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A empresa agrária à deriva

Manoel Martins Parreira Neto

A empresa agrária, instituto central da teoria geral do Direito Agrário contemporâneo, encontra-se afastada da regência clássica do Estatuto da Terra, quando gozar de consolidada situação econômica. A decisão do STJ em 2016, foi objeto de embargos de divergência julgados sem resolução do mérito, que deixam a questão em aberto: o Estatuto da Terra, lei agrária fundamental do Brasil, sofreu evolução e enquadra, de fato, a empresa agrária de qualquer dimensão?

quinta-feira, 22 de março de 2018

Atualizado em 19 de março de 2018 14:38

Em 30 de novembro deste ano o Estatuto da Terra (lei 4.504/64) completa seus 54 anos. Sua promessa maior era, segundo Roberto Campos, equilibrar a relação entre produtividade e justiça social1, visto que o Brasil na década de 60 enfrentava diversos desafios de ordem econômico-social, em especial, o problema da garantia de suprimentos de matérias-primas para a indústria que crescia e se modernizava.

Como lei agrária fundamental, o Estatuto estabeleceu os princípios básicos dos contratos agrários típicos (arrendamento e parceria rurais), os quais seriam aprofundados, dois anos depois, pelo decreto 59.566/66, que regulamentou o Estatuto no que tange a tais contratos.

Do mesmo modo, o Estatuto positivou, em seu art. 4, VI, o conceito de empresa rural, o qual, para a doutrina dominante2, é a atual empresa agrária que explora o agronegócio. De fato, a empresa agrária foi pensada como um dos players do cenário rural brasileiro, mas superou ao longo do tempo em muito a dimensão e importância que possuía quando o Estatuto foi promulgado.

No âmbito da teoria geral do Direito Agrário contemporâneo, segundo Flávia Trentini3 e Ricardo Zeledón4, a empresa agrária foi elevada a condição de conceito central, em torno do qual orbitam os demais institutos, como a propriedade fundiária e os contratos agrários.

O Direito Agrário tem como natureza ser dinâmico, volta-se a uma atividade econômica organizada, que é a empresa agrária, afastando-se do já superado fundiarismo, que o tomava quase que como mero capítulo do Direito Civil, bem como também foi deixando para trás o critério subjetivista, que o identificava como "direito dos agricultores". O foco hoje, portanto, repousa na empresa agrária.

A regência clássica dos contratos agrários é feita pelo Estatuto e por seu Regulamento (decreto 59.566/66), que estabeleceram um modelo de grande dirigismo contratual que se reporta à preservação de interesses de caráter público com relação aos quais ao Estado não era dado se omitir.

Na esteira de tal modelo, foi previsto, sob inspiração do Statut de Fermage da França5, o direito de preferência do arrendatário em adquirir o imóvel rural que torna produtivo, direito esse estabelecido nos §§ 3º e 4º art. do Estatuto da Terra.

Diante de tal cenário jurídico, o STJ, em 2016, é instado a se manifestar sobre a regência do contrato de arrendamento rural em processo oriundo do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. A manifestação se deu por meio do REsp 1.447.082/TO, de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

No acórdão, lavrado em 10.05.20166 , a Terceiro Turma da Corte decidiu, por unanimidade, dar provimento ao recurso, seguindo integralmente o voto do Ministro relator.

O processo, nascido na comarca de Gurupi-TO, versava sobre a aplicação ou não do direito de preferência legal quando o arrendatário for empresa de grande porte, em outras palavras: o Estatuto da Terra continua a reger o contrato agrário típico celebrado por determinada empresa agrária?

A resposta do STJ, em que pese todo o histórico de regência do Estatuto, foi no sentido de este não se aplicar.

Vamos as razões e críticas. Haveria, segundo o Relator, um verdadeiro microssistema no âmbito do Estatuto que deveria ser interpretado segundo a linha hermenêutica do art. 38 do Regulamento, o qual limita os "benefícios" deste a quem explore direta e pessoalmente a terra, como típico homem do campo.

Sobre esse ponto, nos posicionamos no sentido de o direito de preferência, em casos envolvendo empresa agrária do agronegócio, não ser um mero benefício, uma proteção social-econômica, como entendeu o Relator, mas um verdadeiro direito real de aquisição que privilegia a garantia do uso produtivo da terra. Isso porque, como é próprio do meio interempresarial, a garantia de direitos se volta para a essência econômica dos institutos.

