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Filiação no ordenamento jurídico brasileiro

O trabalho traça consideração acerca da filiação biológica, jurídica na ação investigatória de paternidade. A Constituição Federal de 1988 provocou uma importante alteração no Direito de Família através do princípio da igualdade da filiação.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Atualizado às 09:33

Neste alvorecer de milênio, o Direito de família passa por intrínsecas transformações, espelhando a mudança de valores que regem a sociedade e a própria família. Assim, várias situações novas surgem, as quais o Ordenamento Jurídico deve disciplinar.

Uma das questões centrais dessa nova fase do direito de família é o problema do reconhecimento da paternidade e seus efeitos. Tal tema tem sido tratado com exaustão pelos grandes doutrinadores do País, em face da mudança ocasionada pela Carta Magna de 1988, que igualou em direitos os filhos havidos, ou não, fora do casamento.


Entretanto, se o tema focado não é tão novo, ele toma, atualmente, novos contornos, em consequência dos avanços da ciência no que se refere à comprovação da paternidade, bem como do princípio do melhor interesse da criança que vem sendo implementado pela doutrina e pela jurisprudência.

O presente estudo versa sobre a influência do exame de DNA nas ações de investigação de paternidade as quais eram instruídas a partir de exames de sangue muito mais simples, que não possuíam o índice de certeza oferecido pelo exame de DNA. Tal método científico mostra-se capaz de identificar algumas informações genéticas herdadas pelo indivíduo que, na verdade, são combinações de genes do pai e da mãe.

Após o seu advento, a análise do DNA tornou-se o meio de prova mais utilizado nas ações de investigação de paternidade, transformando muitos conceitos do ordenamento jurídico; principalmente, aqueles inerentes ao reconhecimento do estado de filho.

Essa inovação, no entanto, não é aceita de forma unânime entre os pensadores de Direito, gerando dois posicionamentos principais, abordados neste trabalho: a prova pericial como meio absoluto de determinação da paternidade e a falibilidade do exame de DNA.

Os principais pontos referentes à possibilidade, ou não, de se afirmar que a prova genética, e apenas ela, é capaz de decidir de forma absoluta o vínculo familiar liga-se ao fator mais importante deste trabalho, cujo principal objetivo é demonstrar as transformações geradas pelo ingresso do teste de DNA nas ações de investigação de paternidade.

Para tanto, a presente monografia foi elaborada a partir da leitura de livros e artigos referentes ao exame de DNA e sua influência nas ações de investigação de paternidade, a fim de reunir e explicar as correntes que interpretam a perícia genética.

Seguindo esse mesmo processo, foram abordadas, ainda, questões relacionadas aos pressupostos fundamentais para ingressar com a investigatória de filiação, sobretudo no tocante às modificações trazidas pelo Novo Código Civil.

O presente estudo versa não apenas sobre a prova genética, mas também sobre outros meios de provas utilizados nas ações de investigação de paternidade. Inclusive, institutos como a confissão, presunção e indícios.

Na tentativa de verificar as posições doutrinárias e jurisprudenciais, a respeito do tema, tratou-se de aspectos como a coisa julgada, depois da aplicação dos testes de DNA, a recusa à submissão da perícia por parte do investigado, finalmente, a margem de erro da referida perícia.

O primeiro capítulo fornece, em linhas gerais, noções sobre a filiação, face à Constituição de 1988, e sobre o reconhecimento de paternidade.

No segundo capítulo, são abordadas questões gerais relativas à prova e os principais meios probatórios disponíveis na Ação de Investigação de Paternidade.

O terceiro capítulo dedica-se exclusivamente ao exame de DNA, estudando seus métodos e procedimentos, bem como a prova pericial a juízo. Analisa-se também a limitação ao emprego do DNA em juízo, decorrente de eventual recusa do réu em submeter-se à perícia. Observa-se a atuação do juiz frente aos resultados conferidos pelo exame de DNA.

Destina-se, o quarto capítulo à discussão dos aspectos constitucionais referentes ao exame de DNA.

