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O Exame Nacional de Ensino Médio e a liberdade de expressão

Devemos analisar a questão sob a ótica de que a atribuição de nota 0 (zero) à redação que desrespeite os direitos humanos não se trata de censura, pois o candidato se manifestará.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Atualizado às 15:28

O novo Código de Processo Civil trouxe uma inovação aos tribunais em seu artigo 926 ao dispor acerca do dever em "uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente".

Trata-se de uma tripla exigência que deve ser observada na prolação de decisões, mormente em sede de cognição sumária como ocorreu na Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Antecipada 864 e na Medida Cautelar na Suspensão de Liminar 1.127, onde a ministra Cármen Lúcia entendeu que a atribuição de nota 0 (zero) a redações que desrespeitassem direitos humanos no Exame Nacional do Ensino Médio implicava em prévio cerceamento à liberdade de expressão por existirem "meios e modos para se questionar, administrativa ou judicialmente, eventuais excessos"1.

Para amparar este raciocínio, utilizou como razão de decidir seu voto proferido na ADin 4.815/DF, onde a discussão era relacionada à inexigibilidade de prévio consentimento de pessoa biografada relativamente a divulgação de obras biográficas literárias ou audiovisuais.

Contudo, "a invocação de um precedente pressupõe e recomenda que sejam consideradas as circunstâncias de fato em que foi construído, para que só se o aplique a causas em que a base fática seja similar"2.

Ora, um precedente concernente a assunto de interesse privado não pode ser aplicável a uma temática de interesse público, onde a missão do Estado é realizar "a síntese de todos os interesses juridicamente relevantes, considerando-se não somente os interesses de dimensão pública, mas também os interesses meramente privados"3.

É sabido que a divulgação de uma biografia de cunho particular não enseja as mesmas consequências que o desenvolvimento de uma redação no âmbito de um Exame Nacional de Ensino Médio que permite acesso à educação pública superior por meio do Programa Universidade para Todos (PROUNI)4, ao Fundo de Financiamento Estudantil5 (FIES)6, e a bolsas de estudo integrais e parciais aos estudantes de ensino superior privado com baixa renda (SISU)7.

Além disso, devemos analisar a questão sob a ótica de que a atribuição de nota 0 (zero) à redação que desrespeite os direitos humanos não se trata de censura, pois o candidato se manifestará. O que não se pode é vulnerar direitos humanos previamente estabelecidos no edital.

Portanto, haverá plena liberdade de expressão, mas passível de sanção na órbita do Direito Administrativo, nos moldes do edital e totalmente sindicável pelo Poder Judiciário acaso instado.

Importa destacar que a temática de direitos humanos impõe ao Estado como um todo o cumprimento do mandamento constitucional previsto no artigo 5°, parágrafo 2°, no sentido de que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Dessarte, diz respeito a uma obrigação promotora da isonomia, garantidora da dignidade da pessoa humana e proscritora do discurso de ódio (hate speech), assunto já abordado pelo STFno sentido de que ideias "que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu"8,configuram ilícito penal e, portanto, não estão abarcadas pela liberdade de expressão.

Trazendo a questão para a atualidade por intermédio de alguns exemplos, tais como (i) discursos em que a igualdade de gênero é contestada no sentido de inferiorizar um dos lados; (ii) a orientação sexual passa a ser tratada como opção, ignorando as evidências científicas; e (iii) a promoção de discriminação odiosa de minorias como homossexuais, transexuais e travestis é estimulada, temos que essas posturas devem ser coibidas também pela via do Direito Administrativo, cujo objeto não deve ser tratado como um conjunto de limitações aos poderes do Estado, mas sim como uma miríade de deveres da Administração em favor dos cidadãos para a sadia convivência em sociedade9.

Essas espécies de discursos de ódio não estão amparadas pela liberdade de expressão por uma questão muito simples: a igualdade precede a liberdade.

Alexis de Tocqueville em sua obra "a democracia na América" lançada em 1835 já afirmava que "a igualdade proporciona cada dia uma multidão de pequenos prazeres a cada homem. Os encantos da igualdade são sentidos a todo instante, e estão ao alcance de todos; os mais nobres corações não são insensíveis a eles, e as almas mais vulgares fazem dele sua delícia"10.

Logo, se o "poder" não é a base do Direito Administrativo, mas sim o "dever", cabível a intervenção da função administrativa ordenadora, que é subordinada não somente à lei, mas ao Direito11.

E não existe Estado de Direito sem uma ideia de direito. E de onde devemos extrair esta ideia prevalecente? Obviamente da Carta Magna, cujo artigo 3º dispõe sobre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, ou seja, o porvir, que são: (i) construir uma sociedade solidária; (ii) reduzir as desigualdades sociais e regionais; (iii) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Devemos aprender com a jurisprudência dos EUA as consequências de uma liberdade de expressão absoluta, a exemplo do que aconteceu em Charllotesville onde grupos racistas e neonazistas confrontaram-se com a população contrária a esses discursos, após a retirada de uma estátua erguida em homenagem a um general confederado (a favor da escravidão), deixando 19 feridos e um morto.