Pode-se entender o direito de preferência como proteção de natureza social quando estiverem presentes no polo da relação jurídica pessoas físicas que desempenhem a empresa agrária, de fato, pessoal e diretamente. Ademais, poderia se argumentar, ainda, que determinado indivíduo que tem condições econômicas de adquirir todo o imóvel rural que explora não necessita de uma proteção de cunho social.

Cabe ponderar, no mesmo sentido, a colação no corpo do voto do Relator de obra de sua autoria, versando sobre responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor7. Neste ensejo, o Ministro reconhece que "os microssistemas normativos, editados por leis especiais, não perdem as suas características de sistema relativamente aberto". Ora, é nessa abertura do microssistema do Estatuto da Terra em que ingressaria (como se já não o houvesse de fato) a empresa agrária, constituída por pessoa jurídica, seja seu porte grande ou pequeno.

Continua o Relator em seu voto, dissertando que os microssistemas "preservam a sua referência ao sistema geral de direito privado". Assim, não se poderia, neste ponto, perder-se de vista a realidade do agronegócio, posto que pertencente, de maneira indissolúvel, ao sistema geral de direito privado.

Aqui se retorna a questão já ventilada neste artigo: o direito de preferência, na relação interempresarial, é uma garantia do uso produtivo da terra8, um direito real que se outorga a empresa agrária, fundado em uma questão de ordem pública de natureza eminentemente econômica.

O voto do Relator, semelhantemente, estabelece que a regência do contrato agrário pelo Estatuto da Terra e seu Regulamento se vincula a dois princípios cardeais: a função social da propriedade e a justiça social. Com efeito, o acórdão reconhece que nem sempre tais princípios andem juntos.

A justiça social foi tomada como meio para se promover a desconcentração dessa propriedade fundiária, de modo a dar acesso à terra ao homem do campo e sua família.

Sobre a função social da propriedade, o acórdão foi econômico, limitando-se a dizer que tal função "é princípio do qual emanam, principalmente, deveres, não direitos, de modo que esse princípio não parece ser fonte do direito de preferência".

Entretanto, cabe pontuar que o princípio da função social da propriedade (terra) está relacionado a um poder-dever. Deve haver, antes de tudo uma ação, um exercer do direito de propriedade ou posse direta, para que este possa ou não se realizar em sua quádrupla dimensão, conforme o art. 186 da CRFB/88 e o art. 2º, § 1º, do Estatuto da Terra.

Tomada como poder-dever, a função social da propriedade ou da posse pode sim produzir direitos, dentre os quais se encontra o direito de preferência do arrendatário em adquirir a área que torna produtiva.

Sustentamos que, no debate sobre as origens do direito de preferência, em especial no contrato de arrendamento rural, ao se considerar a função social da propriedade e a justiça social como nascedouros de tal direito, utilize-se um expediente de natureza hermenêutico-constitucional. Trata-se do princípio da concordância prática/harmonização, segundo o qual, ao se aplicar determinado princípio não se esvazia o conteúdo de outro que também seria aplicável ao caso9.

Em termos práticos, em uma relação jurídica em que se aborda o direito de preferência do arrendatário, que tenha no polo ativo empresa agrária de grande porte não se aplicaria a justiça social em sua totalidade, sofrendo esta certa restrição que, contudo, não chega a zero, pois haveria uma operação de transferência de domínio, enquanto que a função social da propriedade e da posse se expressaria em sua plenitude, originando o direito de preferência.

Defendemos, é claro, que em um caso em que se envolva, de um lado, típico homem do campo (exploração direta e pessoal da terra), e, do outro, empresa agrária de grande porte, o princípio da justiça social se expressaria com forte intensidade, dando o tom social devido ao caso, prestigiando aquela parte.

Retornando ao acórdão, este entendeu pelas principais razões apresentadas, não ser aplicável o Estatuto da Terra a empresa agrária de grande porte constituída por pessoa jurídica, sendo a relação regulada pela legislação civil, que não prevê o direito de preferência ao arrendatário, que seria nesta legislação mero locador de coisa.

Ao final, o acórdão aponta para o PLS 487/13 (projeto do novo Código Comercial), em que a autonomia da vontade é elevada à extremos, devendo, no caso, as partes pactuarem o direito de preferência em seus contratos.