1 Breve histórico do reconhecimento da paternidade

O Direito de Família Pátrio e, por consequência, a acepção jurídica de entidade familiar passou, no período compreendido entre 1916 e 1988, por um decisivo processo de transformação. Neste interregno, visualizam-se duas relevantes abordagens: a primeira, compreendida pelo Código Civil brasileiro de 1916, era de cunho patriarcal, contemplando a "família-instituição", diretamente ligada ao casamento, conforme depreende-se da seguinte definição: "Direito de Família é o conjunto de regras aplicáveis às relações entre pessoas ligadas pelo casamento ou pelo parentesco." (GOMES, 1978, p. 13).

Vale lembrar que a família sofreu, nas últimas décadas, profundas mudanças de função, natureza, composição e, consequentemente, de concepção, sobretudo após o advento do Estado Social.

O Estado Legislador passou a se interessar de forma clara pelas relações de família, em suas variáveis manifestações sociais. Daí a progressiva tutela constitucional, ampliando o âmbito dos interesses protegidos, definindo modelos nem sempre acompanhados pela rápida evolução social, a qual engendra novos valores e tendências que se concretizam a despeito da lei.

Esse tipo patriarcal, ao longo dos anos, sofreu modificações devido às desigualdades dentro das famílias, em consequência do surgimento da liberdade de escolha.

A família atual parte de princípios básicos, de conteúdo mutante, segundo as vicissitudes históricas, culturais e políticas: a liberdade, a solidariedade, o respeito ao outro. Sem eles, é impossível compreendê-la.

A família tradicional era centrada no matrimônio, voltada para suas crenças e divisão de seus papéis. O homem exercia poder sobre a mulher e os filhos; assim a paternidade era exercício de poder.

A família patriarcal, que nossa legislação civil brasileira tomou como modelo, ao longo do século XX, entrou em crise, culminando com sua derrocada, no plano jurídico, pelos valores introduzidos na Constituição de 1988.

A instituição atual passou a ter a proteção do Estado, constituindo essa proteção um direito subjetivo público, oponível ao próprio Estado e à sociedade. A proteção do Estado à família é, hoje, princípio universalmente aceito e adotado, nas constituições da maioria dos países, independentemente do sistema político ou ideológico. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, assegura às pessoas humanas o "direito de fundar uma família", estabelecendo no art. 16. 3: "A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e do Estado".

O casamento apresentava-se como fonte única de sua constituição. Inclusive, trazia o reconhecimento pela religião e concedia o direito à prática do ato sexual, pretendendo que os cônjuges não buscassem a satisfação de seus instintos fora do casamento. Revela-se, assim, no modelo codificado, a regra da indissolubilidade do vínculo matrimonial.

Desta forma, a garantia da estrutura familiar apresentada se dava pela observação tanto da necessidade de matrimonialização, como no modelo de legitimidade dos filhos. Tal preceito pautava-se na proibição do reconhecimento dos filhos extramatrimoniais e na atuação da presunção pater is est.

Dessa forma, verifica-se a grande preocupação da lei no que dizia respeito à proteção da entidade familiar, através do aspecto da legitimidade da união e dos filhos dela havidos. Ainda, outro fator relevante na análise das normas da época, consiste o patrimonial, justificativo da função primordial de transmissão do nome paterno: "A família, como rede de pessoas e conjunto de bens, é um nome, um sangue, um patrimônio material e simbólico, herdado e transmitido". Nesse contexto, a família evidencia um fluxo de propriedades que depende primeiramente da lei.

Vale ressaltar que uniões sem casamento foram gradativamente aceitas pela sociedade, ao passo que novas famílias estruturaram-se independentemente das núpcias, conduzidas por um único membro, o pai ou a mãe. Diante disso e das demais transformações sociais, o modelo legal codificado tornou-se insuficiente, cada vez mais distante da pluralidade social existente. Na verdade, os fatos concretos opuseram-se ao Direito, exigindo maior proteção.

A regulamentação legal da família voltava-se, anteriormente, para a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo, enaltecida como instituição essencial. Hoje, ao revés, não se pode ter dúvida quanto à funcionalização da família para o desenvolvimento da personalidade de seus membros, devendo a comunidade familiar ser preservada, como instrumento de tutela da dignidade da pessoa humana.

