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O judiciário deve ouvir a voz das ruas?

Daniel Mitidieri Fernandes de Oliveira e Rafael Rihan Pinheiro Amorim

Motivar uma decisão com base em opinião pública, além de inadequado, arrogante e arbitrário, é uma forma velada de o decisor constranger seus revisores, aumentando o custo de oportunidade das Cortes superiores na aplicação do direito.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Atualizado em 10 de abril de 2018 07:43

Recentemente, personalidades do mundo jurídico emitiram opinião em veículos de comunicação no sentido de que o Poder Judiciário estaria autorizado a considerar a "voz das ruas" no processo de interpretação e aplicação do direito. É verdade que esses pronunciamentos não disseram de que forma isso deve ser feito, nem que vozes seriam essas. Apenas deixaram no ar uma sugestão preocupante: a depender do caso em análise, juízes e tribunais poderiam adjudicar bens e direitos a quem grita mais alto, não necessariamente a quem tem razão.

As declarações são parte de um fenômeno maior que irrompeu na cena pública brasileira dos últimos anos. A partir da Operação Lava-Jato, juízes e membros do Ministério Público abandonaram a discrição. Com isso, passaram a expressar na mídia opiniões pessoais, inclusive sobre processos em que atuam. O intuito? Arregimentar apoio popular às suas teses. Todavia, quando autoridades assim se comportam, tem-se um problema. O primado do direito na regulação dos conflitos sociais cede em face de outros elementos mais frágeis, como o carisma e o medo.

Não é nova a preocupação com o populismo judicial. A Bíblia traz uma passagem crucial para o background cultural do ocidente. Trata-se do julgamento de Cristo. Segundo os evangelhos, Pôncio Pilatos, governador da Judéia, somente condenou Jesus à crucificação para atender às pressões do auditório, mesmo convencido da inocência do acusado. O gesto de lavar as mãos, imortalizado no Evangelho de Mateus, significa justamente entregar um caso que deveria estar sujeito à impessoalidade da lei às paixões de ocasião, estimuladas por meios artificiais.

Dadas as delicadas questões de fundo que envolvem a relação entre Judiciário e opinião pública, é dever do jurista tratar do tema com um mínimo de rigor objetivo. Assim, a primeira questão que se coloca para os defensores da aplicação da "voz das ruas" é de ordem metodológica. O que seria exatamente "voz das ruas"? Como se tem acesso a ela? E como se controla a correta interpretação do juiz que a seguir? Seriam os tribunais brasileiros apenas cortes de cassação e formação de precedentes jurídicos, ou também órgãos de coleta de pesquisas de opinião?

Em uma sociedade complexa e pluralista, não é fácil descobrir a genuína opinião pública sobre um assunto palpitante. Isso porque o universo populacional carece de atributos seguros para promover uma adequada análise de conjuntura. Faltam informações isentas e tempo de processamento dessas informações com relativo distanciamento emocional do caso. Como assuntos políticos são recorrentes e a todos interessam, o distanciamento emocional a todos limita. Assim, nem a população, nem o pesquisador e tampouco o juiz conseguiriam exprimir o real significado da "voz das ruas" a ponto de utilizá-lo como critério decisório.

Especula-se que, no Brasil, um punhado de famílias comandem mais de setenta por cento da informação jornalística produzida. Por inúmeras razões, a começar pelo interesse lucrativo, não se pode ignorar que tais empresas de comunicação possuem agenda própria de interesses. Como resultado, a informação aqui produzida possui óbvio viés de seleção, o que obriga o leitor a mitigar certos enfoques. Dessa forma, o juiz que admite se deixar influenciar pela "voz das ruas" assume o risco de se tornar um ventríloquo dos controladores de veículos de comunicação.

Logo, a "voz das ruas" é um conhecimento vulgar. Um membro do Poder Judiciário pretender amparar sua atuação na "voz das ruas" tem o mesmo significado que um juiz fundamentar uma sentença com base na astrologia, na alquimia, ou na quiromancia. Assim, não se pode ignorar que as instituições jurídicas, até hoje, possuem vantagens comparativas superiores em relação à "voz das ruas" na regulação da vida em sociedade. Não à toa, os conflitos sociais são tratados, em regra, por profissionais especialistas em direito e não por tribunais de júri popular.

O Nobel de Economia Douglas North sustenta que as instituições são restrições comportamentais. A existência de instituições visa reduzir os custos de oportunidade, de transação e de coordenação nas trocas realizadas em sociedades complexas. As leis, claramente, são instituições fundamentais nas restrições comportamentais dos agentes, públicos ou privados. Assim, se os tribunais não estivessem limitados pela lei, não só a porta do arbítrio estaria escancarada, como também os custos de coordenação da atividade judicante seriam incalculáveis. Como controlar a correta aplicação da"voz das ruas"?

A legislação possui indeterminações. Interpretar o direito não é um fenômeno simplório. Não necessariamente a interpretação do direito redundará em verdade, ou justiça. Esses conceitos são mais metafísicos que propriamente práticos. O que a interpretação do direito precisa proporcionar é estabilidade. A estabilidade é aferível e proporciona confiança. Essa confiabilidade decorre do ponto de partida dos julgadores. Se a população não confiar que o ponto de partida é o direito, o próprio Judiciário se reduz a uma instituição não confiável. Se o guardião da ordem jurídica vira o oráculo das ruas, inevitavelmente se transforma em coveiro da lei.

Por essas razões, o Poder Judiciário jamais poderá justificar sua atuação com base na "voz das ruas". Isso não significa fechar os olhos para o ambiente social. O juiz não pode e nem deve ser uma autoridade indiferente aos efeitos práticos de sua decisão. O cotejo das provas com a lei não é feito em abstrato. Contudo, entre a aplicação das garantias processuais do acusado e a suposta opinião pública repleta de vieses, deve o juiz seguir a legislação, o acúmulo dogmático produzido sobre determinada temática e ter a humildade de reconhecer que suas decisões podem ser reformadas por instâncias superiores.

Motivar uma decisão com base em opinião pública, além de inadequado, arrogante e arbitrário, é uma forma velada de o decisor constranger seus revisores, aumentando o custo de oportunidade das Cortes superiores na aplicação do direito. Afinal, qualquer revisão do entendimento conforme as pressões populares joga a Corte revisora em desgraça. Ora, o Judiciário, que deve ser equidistante de paixões, não pode ser refém delas. Quando a "voz das ruas" é invocada pelo STF, a situação fica ainda pior. Vira uma forma de a cúpula da Justiça usurpar poder que não possui. Catalisar aspirações sociais é função da política e não da magistratura.


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*Daniel Mitidieri Fernandes de Oliveira é advogado e mestre em Direito pela UFRJ.

*Rafael Rihan Pinheiro Amorim é juiz federal no Rio de Janeiro.

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