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Candidatos a corrupto

O envolvimento do servidor em determinados círculos sociais, o comportamento indiscreto, a manifestação exacerbada de opiniões pessoais e a presença frequente em ambientes luxuosos incompatíveis com a remuneração do cargo, abalam inevitavelmente a sua credibilidade perante a sociedade.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Atualizado às 14:36

Quase todo servidor público corrupto um dia foi um concurseiro dedicado e sonhador. Como, por que e quando ocorre essa transformação de caráter? Em meio à aflição gerada pelo clima de geral desconfiança que assola o Brasil, comecei a pensar no assunto. Rememorei minha própria experiência como estudante e servidor público concursado, até perceber que o germe da corrupção no serviço público pode estar presente antes mesmo da tão desejada aprovação, já nas motivações que animam os milhões de candidatos que se submetem a rigorosos e exaustivos regimes de estudo. As palestras motivacionais gratuitas ofertadas aos montes pelos infinitos cursinhos preparatórios para atrair essa clientela costumam girar em torno da venda de algumas promessas recorrentes: dinheiro, status social, estabilidade e possibilidade de trabalhar por nobres ideais. Proponho, assim, uma reflexão sobre como tais motivos podem, com o tempo, degenerar em atos de corrupção.

Na sua maioria e por razões óbvias, os candidatos buscam prioritariamente melhorar sua situação financeira. Finalidade justa e compreensível, claro. Circulam várias histórias no universo dos concursos sobre estudantes que usam "técnicas" motivacionais bastante peculiares nas quais a ambição econômica funciona como combustível. Dentre outros métodos muito curiosos, ouvi dizer de um concurseiro que, no melhor estilo cenoura de burro, havia colado um gordo contracheque no espelho do banheiro, que depois ficava a contemplar nas horas vagas, para não desanimar da luta.

A experiência mostra, contudo, que se é certo que aqueles que adentram o serviço público fecham atrás de si as portas da pobreza, também é verdade que não demorarão a descobrir que à sua frente não restaram muitas esperanças de riqueza abundante. Ainda que o servidor alcance a remuneração máxima do setor público, gozando de uma situação econômica confortável, dificilmente deixará de ser um cidadão de classe média. Daí fica fácil imaginar como a ambição econômica, quando colocada como meta principal na vida profissional de um servidor público, pode levá-lo a praticar atos de peculato, concussão ou corrupção passiva.

Recordo também de ouvir falar nessas palestras de autoajuda para concurseiros sobre o status e o reconhecimento social deferidos à classe dos servidores públicos, principalmente aos ocupantes dos cargos de maior responsabilidade. Aos que se fiam nessa quimera, aviso logo que poderão se decepcionar. As normas éticas sobre integridade e decoro pessoal no exercício do cargo ou fora dele existem por um motivo, o que, dito de outro modo, significa que a ressaca da festa pode gerar fortes dores de cabeça.

O envolvimento do servidor em determinados círculos sociais, o comportamento indiscreto, a manifestação exacerbada de opiniões pessoais e a presença frequente em ambientes luxuosos incompatíveis com a remuneração do cargo, abalam inevitavelmente a sua credibilidade perante a sociedade. Isso na melhor das hipóteses. Na pior, adentra-se o campo minado do tráfico de influências, da violação de sigilo funcional, da advocacia administrativa, da falta de impessoalidade, dentre outras peripécias.

Há ainda aqueles modestos e bondosos concurseiros que só querem a segurança garantida por um cargo público estável. Formar uma família, educar os filhos, viver em paz... Ser feliz! O sentimentalismo recomendaria não criticar essas tão nobres intenções. Afinal, que espécie de espírito de porco poderia dizer algo contra alguém que nada mais deseja senão comprar uma casa para sua mãezinha idosa?

O problema é que enquanto uns querem demais, outros querem de menos. Se uma vida de luxos e colunas sociais são objetivos quase inatingíveis para um servidor público honesto, os objetivos aos quais ora me refiro, de tão módicos, são alcançados quase instantaneamente após a posse, de sorte que, se não restar nenhuma outra meta profissional futura para esses candidatos, correm sério risco de se aposentarem como aspones e parasitas da máquina estatal. Não tenho nenhum crime para acusar essa turma, embora sem dúvida ela possa flertar com a improbidade administrativa. Seus delitos morais são a mediocridade, a preguiça e a acomodação, que, embora não sejam graves a ponto de recomendar cadeia, nem por isso deixam de ser altamente perniciosos para o erário, a eficiência e a imagem do Estado.

Finalmente, há os perigosíssimos jovens (e velhos) idealistas, que embora não roubem, não bebam e mintam pouco, fogem da lei de abuso de autoridade como o diabo da cruz. Sobre eles recaem, outrossim, fortes suspeitas de prevaricação, forma de corrupção muito comum no Brasil, mas extremamente difícil de provar, porque o capital psicológico ilícito é sempre branqueado por discursos demagógicos politicamente corretos. Os indícios, todavia, são tão reluzentes que convenceriam qualquer um se fossem apresentados em power point.

Por exemplo, se um juiz consigna em sua sentença judicial que está decidindo num ou noutro sentido porque quer construir um país melhor para seus filhos, cuidado! É hora de acender a luz vermelha, pois todas as atrocidades de proporções humanitárias na história, sem exceção, foram cometidas por homens que sentiram em seu coração uma voz divina a convocá-los para a missão de salvar o mundo. Então, se é isso o que você deseja, jovem concurseiro, aqui está meu conselho: funde uma nova igreja, que o serviço público não é lugar para exibicionismo moral ou para realização de projetos pessoais, por mais puros e brilhantes que sejam. Isso porque, como disse o ministro Marco Aurélio num julgamento recente no Supremo Tribunal Federal: "De bem-intencionados, o Brasil está cheio".

Ao invés de bancar o virtuoso herói da pátria, um servidor público vocacionado não deveria desejar nem mais nem menos do que cumprir seus deveres legais com competência. Essa palavra, no dicionário, tem dois significados cuja relação íntima poucas pessoas notam prima facie. Por um lado, ter competência é ter atribuição para fazer alguma coisa, donde se infere que incompetente é alguém que não conhece seu lugar e faz o que não é da sua conta. Por outro, competência é habilidade e talento; nesse sentido, ser competente é fazer um trabalho bem feito - como o motorista que conduz e zela pelo veículo público da melhor maneira possível; o juiz que decide os casos jurídicos de modo tecnicamente impecável; o advogado público que defende suas causas com os melhores argumentos disponíveis, e assim por diante.

Quem deseja melhorar o mundo não é confiável, pois em tal desejo se hospeda um germe autoritário. O perfeccionista antes de tudo pressupõe a própria imperfeição para daí buscar a superação diária de seus limites. Só pode ser esta a sublime e discreta ousadia que deveria inflamar a alma de todo concurseiro: o sonho de desempenhar com perfeição o serviço que lhe couber, ou morrer tentando. O que de bom vier a reboque é consequência do mérito de reunir em si os dois sentidos da palavra competência, cuja relação oculta fica agora esclarecida: a humildade é o único caminho para a perfeição.

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*João Carlos Bemerguy Camerini é defensor público do Estado do AM e mestre em Direito Ambiental na UEA.

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