Por sua vez, o modelo contemporâneo tem destacado o seu aspecto pessoal e igualitário, valorizando os interesses individuais dos seus membros e buscando a felicidade como mola propulsora de sua continuidade. Na verdade, a família e o casamento visam ao desenvolvimento da pessoa.

Nessa conjuntura, então, surgiram normas asseguradoras de ampla igualdade entre todos os filhos, nascidos antes ou depois, dentro ou fora do casamento. Tal visão propiciou respaldo constitucional para aqueles que desejassem ser reconhecidos como filhos, carregar o nome e apelido de família do genitor e exercer todos os direitos e deveres atribuídos aos descendentes. Como disse o Professor Caio Mário da Silva Pereira: "filhos fora do casamento sempre existiram e sempre existirão" (PEREIRA, 1998, p. 52-53).

Cabe ressaltar que não apenas a redução na extensão da família, mas ainda a mudança dos papéis, além do descompasso entre o modelo legislado e da pluralidade social existentes resultaram na proteção jurídica à figura da família nuclear, centrada na tríade pai-mãe-filho, bem como a formada por um só dos pais e seu filho. Oportunamente, a Constituição Federal recepcionou-as e reconheceu-as, em seu art. 226. O objeto da proteção estatal é a pessoa humana e o desenvolvimento de sua personalidade.

O primeiro destaque é o art. 226, caput, da Constituição segundo o qual "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado"; assim, compromete-se pela sua integridade. Adota, ao longo de seus parágrafos, a concepção eudemonista, equiparando-a e reconhecendo efeitos jurídicos à união estável entre homem e mulher (§ 3º) e ao grupo monoparental, em que vive apenas um dos genitores e descendentes, filhos ou netos (§ 4º). Assim, evidencia-se uma Constituição de cunho marcadamente compromissário, mas que erigiu a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento de nosso Estado democrático de Direito.

Nesse ideal de família-modelo do Estado Social Democrático de Direito, a filiação também resta protegida com a chegada da Constituição de 1988, que estabeleceu igualdade de tratamento entre os filhos provenientes de matrimônio ou não. Traçado o perfil da família codificada importa, então, conhecer o papel nela desempenhado pela filiação, dada sua importância na sustentação do modelo patriarcal.

Filiação


Do latim, filiatio traduz-se pela relação de parentesco que se constitui entre pais e filhos em linha reta, gerando o estado de filho. Ou seja, filiação é o vinculo de parentesco que une os filhos aos pais. Esta não decorre unicamente da consanguinidade; há também outros institutos como adoção.

Todo ser humano, ao ser gerado, precisa de um pai e de uma mãe; todos os filhos procriados são plenos para exercerem seus direitos e deveres, em um grupo social como a família que, por sua vez, é célula da sociedade. Esta representa a continuação da espécie, daí que a filiação constitua objeto de apreciação de diversas áreas do saber, entre elas, a genética, que procura descobrir os traços comuns transmitidos de pai para filho.

O direito ao reconhecimento da origem genética é personalíssimo da criança, não sendo passível de obstacularização, renúncia ou disponibilidade por parte da mãe ou do pai, inexistindo, portanto, a possibilidade de se ter presumido o vínculo paternal.

O artigo 27 da lei 8. 069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA) estabelece o seguinte: "O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça".

Na definição da Professora Maria Helena Diniz, "filiação é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a relação de parentesco consanguíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram a vida" (DINIZ, 2002, p. 372). Já o Jurisconsulto Pontes de Miranda sustenta que:

filiação é a relação que o fato da procriação estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascidas da outra. Chama-se paternidade, ou maternidade, quando considerada com respeito ao pai, ou à mãe, e filiação, quando do filho para qualquer dos genitores (MIRANDA, P., 2000, p. 45).

Após o advento da Magna Carta, em 1988, não há mais que se falar em filhos legítimos, ilegítimos, naturais, adulterinos e incestuosos. Aliás, essas duas últimas designações deixaram de existir em nosso direito, pois com o advento da CF/88, reconhecida a paternidade, vigora o princípio da isonomia entre os filhos, não podendo haver discriminação sob qualquer aspecto.

Dispõe o parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição Federal de 1988 que, in verbis: "Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação".

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*Verônica Bettin Scaglioni é advogada atuante nas áreas cível e trabalhista.

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