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Uma breve reflexão acerca da aplicação da medida de "recolhimento domiciliar" a indivíduos sem condenação penal que respondem por crimes sem violência ou grave ameaça no Brasil

Thiago Sus Sobral de Almeida

No atual cenário de imaginário punitivista, em que a moral substitui o Direito e em que os fins justificam os meios, é preciso esclarecer que não advogo em favor de uma "bandidolatria" ou de um "democídio", mas da conservação de direito e de garantia fundamentais positivados em documentos que regem o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive em âmbito internacional.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Atualizado em 29 de janeiro de 2018 08:27

No Brasil, a magistratura penal de primeiro grau vem impondo, via de regra, o recolhimento domiciliar no período noturno e nos feriados e finais de semana (medida cautelar diversa da prisão) aos acusados em geral, mesmo quando se apura crime sem violência, grave ameaça ou emprego de outro meio que torne impossível a resistência da vítima.

Refiro-me aqui - e é interessante deixar claro - às decisões judiciais que têm, com facilidade, desconsiderado a ausência de antecedentes criminais e de personalidade voltada para o crime e/ou o comportamento exemplar - imaculado e sem nódoa - do indivíduo (investigado ou processado pelo órgão acusatório) no seio da sociedade em que vive.

A acenada medida cautelar, que restringe a liberdade de locomoção do seu destinatário, está prevista no inciso V do artigo 319 do CPP1 e é recomendada por cautela quando, da análise da natureza do delito investigado e do próprio caso concreto, exsurge risco social ou de reiteração na prática delitiva averiguada ("periculum libertatis").

A Constituição da República assegura em seu artigo 5º, inciso XV, que: "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens", disponibilizando o "habeas corpus" sempre que houver violência ou coação a esse direito por ilegalidade ou abuso de poder (inciso LXVIII).

O Pacto de San José da Costa Rica2, em tema de proteção ao "status libertatis" do indivíduo, estabelece, em seu artigo 7º, n.º 2, que: "Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas".

Já dizia Paulo Queiroz ("In" Direito penal. Introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 17/18) que os valores abrigados pela "Lex Fundamentalis", tais como a liberdade, a segurança, o bem-estar social, a igualdade e a justiça, são de tal grandeza que o Direito Penal jamais lhes poderia virar as costas, pois são o norte do legislador na seleção dos bens tidos como fundamentais.

O STJ tem exigido, para a aplicação das medidas cautelares diversas da prisão, fundamentação judicial específica que demonstre a real necessidade e a razoável adequação da medida em relação ao caso concreto (HC 399.099/SC, rel. ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 21/11/2017, DJe 01/12/2017).

Dão-nos igualmente exemplos disso: o RHC 87.591/MG, rel. ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 10/10/17, DJe 23/10/2017, o HC 352.843/PE, rel. ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 21/11/2017, DJe 27/11/17, e o HC 419.241/SP, rel. ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 21/11/17, DJe 28/11/17.

É dizer, a imposição do recolhimento domiciliar noturno, assim como a de prisão preventiva, deve vir acompanhada de justificação peculiar, ante os riscos que com elas pretende o juiz evitar. Do contrário, darão lugar a um constrangimento ilegal ao exercício regular do direito fundamental à livre locomoção no território nacional em tempo de paz (CRFB, artigo 5º, inciso XV).

Só há a real necessidade de manter o recolhimento domiciliar noturno se nenhum outro meio menos gravoso se revelar igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos pela cólera criminal do Estado ou, ainda, se houver risco à ordem pública, econômica, à conveniência da instrução criminal, ou evidências de recorrência em conduta social de intensa repulsa3.

A mera suposição de que o indivíduo obstruirá as investigações ou de que continuará delinquindo não autorizam a medida excepcional de constrição prematura da liberdade de locomoção, ainda que parcial, como a de recolhimento domiciliar, sendo indispensável a indicação de elementos concretos que demonstrem, cabalmente, a necessidade da medida limitativa4.

Esse meio cerceador não é necessário quando o objetivo estatal almejado puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele a um só tempo adequada e menos onerosa à liberdade do indivíduo. Sobre o tema, discorre Gilmar Ferreira Mendes ("In" Curso de direito constitucional. 10. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2015 (Série IDP). p. 227 ):

"Pieroth e Schlink ressaltam que a prova da necessidade tem maior relevância do que o teste da adequação. Positivo o teste da necessidade, não há de ser negativo o teste da adequação. Por outro lado, se o teste quanto à necessidade revelar-se negativo, o resultado positivo do teste de adequação não mais poderá afetar o resultado definitivo ou final. De qualquer forma, um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito)".

O tempo de duração da medida restritiva da liberdade também deve ser levado em conta pelo juízo penal, pois a todo e qualquer ato estatal que imponha restrição ao direito de locomoção deve preceder situação fática apta a justificá-lo, com fundamentação específica que evidencie a necessidade da medida em relação ao caso concreto, sob pena de abuso de poder do Estado.

Quer dizer, a ressalva à liberdade de locomoção do indivíduo é exceção, não a regra. E a apuração ou mesmo a imputação de crime sem violência, grave ameaça ou emprego de outro meio que torne impossível a resistência da vítima não autoriza, "de per si", a segregação prematura, ainda que parcial, da liberdade de locomoção do investigado/processado.

Por fim, no atual cenário de imaginário punitivista, em que a moral substitui o Direito e em que os fins justificam os meios, é preciso esclarecer que não advogo em favor de uma "bandidolatria" ou de um "democídio", mas da conservação de direito e de garantia fundamentais positivados em documentos que regem o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive em âmbito internacional.
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1 Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: [.] V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;

2 Recebido no ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992.

3 ALMEIDA, Gevan. Modernos movimentos de política criminal e seus reflexos na legislação brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. Sobre o tema, também, as lições de BORJA JIMÉNEZ, Emiliano. Curso de política criminal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003. E de ROXIN, Claus. La evolución de la política criminal, e derecho penal y e proceso penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000.

4
Nesse sentido, dentre outros, o HC 95009, Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 6/11/2008, DJ de 19/12/2008, e o HC 94541, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 30/6/2009, DJ 23/10/2009.

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*Thiago Sus Sobral de Almeida
é especialista em Direito e Jurisdição, com ênfase em Direito Penal e Processo Penal pela Escola da Magistratura do Distrito Federal (ESMA/DF) e advogado do escritório Ibaneis Advocacia e Consultoria.

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