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Pregões eletrônicos e o uso de robôs: utilidade ou ilegalidade?

Doutro ângulo, em tempos de inteligência artificial, contratos inteligentes (os smatrcontracts) e ferramentas de auditoria simultânea de transações eletrônicas, proibir softwares que automatizem a vida das pessoas seria nadar contra a maré.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Atualizado às 16:22

Como se sabe, a licitação tem por objetivo alcançar como resultado a economicidade e o melhor serviço prestado ou produto fornecido (eficiência) e, para isto, a Administração Pública deve através do procedimento licitatório estabelecer a igualdade de condições e consequentemente fomentar a competitividade entre os interessados, a fim de atingir o melhor resultado possível que lhe ofereça a vantagem desejada em um contrato de compra ou prestação de serviço.

É o que diz, nesse sentido, o art. 3º da lei 8.666/93:

Art. 3º. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos lhe são correlatos.

Portanto, tais princípios são os pilares para uma licitação pública transparente e eficaz, são preceitos fundamentais para garantir a igualdade de condições, a competitividade entre os participantes e proporcionar a administração pública (direta ou indireta) a melhor e mais eficiente compra ou prestação de serviço e a violação de qualquer desses princípios vicia a lisura da disputa.

Como advento da lei 10.520/02 (lei que criou nova modalidade: Pregão), regulamentada pelo decreto 5440/05, emergiu-se uma nova ferramenta de licitação: o Pregão Eletrônico, que desde sua criação já movimentou bilhões de reais.

Aliado às constantes inovações trazidas pela tecnologia da informação, algumas empresas de software começaram a comercializar produtos que buscam otimizar a participação dos interessados em pregões eletrônicos, de forma automatizada a previamente parametrizada para dar lances.

Ocorre que com o uso de tais softwares (os ''robôs''), torna-se possível ao participante realizar lances automáticos e simultâneos, sempre à frente de seus concorrentes, dentro dos lapsos temporais previamente previstos em edital ou definidos pelo pregoeiro, muitas vezes bloqueado a inserção dos demais participantes.

Apesar de se tratar de um tema tortuoso, pouco (ou ''nada'') explorado na jurisprudência pátria e difícil de ser identificado, fato é que se constitui em dever do ente responsável pelo processo licitatório garantir de todas as formas a segurança, a transparência e a lisura do certame, mantendo invioláveis os princípios basilares a que se sujeitam a administração pública, bem como os particulares a ela vinculados.

Na esmagadora maioria das vezes, seja por desconhecimento, desinteresse ou inviabilidade de levar a discussão assunto adiante, os participantes de pregões eletrônicos, exceto os vencedores, deixam de analisar os registros e históricos de lances, a fim de identificar violações ao edital ou regras previstas pelo pregoeiro, as quais possuam indícios de utilização de robôs.

Como identificar o uso de robôs?

Primeiramente, vale destacar que a constatação da utilização de artifícios (seja qual for) por participantes de processo licitatório em qualquer fase da disputa, além de viciar a isonomia entre os participantes, fere também outros princípios basilares da administração pública como a impessoalidade, razoabilidade/proporcionalidade, dando à licitação um destinatário certo e uma vantagem desproporcional a quem se beneficia de tais ferramentas em detrimento dos demais, aniquilando a competitividade.

Como é de se imaginar, o uso de software ''robô'' nos pregões é um recurso que tem dado muita vantagem a quem se utiliza dele, deixando os demais concorrentes sem chance alguma na disputa de lances.

O uso de tal artimanha tem sido considerado pelo TCU como ilegal por ferir o princípio da isonomia entre os participantes, a exemplo do precedente abaixo:

O uso de programas ''robô'' por parte de licitante viola o princípio da isonomia. Mediante monitoramento, o Tribunal tratou do acompanhamento do acórdão 1647/10, do plenário, que versou sobre a utilização de dispositivos de envio automático de lances (robôs) em pregões eletrônicos conduzidos por meio do portal Comprasnet, da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento, orçamento e Gestão (MPOG). No acórdão monitorado, o Tribunal concluiu que, em pregões eletrônicos conduzidos via portal Comprasnet: ''a) é possível aos usuários de dispositivos de envio automático de lances (robôs) a remessa de lances em frações de segundo após o lance anterior, o que ocorre durante todo o período de iminência do pregão; b) com a possibilidade de cobrir lances em frações de segundo, o usuário do robô pode ficar à frente do certame na maior parte do tempo, logrando assim probabilidade maior (e real) de ser o licitante com o lance vencedor no momento do encerramento do pregão, que é aleatório; c) ciente dessa probabilidade, que pode chegar a ser maior que 70%, o licitante usuário do robô pode simplesmente cobrir os lances dos concorrentes por alguns reais ou apenas centavos, não representando, portanto, vantagem de cunho econômico para a administração''. Para o relator, os fatos configurariam a inobservância do princípio constitucional da isonomia, visto que ''a utilização de software de lançamento automático de lances (robô) confere vantagem competitiva aos fornecedores que detêm a tecnologia em questão sobre os demais licitantes'', sendo que as medidas até então adotadas pela SLTI/MPOG teriam sido insuficientes para impedir o uso de tal ferramenta de envio automático de lances. Além disso, como as novas providências para identificar alternativa mais adequada para conferir isonomia entre os usuários dos robôs e os demais demandariam tempo, e a questão exigiria celeridade, entendeu o relator que MPOG poderia definir provisoriamente, por instrução complementar e mediante regras adicionais para a inibição ou limitação do uso dos robôs, de maneira a garantir a isonomia entre todos os licitantes, nos termos do art. 31 do decreto 5.450/05, razão pela qual apresentou voto nesse sentido, bem como por que o tribunal assinasse o prazo de 60 dias para que a SLTI implementasse mecanismos inibidores do uso de dispositivos de envio automático de lances em pregões eletrônicos conduzidos via portal Comprasnet, no que foi acompanhado pelo plenário.

(Acórdão 2601/11-Plenário, TC-014.474/11-5, rel. min. Valmir Campelo, 28/09/11).

Importa trazer a lume que, conforme a explanação de um analista do Serviço Federal de Processamento de Dados - SERPRO, em um trecho de decisão do TCU no acórdão 485/15, explica-se o funcionamento dos ''robôs'' nos pregões:

(...)

'O robô é um componente de software desenvolvido para automatizar o envio de lances pelo fornecedor, transpondo alguns passos que devem ser dados na navegação de páginas'. Desta forma, evita que o fornecedor navegue e acompanhe o processo, deixando tudo a cargo da máquina. Segundo ele, os robôs foram identificados a partir da leitura dos lances ofertados nas atas dos pregões eletrônicos, mostrando lances menores desses fornecedores, com intervalos de milésimos de segundo entre um e outro. (grifo nosso)

Como se pode observar, o Tribunal de Contas da União considera tal prática como ilegal, apesar de não haver dispositivo legal específico para proibir e penalizar quem se utiliza desses sistemas, mas em todos os casos tem se recomendado medidas como cancelamento dos lances irregulares, cancelamento do item viciado, e também a desclassificação daquele participante que agiu maliciosamente.

Mesmo diante das ressalvas do TCU e da ilegalidade do uso de tais artifícios, há diversas empresas que desenvolvem soluções dessa natureza e, pasmem, ainda publicam em seus websites os ambientes da administração pública onde podem ser utilizados, a exemplo do website www.lancesautomaticos.com.br.

Para se identificar indícios de utilização de um software robô, basta se verificar o padrão de lances apresentados, sejam eles intermediários ou ''entre lances'', bem como o tempo em que são lançados no sistema, demonstrando um comportamento não isonômico.

Para melhor compreensão da forma de participação dos usuários em uma plataforma de pregão eletrônico, são dois os tipos de lances que se diferenciam por sua natureza:

1) Lance inferior ao menor lance registrado no sistema - este, tem por objetivo cobrir a melhor oferta ''entre lances'', ou seja, supondo que o menor lance registrado seja de R$ 100,00, e em seguida entre um lance de R$ 98,00, este, cobre a melhor oferta ''entre lances'';

2) Lance inferior ao último ofertado pelo mesmo licitante - este chamado de ''intermediário'', ou seja, a sua natureza é rever o seu preço ofertado sem ultrapassar o primeiro lugar. Na prática, é o tipo de lance ofertado especificamente para melhorar o posicionamento do próprio participante na classificação, quanto a uma futura desclassificação de quem estiver na frente.

Como já dito, tais tipos de softwares ''robôs'' permitem a customização, de modo que o operador pode pré-configurá-lo para dar lances automatizados sempre em cadências de valores exatos (por exemplo, de R$200,00 em R$200,00), provocando uma avalanche de inserções de lances, sempre que os demais participantes (que não se utilizam de robôs) enviam seus lances, bloqueando, por vezes, a possibilidade destes inserirem suas propostas no sistema, obrigando-o a aguardar mais tempo para o próximo lance.