Diante do contexto da decisão no REsp, que foi objeto de embargos de divergência julgados sem resolução de mérito pela Ministra Maria Isabel Gallotti10 , um cenário de incerteza se descortina para o agronegócio. Fato o qual justificou a intervenção, na condição de amicus curiae, da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil. A empresa agrária e sua tutela jurídica típica pelo Estatuto da Terra e Regulamento estão à deriva.

Tudo se encaminha para um modelo jurídico que é demandado pelo mercado do agronegócio, modelo esse que está consignado no PLS 487/13, que, caso aprovado integralmente, revogará o Estatuto da Terra no que tange aos contratos agrários que envolverem empresas da cadeia do agronegócio, evento que será o marco do nascimento de um novo ramo do Direito Comercial, segundo Rogério Alessandre de Oliveira Castro11 , o Direito do Agronegócio.

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1 CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 4. ed., 2004, p. 681.

2 Para Flávia Trentini, o mesmo conceito de empresa comercial vale para a empresa rural (agrária), segundo o ordenamento jurídico brasileiro, devendo estar presente para a caracterização de uma ou outra a presença de dois requisitos apenas: economia e organização. TRENTINI, Flávia. Teoria geral do Direito Agrário contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 13.

3 TRENTINI, Flávia. Teoria geral do Direito Agrário contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 10.

4 ZELEDÓN, Ricardo Zeledón. Derecho Agrario Contemporáneo. San José: IJSA, 2015, p. 178.

5 O direito de prefêrência, ao que tudo indica, foi inspirado na avançada legislação agrária francesa de 1945 (Statut de Fermage, de 17.11.1945), cujas normas foram reproduzidas no Code Rural de 1955 (arts. 790 a 801). OPITZ, Silvia C. B.; OPITZ, Oswaldo. Curso completo de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 308.

6 No caso concreto, havia controvérsia acerca do exercício do direito de preferência por arrendatário que é empresa rural de grande porte e adotou-se uma interpretação do direito de preferência em sintonia com os princípios que estruturam o microssistema normativo do Estatuto da Terra, especialmente os princípios da função social da propriedade e da justiça social. Assim, entendeu-se pela proeminência do princípio da justiça social no microssistema normativo do Estatuto da Terra. Quanto à restrição do art. 38, considerou-se ser de plena eficácia o enunciado normativo do Decreto 59.566/66, que restringiu a aplicabilidade das normas protetivas do Estatuto da Terra exclusivamente a quem explore a terra pessoal e diretamente, como típico homem do campo. Assim, haveria inaplicabilidade das normas protetivas do Estatuto da Terra à grande empresa rural. Cabe salientar que havia previsão expressa no contrato de que o locatário/arrendatário desocuparia o imóvel no prazo de 30 dias em caso de alienação. Em sendo assim, haveria prevalência do princípio da autonomia privada, concretizada em seu consectário lógico consistente na força obrigatória dos contratos ("pacta sunt servanda"). Por fim, julgou-se provido o Recurso Especial, e, por consequência, improcedente o pedido de preferência. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL nº 1.447.082/TO. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, DF, j. 10.05.2016. DJe 13.05.2016. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2018.

7 SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

8 OPITZ, Silvia C. B.; OPITZ, Oswaldo. Curso completo de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 311.

9 Segundo Nelson Flávio Firmino, o princípio referido "estabelece que em uma eventual colisão de princípios ou bens jurídicos, o exegeta deverá sopesar os princípios conflitantes de modo a harmonizá-los, sem que a aplicação de um resulte no aniquilamento do outro". Disponível em <https://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17656>. Acesso em: 15 mar. 2018.

10 A razão de tal julgamento sem resolução de mérito nos embargos de divergência foi o fato de ter havido acordo entre as partes no processo do EREsp 1.447.082/TO, homologado judicialmente, o que ocasionou perda superveniente do objeto do recurso. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acordo nos EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP nº 1.447.082/TO. Relator: Ministra Maria Isabel Gallotti. Brasília, DF, j. 30.10.2017. DJe 08.11.2017. Disponível em: 79&num_registro=201400780431&data=20171108>. Acesso em: 15 mar. 2018.

11 CASTRO, Rogério Alessandre de Oliveira. O agronegócio e o direito comercial brasileiro: a contribuição do PLS 487/2013 para o surgimento de um novo sub-ramo desse direito, 2018, p. 7.

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*Manoel Martins Parreira Neto é advogado.

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