursos naturais, ainda que tenha o nome de "Reserva Particular do Patrimônio Natural", ou outro nome, RPPN, efetivamente, não é, porque não é enquadrável no SNUC. A unidade instituída por iniciativa de particulares também não pode pertencer ao SNUC se a extração de recursos naturais estiver prevista no plano de manejo, no ato que o aprova, em outros atos administrativos sobre a unidade, ou se for aferida por vistoria in loco.

Nas situações acima descritas, não poderá o proprietário da RPPN gozar de benefícios legais, como participação em editais de pagamentos por serviços ambientais (PSA), nem servirá tal RPPN para emissão de Cota de Reserva Ambiental (CRA), porque o inciso III do art. 44 do Novo Código Florestal (NCFLo), instituído pela lei 12.651/12, prevê este título nominativo como representativo de área com vegetação nativa, existente ou em processo de recuperação, protegida "na forma de Reserva Particular do Patrimônio Natural - RPPN, nos termos do art. 21 da lei 9.985, de 18 de julho de 2000". Ou a RPPN segue o modelo jurídico do art. 21 da LSNUC, ou não serve aos propósitos do art. 44 do NCFLo.

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1 Apenas na área federal, já existem mais de 670 RPPNs instituídas. Estaduais: exemplificativamente, existem 227 RPPNs reconhecidas pelo Estado do Paraná (dados de 22/1117) e 207 RPPNs reconhecidas pelo Estado de Minas Gerais (dados de jan/15). Municipais: Curitiba/PR, por exemplo, tem 21 RPPNs (dados de 20/12/17).

2 Conceitos de "uso indireto" e "uso direto": incisos IX e X do art. 2º da LSNUC.

3 Para "Parque Estadual" e "Parque Natural Municipal": LSNUC, art. 11, § 4º.

4 Cf. MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. São Paulo: RT, 7ª Ed., 2011, p. 927.

5 Grifos nossos.

6 Ver atividades permitidas para "Parque Nacional" (LSNUC, art. 11, §§ 2º e 3º).

7 Grifos nossos.

8 O Decreto do Estado do Rio Grande do Sul, apesar de ter classificado a RPPN como "UC de Uso Sustentável", corretamente seguiu, em seu art. 12, o conteúdo jurídico do veto presidencial ao inciso III, bem como as imposições normativas dos incisos I e II, todos do § 2º do art. 21 da LSNUC.

9 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conceito de normas gerais no direito constitucional brasileiro. Interesse Público, v. 13, n. 66, p. 15-20, mar./abr. 2011. Grifos nossos.

10 STF - ADI 5163, Relator: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 8/4/15. Transitou em julgado em 3/6/15. Grifos nossos.

11 Os Estados-membros estão obrigados a seguir apenas as normas gerais. Sobre normas específicas baixadas pela União, ver: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente limitada: o problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa, v. 25, n. 100, p. 127-162, out./dez. 1988.

12 LSNUC, art. 6º, parágrafo único: "Podem integrar o SNUC, excepcionalmente e a critério do Conama, unidades de conservação estaduais e municipais que, concebidas para atender a peculiaridades regionais ou locais, possuam objetivos de manejo que não possam ser satisfatoriamente atendidos por nenhuma categoria prevista nesta Lei e cujas características permitam, em relação a estas, uma clara distinção". Grifos nossos.

13 Cf. STF, RE 194.704. Transitado em julgado em 25/11/17.

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*Thiago Cássio D'Ávila Araújo é mestre (UniCEUB).

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