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Povo religioso, estado laico

A separação igreja-estado, vigente em nosso sistema legal desde 1891, com a proclamação da República no país, e mantido pelas Constituições seguintes, inclusive, na Carta Magna de 1988, que fundamenta o Estado Laico, ou seja, o Estado sem religião oficial é uma das maiores conquistas da humanidade.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Atualizado em 3 de janeiro de 2018 16:58

Nosso país já adotou o estado confessional, que é o denominado estado religioso, no período do Brasil-Colônia, de 1500 a 1822, e no Brasil-Império, de 1822 a 1891, quando o Credo da Igreja Católica Apostólica Romana era oficial, o governo brasileiro tolerava outras práticas espirituais, desde que estas fossem promovidas somente de forma privada, tendo, inclusive, pactuado um Tratado de Livre Comércio com a Inglaterra, concedendo aos ingleses o direito ao exercício de sua fé, ainda que restritivamente, assim surgiram no país os Cemitérios dos Ingleses, da mesma forma que atualmente, em alguns lugares, como própria Inglaterra onde a religião anglicana é oficial, e em países Islâmicos, os quais consideram a opção crença até para efeitos de cargos no serviço público, ou em Estados onde se vive o Ateísmo como ideologia oficial, sendo que, em alguns destes países é permitido ou tolerado pelos Governos, em maior ou menor grau o exercício da fé pelas pessoas.

A separação igreja-estado, vigente em nosso sistema legal desde 1891, com a proclamação da República no país, e mantido pelas Constituições seguintes, inclusive, na Carta Magna de 1988, que fundamenta o Estado Laico, ou seja, o Estado sem religião oficial é uma das maiores conquistas da humanidade, eis que este tipo de construção jurídica foi herdado da visão francesa, "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", é exatamente o meio termo, entre o Estado Ateu e o Estado Confessional, numa perspectiva de Neutralidade Religiosa Estatal.

No estado ateu impõe-se que a religião deve ser negada e perseguida pelos órgãos oficiais, numa visão unicamente materialista da vida, e com proibições para que os cidadãos possam expressar sua fé de forma pública, individual ou coletivamente, na perspectiva de que Deus é uma criação da mente humana e deve ser apagado das esferas sociais, em alguns casos tendo o grupo religioso que ser cadastrado pelo Governo, sendo as pessoas incentivadas a buscar respostas as questões existenciais da vida numa ótica tão somente humanística.

Já no estado confessional há uma espécie de confusão entre os órgãos da administração pública, os poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, que são as representações do Estado, e uma determinada religião, sendo esta a religião oficial, pelo que, é a orientada oficialmente para todos os cidadãos, especialmente para os que exercem, ou, para os que pretendem exercer cargos públicos, sendo, em alguns países, totalmente proibida, ou tolerada privativamente, a opção por qualquer manifestação espiritual que não seja aquela vertente de fé que é professada pelo Governo, para todos os efeitos legais, e em outros países liberados o exercício da fé não oficial.

Desta forma, o estado laico, que não é laicista, ou seja, hostil às religiões, por isso, a participação de suas ideias é bem-vinda na esfera do debate público, sendo um necessário contraponto a uma sociedade secularizada, proporcionando assim o equilíbrio do exercício de fé entre os cidadãos, seja porque não persegue ou proíbe qualquer manifestação religiosa, seja porque não adota oficialmente através de seus órgãos representativos qualquer opção espiritual em detrimento das demais, ao contrário, com base na Constituição Federal de 1988 é dever do Estado proteger todas as confissões religiosas, inclusive cidadãos ateus, agnósticos, e, os sem religião.

Por isso, a conquista deste Estado Laico, em nível constitucional, apesar de todas as suas imperfeições, especialmente na manutenção dos diversos feriados religiosos, e ainda, na tolerância de símbolos místicos em prédios e repartições públicas, é um marco legal que não deve ser flexibilizado de forma alguma, exatamente porque ele é a garantia jurídica da convivência pacífica entre os religiosos brasileiros de todos os matizes de fé, na perspectiva do respeito às diversificadas manifestações de crença, sem qualquer prevalência oficial.

A Constituição Federal de 1988 é peremptória ao assegurar a separação igreja-estado, em seu, artigo 19, "É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - Estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los, embaraçar o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; [...]", e, Ampla Liberdade Religiosa, no artigo 5º - Cláusula Pétrea, incisos: VI - "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias"; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva"; VIII - " ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei".

Por outro lado, o judiciário brasileiro tem sido instado a decidir questões religiosas às quais tem afetado os cidadãos, como no caso em que o CNJ decidiu que a utilização de símbolos religiosos em prédios públicos são a expressão histórica da cultura católica, não podendo ser entendidos como desrespeito aos demais cidadãos que professam uma fé diversa ou que não professa fé alguma, e, mais, o julgamento do STF que deliberou, por maioria apertada, ser constitucional o ensino religioso confessional em escolas públicas, inserido na Concordata entre a Igreja Católica e Governo Brasileiro, o Acordo Brasil-Santa Sé.

É na esfera trabalhista, no denominado de assédio moral religioso no ambiente de trabalho, que temos tidos decisões deveras importantes, tais como a que determinou aos Correios que readmitisse uma funcionária que se recusou a trabalhar aos sábados por sua opção de fé, sendo que a mesma, em seu processo de admissão, não só cientificou a empresa das implicações de sua crença em seu horário de trabalho, como compensava sua jornada de trabalho em outros dias, além de comprovar sua ligação com os religiosos que guardam o sábado.

