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A prisão em 2º grau: uma breve análise técnica

Nesse momento (julgados a apelação e eventuais embargos infringentes e de declaração), as suspeitas contra o acusado tornar-se-ão absolutas. Significa dizer não que ele seja culpado para efeitos criminais, mas sim que a solidez das suspeitas atingiu seu grau máximo, ditas, daí em diante, "suspeitas absolutas", justificando, e impondo, a prisão preventiva do réu. O risco à ordem pública faz-se agora presumido e irremovível.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Atualizado em 11 de abril de 2018 10:02

As discussões acerca do momento em que se deve iniciar a execução da pena de prisão estão, atualmente, em expansiva evidência - e o Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 2016, havia assentado posição majoritária no sentido de que, esgotados os recursos em 2.º grau, o condenado à pena de prisão seria recolhido ao cárcere, vem rediscutindo o assunto, parecendo pender para uma volta à tese de que a prisão, como prisão-pena, só se poderá impor ao condenado cujos recursos e demais medidas revisionais foram todos esgotados, até a última instância recursal.

Como magistrado e como estudioso do Direito Constitucional e do Direito Processual Penal, ocorreu-me contribuir de forma sucinta, posto que técnica, para as discussões a respeito de tema tão candente.

Quer parecer-me que, na essência da técnica, a prisão em 2.º grau, como prisão-pena, não se pode sustentar. Ou por outra: a prisão como aplicação de pena (ainda mais quando se tratar de pena corporal) não poderá se dar, na essência conceitual, no momento em que se acabam os recursos em 1.º e em 2.º grau. Ela exige mais. Impõe que se acabem os recursos e demais meios revisionais em todas as instâncias judiciais, incluindo a instância suprema, o STF.

É assim que dispõe o artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição da República de 1988. Se as pessoas são consideradas materialmente inocentes até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ou seja, até o esgotamento do último recurso contra a sentença condenatória, não poderão elas, antes desse momento, ser punidas pelo Estado, sob pena de fazer punir um inocente, o que repugna ao estado de direito e a todo o sistema de direito penal moderno.

Não há como executar a pena de prisão antes de esgotados todos os recursos contra a condenação que a impôs. Ou, em outras palavras, não há como aplicar a prisão-pena antes do trânsito em julgado da decisão condenatória que a cominou, isto é, antes de esgotada a última medida, na última instância, contra a condenação punitiva.

O sistema infraconstitucional também se pauta por semelhante ideia, tanto que avulta de importância o artigo 283 do Código de Processo Penal, disposição que, ao tratar das prisões em processo penal, conforma-as exclusivamente em quatro espécies: prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão temporária e prisão-pena, esta última "em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado".

Tem relevo também o Código Penal, que, no artigo 50, ao cuidar da aplicação da pena de multa (bem menos gravosa, comparativamente à pena corporal), expressamente estabelece que "deve ser paga dentro de 10 (dez) dias depois de transitada em julgado a sentença".

Destaque, ainda, merece o artigo 594 do Código de Processo Penal Militar, com a previsão de que a carta de guia (atual guia de execução) lavrada para o cumprimento da pena de prisão será expedida "transitando em julgado a sentença que impuser pena privativa de liberdade".

Em rigor, todo o sistema constitucional e infraconstitucional foi montado para que o indivíduo possa ser punido apenas depois de esgotados todos os recursos judiciais, porque só então se terá a convicção de que ele é culpado. Só nesse momento se desfará a presunção de inocência. E tão somente nesse ponto é que se poderá considerar o acusado alguém não inocente, vale dizer, alguém culpado.

Dessa forma, a prisão em 2.º grau, ou seja, a aplicação da pena de prisão depois de julgados os recursos de 1.º e de 2.º grau, independentemente de recursos para juízos de instâncias superiores, não se sustenta no direito brasileiro - nem mesmo ao argumento da execução provisória da sanção penal. Aplicar provisoriamente a prisão-pena significa punir provisoriamente, ou, em outros termos, significa punir alguém que materialmente, para todos os efeitos, é inocente.

Esse parece ser o ponto central. O ideal seria que o constituinte de 1988 não tivesse elaborado o princípio da presunção de inocência tal como, ao fim e ao cabo, resultou redigido no inciso LVII do artigo 5.º da Carta Política - princípio pelo qual a aplicação da pena deverá aguardar a última análise da última medida revisional manejada em última instância judicial. Críticas à parte, o fato é que, em cláusula pétrea (não suprimível), a Constituição traduziu a não culpabilidade como o imperativo de punição depois do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. É o que nos elucida a precisão da técnica.