Na maioria das vezes, dependendo das regras editalícias, torna-se humanamente impossível alguém fazer a leitura do lance adversário na tela, analisar e calcular o novo lance a ser dado (mesmo que o cálculo seja feito de forma automatizada no excel) e lançá-lo no sistema do pregão em poucos segundos.

Ilegalidade ou inconstitucionalidade?

Sem o objetivo de esgotar a discussão sobre o tema, até por uma questão didática e aberta, trazendo como exemplo prático, o TCU, no acórdão 1.216/14 envolvendo a ferramenta Licitacoes-e do Banco do Brasil, já recomendou que referida instituição financeira tomasse medidas com o fim de impedir que estes mecanismos virtuais pudessem se acoplar ao sistema e interferir na disputa do certame.

Sabe-se que, até hoje, no exemplo acima citado, o máximo que se adotou foi a disponibilização da ferramenta de ''captcha''1 , mecanismo este que tem sido alvo de hackers, que disponibilizam na internet diferentes formas de burla2 .

Como ilustração, segue parte de um texto extraído de uma consulta na internet a respeito do tema, senão vejamos:

(...)''Um pequeno adendo sobre leis e tecnologia: quando comentava com os amigos que estava escrevendo este artigo, eles só falavam de CAPTCHA. "Aquelas palavras embaralhadas não param os bots?", perguntavam. As especificidades de como o Wiseguy venceu o CAPTCHA são importantes. Muitos bots usam uma ferramenta chamada "Optical Character Recognition" [Reconhecimento Ótico de Caracteres], ou OCR, para burlar o CAPTCHA. O OCR é uma espécie de visão computacional, pela qual o bot é treinado a "ver", reconhecer e reproduzir os caracteres, assim como um ser humano faria.''(...)

(...)"Não é que hackearam o CAPTCHA. Responderam a ele. Um computador respondeu (...) o computador agia como um indivíduo e respondia ao CAPTCHA corretamente, o que permitia que ele, o computador, então acessasse a página de compra para solicitar ingressos."(...)Fonte: O cambista que quebrou as pernas da Ticketmaster

Apesar de haver projetos de lei nesse sentido3 , é inequívoco que não há previsão legal impeditiva a esse respeito nas leis de regência (lei 8.666/93 ou lei 10.520/02), tampouco nos portais que admitem tais plataformas.

Entretanto, não significa dizer que o uso de robôs seja algo perfeitamente legal, à medida que a aplicação do princípio da legalidade possui duas formas antagônicas de aplicação no âmbito do direito civil e do direito administrativo.

Nesse sentido, necessário se faz mencionar o entendimento dos ilustres professores CAIO BARTINE E CELSO SPITZCOVSKY (Coleção Elementos do Direito 2: Direito Administrativo 2ª edição, Revista dos Tribunais, 2015, p.32) ipsis verbis:

''Assim, enquanto aos particulares é conferida a possibilidade de fazer, na defesa de seus interesses e do seu patrimônio, tudo aquilo que a lei não proíbe, a Administração, na defesa dos interesses da coletividade, só pode fazer aquilo que a lei expressamente autoriza.

Por essa razão é que se diz que no campo do Direito Privado a atividade desenvolvida pelos particulares deve pautar-se por uma relação de não contradição com a lei, enquanto para o Poder Público trata-se de uma relação de subordinação para com ele.''

Doutro ângulo, em tempos de inteligência artificial, contratos inteligentes (os smatrcontracts) e ferramentas de auditoria simultânea de transações eletrônicas, proibir softwares que automatizem a vida das pessoas seria nadar contra a maré.

Fato é que, do modo como é posto e disponibilizado hoje, não há o mínimo respeito à isonomia, violando princípios comezinhos estabelecidos na norma jurídica, como acima demonstrado.

Aliás, o fato de não haver previsão legal impeditiva de sua utilização no âmbito da legislação administrativa, não quer dizer que tal prática de utilização de bots de modo como é feito seja permitida, devendo haver regramento assim estabelecer o modus operandi de tais artifícios.

Portanto, o mínimo que se espera seria a regulamentação do uso de tais tecnologias no âmbito da administração pública, de modo a proporcionar a paridade de armas entre os participantes, sob pena de se perpetuarem as violações aos princípios constitucionais em vigor.

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1- Vide Licitações-e Orientações para o fornecedor

2- Vide How to break a CAPTCHA system in 15 minutes with Machine Learning.

3- Disponível em PL 1592/2011
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*Leopoldo Fernandes da Silva Lopes é sócio do escritório Aldo Lopes Advogados Associados, especialista em Direito Internacional e Econômico e especializando em Direito da Comunicação Digital; consultor jurídico de startups.


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