Já temos várias condenações trabalhistas de empresas que obrigam empregados a participarem de cultos, e, mesmo, da candidata que comprovou judicialmente que foi preterida numa seleção de emprego por ser uma ex-testemunha de Jeová, sendo comprovado nos autos que a proprietária da empregadora não admitia que desviados de sua vertente religiosa trabalhassem em seu negócio, como a condenação desta empresa por danos morais, alusivos à discriminação religiosa praticada num processo seletivo admissional; como, também o reconhecimento de vinculo trabalhista de ministros de confissão religiosa em razão do desvirtuamento de sua atuação como sacerdote da fé, ou, quando a Igreja-Organização Religiosa utiliza práticas de mercancia, desviando-se de sua finalidade de propagação da crença nos dogmas espirituais junto aos fiéis e a sociedade.

Citamos, ainda, alguns casos concretos que a justiça pátria tem decidido, como, de uma empregada doméstica que comprovou intolerância religiosa, pois havia sido demitida por justa causa por acusação de prática de bruxaria, sendo indenizada por danos morais, ou mesmo, a condenação da empresa que deduzia dízimos dos funcionários na folha de pagamento, e, especialmente, a proibição judicial de pregação religiosa nos trens cariocas motivados por Ação Judicial promovida pelo Ministério Público Estadual/RJ alegando a desrespeito a liberdade de crença dos passageiros nos trens da Supervia no Rio de Janeiro, acolhida pelo Tribunal do Rio.

Numa outra vertente jurídica alguns fanáticos religiosos, que se autodenominam evangélicos, tem sido acusados pelos líderes de tradições de matriz afro de desrespeitar as oferendas e locais de cultos da umbanda e do candomblé, entre outros, já existindo no Rio de Janeiro uma Delegacia de Polícia Especializada em delitos praticados sob motivação religiosa, e os que comprovadamente têm infringido as normas de respeito à boa convivência das crenças, seja individual ou coletivamente, tem sido enquadrados como praticantes de crimes de intolerância religiosa sofrendo as devidas penalizações legais, existindo campanhas de promoção ao respeito.

Outrossim, chamou a atenção, fato ocorrido em Brasília/DF, quando uma Auditora do Ministério do Trabalho tentou impedir que crianças e adolescentes distribuíssem folhetos alusivos à fé evangélica durante a realização da Copa das Confederações, sob a falaciosa alegação de exploração de mão de obra infantil, o que casou espécie, pois o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é nítido ao preservar o direito a opção de fé das crianças e adolescentes, num verdadeiro caso afronta a liberdade religiosa e abuso de autoridade, e o agente público, segundo compartilhado pelos líderes evangélicos envolvidos, na Delegacia de Polícia recusou-se a registrar o Boletim de Ocorrência para instauração do Inquérito para apuração de responsabilidades.

Destaque-se que o Ministério Público Estadual/RJ apresentou denúncia em face das manifestantes que durante a "Macha das Vadias" no Rio cometeram o crime de vilipendio a objeto religioso previsto no Código Penal, pois segundo investigações promovidas pela Polícia Civil, durante Jornada Mundial da Juventude, num dos Cultos Religiosos liderados pelo Papa Francisco, que ocorreu na Praia de Copacabana/RJ, as mesmos teriam tirados as roupas, quebrados imagens, sentado na cabeça de uma delas, e, ainda, praticado atos libidinosos públicos em seus corpos, utilizando símbolos da Igreja católica apostólica romana, o que caracteriza objetivamente a prática de ato ilícito, além do crime de intolerância religiosa a fé católica.

Por isso, é vital a promoção de encontros e debates de conscientização, especialmente contando com as lideranças religiosas de todas as confissões de fé, numa proposição de respeito recíproco, eis que o exercício da crença é atinente a todos os grupos religiosos: ateus, agnósticos, budistas, candomblecistas, católicos, espíritas, evangélicos, hare-krishna, judeus, mórmons, mulçumanos, orientais, umbandistas etc, inclusive os sem religião, pois o povo é religioso, mas o estado é laico, tendo que ter o Equilíbrio da Laicidade Constitucional.

O Ordenamento Jurídico Nacional assegura e protege o Livre Exercício da Espiritualidade do Cidadão Brasileiro, mas necessita nas Questões de Ordem Pública, especialmente, através dos poderes constituídos: Executivo, Legislativo e Judiciário, em todos os seus níveis e esferas, resguardar a Vigência Legal da Separação Igreja-Estado, e, a Liberdade de Crença, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, que requer exista mais que tolerância, haja respeito à fé, à luz da multiplicidade da diversidade religiosa, eis que, segundo dados estatísticos do IBGE são mais de 200 grupos religiosos catalogados no país.

Tendo a premissa de que temos um povo religioso, que tem o direito natural e legal de professar sua fé nas mais diferentes vertentes de crença, eis que, nosso país, desde a Constituição Republicana de 1891, há mais de 120 anos, é um estado que é laico, ou seja, sem religião oficial, que assegura a expressão de espiritual das pessoas, inclusive ateus e agnósticos, como inserido no Estatuto da Nação, direito humano fundamental a expressão de religiosidade, também reconhecido internacionalmente por todas as nações civilizadas, inclusive na Declaração de Direitos Humanos, no Pacto de São José da Costa Rica, entre outros, validos no Brasil.

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*Gilberto Garcia é mestre em Direito, professor universitário, autor de obras jurídicas, e, presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros.

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