De outro lado, é, sim, possível, mantendo a higidez da técnica jurídica, sustentar a imposição de prisão em 2.º grau, vale dizer, depois de esgotados os recursos em 2.º grau. Não, porém, na forma de execução provisória da pena privativa de liberdade (como se tem defendido), e sim na forma de prisão processual.

A Constituição respalda a prisão provisória (de que são espécies a prisão em flagrante, a prisão temporária e a prisão preventiva). Trata-se de prisão processual, de âmago acautelatório.

É nesse sentido que o artigo 5.º, inciso LXVI, da Constituição da República assegura que ninguém será preso "quando a lei admitir a liberdade provisória". Contrario sensu, previu a Carta que os acusados poderão aguardar presos o julgamento definitivo da ação a que respondem, desde que legalmente prevista, na hipótese, a prisão provisória (prisão processual).

A chamada "prisão preventiva" é espécie de prisão provisória, guarda imanente natureza processual, e vem prevista em lei (com fundamento na Constituição) para acautelar o processo penal, garantido sua finalidade instrumental. Visa, desse modo, conforme previsto no artigo 312 do Código de Processo Penal, a garantir a final aplicação da lei penal (cabível, assim, quando o denunciado tenta, por exemplo, fugir do País); visa também a garantir a colheita de provas (viável, assim, quando o acusado busca, por exemplo, influir previamente no depoimento de testemunhas); e, por fim, visa a garantir a ordem pública e/ou a ordem econômica (aplicável, assim, para evitar que o suspeito siga em práticas criminosas). Em todos esses casos, a prisão será cautelar, colimando garantir a efetividade do provimento final distribuído pelo processo penal.

Pondere-se, nesta altura, que não apenas a colheita de provas e a aplicação de pena são os objetivos dos atos processuais. O mais abrangente dos fins do processo penal não é outro senão a pacificação social mediante a garantia das ordens pública e econômica. E, por vezes, a preservação da ordem pública, ou da ordem econômica, só pode ser alcançada por meio da segregação do suspeito. Este, mesmo sendo presumido inocente (e não podendo ainda ser punido), será recolhido à prisão - não como imposição provisória de pena, já que, materialmente, é considerado inocente, mas como medida cautelar, de natureza processual, tal como previsto no Código de Processo Penal, artigos 311 a 313, e no próprio artigo 5.º, inciso LXVI, da Constituição da República.

A primeira conclusão é a de que a prisão cautelar (cujo principal exemplo é a prisão preventiva), não afronta de modo algum, nem mesmo tangencialmente, o sistema de garantias legais e constitucionais.

Casos há em que, logo no início da fase de inquérito, antes ainda de oferecida a denúncia pelo Ministério Público, as suspeitas que pesam contra o indiciado são de tal grau que, para garantir a ordem pública (e, portanto, o provimento final abrangente do processo penal), impor-se-á de imediato a ele a prisão preventiva. O indiciado aguardará o julgamento em 1.º grau - e, depois, o julgamento de todos os recursos nas instâncias superiores - preso, pois, se solto, porá em risco a ordem pública.

Como são fundadas as suspeitas que pesam contra o indiciado, ele, ficando em liberdade, e não tendo ainda recebido pena alguma, exporá a risco a ordem pública, podendo, com acentuado grau de probabilidade, praticar atos equivalentes, análogos ou conexos àqueles cujas suspeitas recaem contra ele. A efetividade processual demanda sua prisão cautelar.

Em outras vezes, o suspeito aguarda solto o término das investigações. Mas, denunciado pelo Ministério Público, é preso preventivamente por ocasião do recebimento da denúncia pelo juiz de 1.º grau, sendo custodiado com base na necessidade de garantia da ordem pública ou econômica. É que o recebimento da denúncia pode solidificar as suspeitas contra o indiciado, fazendo que se ponha em risco a ordem pública caso ele fique solto.

Se, com a denúncia, as suspeitas se solidificaram maciçamente, a garantia da ordem pública ou econômica justificará a prisão provisória (processual), porquanto, se ficar em liberdade, o acusado representará risco à ordem pública, ainda que, para os efeitos de direito penal (como a aplicação de pena ou a perda de função pública), seja considerado inocente.

São comuns os casos em que o denunciado responde ao processo em liberdade. Por vezes, as suspeitas não se confirmam, e o réu é, ao final, absolvido. Em outras vezes, porém, assiste-se, ao longo da marcha processual em 1.º grau, à consolidação das suspeitas que pesam contra o acusado, até que, depois da instrução, é proferida a sentença condenatória e decretada a prisão preventiva para garantir a ordem pública.