Não há como conciliar os objetivos fundamentais elencados na Constituição Federal com uma liberdade de expressão absoluta, pois ao fim e ao cabo, a argumentação de existirem "meios e modos para se questionar, administrativa ou judicialmente, eventuais excessos", é inócua, além de não ser o caminho adequado para o desenvolvimento da educação nacional, que, nos termos do artigo 205 da Constituição Federal tem por objetivo "o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

Ineficaz porque não existem informações sobre eventuais procedimentos administrativos no âmbito do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (responsável pela correção das provas) onde providências cíveis ou penais foram adotadas em face dos 4.798 participantes do ENEN de 2016 que tiveram nota zero por desrespeitarem direitos humanos.

Além disso, consideramos que a permissão para redações contendo discursos de ódio também não é o caminho adequado para estudantes em fase de formação, pois o correto é ensiná-los que quaisquer posturas discriminatórias ensejam reprovação por parte do Estado e nada mais adequado que uma nota zero na redação, do que a propositura de ação cível ou penal prima facie.

Deve haver uma gradação nas reprimendas decorrentes da manifestação do pensamento em atenção ao princípio da proporcionalidade, que tem seu fundamento nas ideias de devido processo legal substantivo e na de justiça12, prevalecendo a atuação do Direito Administrativo em detrimento da judicial neste caso.

Não obstante, entendo que o Executivo deve aperfeiçoar a redação do edital em relação à fundamentação (motivos) ensejadora de nota 0 (zero), como por exemplo, restringindo essa sanção aos discursos de ódio, elencando exemplos no edital, a fim de trazer maior clareza às regras do certame, melhor orientar o candidato, e por via de consequência maior objetividade ao critério de correção.

Por sua vez, o Judiciário deve permitir a maior influência do Direito Administrativo na implementação dos Tratados Internacionais, nunca olvidando as lições de Allan Randolph Brewer Carias no sentido de que a separação de Poderes não implica em separação de funções13.

A Função Administrativa é exercida por todos os Poderes. Afinal de contas, o Judiciário não realiza concursos públicos? Se um candidato em uma prova da magistratura redigir uma dissertação desrespeitando os Direitos Humanos e lhe for atribuída nota zero, estará ele sendo censurado? Claro que não.

Diante disso, o Executivo enquanto efetivados das politicas constitucionais deve ter plena autonomia para eleger os instrumentos que reputar mais adequados à efetiva concretização dos Direitos Humanos em prol dos indivíduos, devendo o Judiciário respeitar a harmonia entre os Poderes, nos termos do artigo 2° da Constituição Federal.

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1 Medida Cautelar na Suspensão de Liminar 1.127/DF. página 10.

2 DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação da tutela. Fredie Didier JR, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira, 10ª edição, Salvador: Editora Jus Podivm, 2015. Volume 2. página 489

3 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Tratado de Direito Administrativo: ato administrativo e procedimento administrativo/ Romeu Felipe Bacellar Filho, Ricardo Marcondes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. Volume 05. Coordenação Maria Sylvia Zanella Di Pietro. páginas 35 e 36.

4 Lei 11.096/2005: Artigo 1o Fica instituído, sob a gestão do Ministério da Educação, o Programa Universidade para Todos - PROUNI, destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e bolsas de estudo parciais de 50% (cinquenta por cento) ou de 25% (vinte e cinco por cento) para estudantes de cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos.

5 Lei 10.260, de 12 de julho de 2001, com a redação dada pela Lei 12.513/2011: Artigo 1°. É instituído, nos termos desta Lei, o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), de natureza contábil, destinado à concessão de financiamento a estudantes regularmente matriculados em cursos superiores não gratuitos e com avaliação positiva nos processos conduzidos pelo Ministério da Educação, de acordo com regulamentação própria.

6 Portaria 468, de 03 de abril de 2017, do Ministério da Educação:

Art. 3º - Os resultados do Enem deverão possibilitar:

I - a constituição de parâmetros para a autoavaliação do participante, com vistas à continuidade de sua formação e a sua inserção no mercado de trabalho;

II - a criação de referência nacional para o aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio;

III - a utilização do Exame como mecanismo único, alternativo ou complementar para acesso à educação superior, especialmente a ofertada pelas instituições federais de educação superior;

IV - o acesso a programas governamentais de financiamento ou apoio ao estudante da educação superior;

V - a sua utilização como instrumento de seleção para ingresso nos diferentes setores do mundo do trabalho; e

VI - o desenvolvimento de estudos e indicadores sobre a educação brasileira.

7 Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012.

8 HC 84.424, Plenário, Relator para o Acórdão Ministro Maurício Côrrea. DJ 19.03.2004

9 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 32ª edição, revista e atualizada até a Emenda Constitucional 84, de 2.12.2014. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. Página 44.

10 TOCQEVILLE, Alexis de. A Democracia Na América. Tradução Eduardo Brandão. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2014. páginas 115 e 116.

11 CAUPERS, João. Introdução ao Direito Administrativo. Ancora Editora: Lisboa. 2000. página 47.

12 BARROSO, Luis Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Forum, 2013. página 168.

13 BREWER-CARIAS, Allan-Randolph, Derecho Administrativo. Tomo I: Los supuestos fundamentales del Derecho Administrativo. Publicaciones de la Facultad de Derecho - Universidad Central de Venezuela, 1975. página 382.

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*Roberto Tadao Magami Junior é advogado, pós graduado em Direito Público e Mestrando em Direito Administrativo pela PUC/SP.

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