A prisão, depois da sentença condenatória de 1.º grau, é também acautelatória, baseando-se na solidez e na robustez das suspeitas contra o acusado, as quais, com o término da instrução e com a prolação da sentença, atingiram tal grau que impuseram a prisão preventiva do sentenciado - a fim de garantir a ordem pública, evitando que, solto, e ainda não punido, apoie-se numa ilusão de impunidade para praticar condutas equivalentes ou correlatas àquelas de que é acusado. Para efeitos materiais, é inocente. Processualmente, porém, vislumbra-se risco à ordem pública, justificando-se a prisão cautelar.

O curso dos atos processuais vai, passo a passo, sedimentando as suspeitas contra o acusado. As suspeitas podem ser frágeis na fase de inquérito; razoáveis na fase de recebimento da denúncia; fortes na fase de instrução; e maciças e fundadas na fase de sentença condenatória, pelo que se imporá a prisão preventiva por ocasião da sentença de 1.º grau.

Não é infrequente, entretanto, que, mesmo com a sentença condenatória de 1.º grau, e com a consequente sedimentação das suspeitas contra o acusado, entenda-se que poderá ele seguir em liberdade. As suspeitas, com efeito, tornaram-se fundadas a partir do desfecho do processo em 1.º grau (até porque, se assim não fosse, a sentença teria de ser absolutória). O risco à ordem pública se torna, com efeito, presumido. Ou seja, presume-se que a ordem pública (ou econômica) estará ameaçada em caso de o acusado ser mantido solto.

Ainda assim, verificando que o sentenciado passou toda a instrução processual solto, sem notícias de novas imputações criminais (e ainda colaborou na produção de provas e cumpriu adequadamente medidas cautelares diversas da prisão), o magistrado de 1.º grau poderá vislumbrar a possibilidade de o acusado aguardar em liberdade o julgamento do recurso, entendendo que, embora as suspeitas se tenham sedimentado e se ponham agora fundadas, não se justifica a prisão processual. É que a presunção do risco à ordem pública por ocasião da sentença condenatória de 1.º grau é relativa - e há fatores, como os exemplificativamente expostos acima, capazes de invertê-la, permitindo que o sentenciado siga em liberdade.

No julgamento do recurso de apelação, o órgão colegiado de 2.º grau poderá, então, confirmar a sentença condenatória do juiz de 1º grau. Nesse momento (julgados a apelação e eventuais embargos infringentes e de declaração), as suspeitas contra o acusado tornar-se-ão absolutas. Significa dizer não que ele seja culpado para efeitos criminais, mas sim que a solidez das suspeitas atingiu seu grau máximo, ditas, daí em diante, "suspeitas absolutas", justificando, e impondo, a prisão preventiva do réu. O risco à ordem pública faz-se agora presumido e irremovível. Trata-se de presunção absoluta. E a prisão preventiva será decorrência automática.

As suspeitas absolutas - esclareça-se - são mais que as fundadas suspeitas de que se cuida em 1.º grau. Elas traduzem a certeza quanto à matéria de fato.

Com o término do processo em 2.º grau, não cabendo mais recursos nem embargos, a matéria relativa aos fatos transita em julgado. Vale dizer, os fatos não poderão ser objeto de reapreciação pelos tribunais superiores, pois os recursos a essas cortes devolvem a elas apenas a matéria de direito. A ocorrência do fato torna-se certa, bem como sua autoria. O que se discutirá nas cortes superiores (no STJ e no STF, por exemplo) serão aspectos de direito, como a interpretação e a integração da norma penal.

Dado o julgamento definitivo em 2º grau, diz-se, então, que as suspeitas se fazem absolutas, traduzindo-se na certeza quanto aos fatos e na probabilidade quanto ao direito (as questões jurídicas, embora ainda possam ser revistas, já se puseram decididas contra o acusado por ao menos quatro juízes).

A segunda - e final - conclusão é, assim, a de que, com o esgotamento das medidas revisionais em 2.º grau (o que inclui os embargos de declaração, mas não os heterodoxos embargos de declaração dos embargos de declaração), o acusado, condenado à pena de prisão, deverá ser imediatamente recolhido ao cárcere. Aguardará preso o julgamento de todos os demais recursos. Não como antecipação da pena a que foi condenado. Não como execução provisória da sanção penal a ele cominada na sentença e confirmada no acórdão de 2.º grau. E sim como instrumento de garantia da efetividade final do processo penal. Como medida acautelatória tendente a assegurar a estabilidade da ordem pública e/ou da ordem econômica.

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*André Forato Anhê é juiz eleitoral no Estado de São Paulo.

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