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Comentário a precedente do TJ/DFT sobre gestão de negócios: caso da internação de familiar em hospital

Nosso objetivo aqui é tratar de uma situação peculiar analisada pelo TJ/DFT: se alguém assina o contrato de internação hospitalar para propiciar um tratamento médico a um parente que está desmaiado, o hospital poderá cobrar a dívida de quem: de quem assinou ou do parente que foi internado?

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Atualizado em 23 de setembro de 2019 18:40

Poucas pessoas estudam o ato jurídico unilateral chamado "gestão de negócios", disciplinado a partir do art. 861 do CC. Costumo dizer que se trata do ato do intrometido ou do enxerido, pois a gestão de negócios ocorre quando alguém (o gestor) administra interesse de outrem (o dono do negócio) sem prévia autorização deste. O gestor age como representante do dono do negócio sem consentimento prévio deste. É um representante sem mandato. É um "enxerido". É o caso, por exemplo, de uma pessoa que, vendo a casa do vizinho em chamas, toma a liberdade de fazer contratos para repará-la minimamente (ex.: trocar a porta que foi incendiada) até que o vizinho retorne de uma viagem.

Nosso objetivo aqui é tratar de uma situação peculiar analisada pelo TJ/DFT: se alguém assina o contrato de internação hospitalar para propiciar um tratamento médico a um parente que está desmaiado, o hospital poderá cobrar a dívida de quem: de quem assinou ou do parente que foi internado? O TJ/DFT analisou essa hipótese sob a ótica da gestão de negócios e entendeu que quem assinou deverá responder pela dívida, ainda que ele pudesse ser considerado um gestor de negócio.

As regras de gestão de negócio são para disciplinar relação jurídica entre o gestor e o dono, e relações entre o dono do negócio e os terceiros com quem o gestor, em nome do dono, celebrou contratos (art. 869, CC). Não estão abrangidos aí casos em que o gestor fez contratos em seu próprio nome, pois, nesse caso, o outro contratante só terá direitos contra o gestor, e não contra o dono do negócio. Aplicam-se aí as regras próprias de contratos, dentro das quais as partes poderiam valer-se de figuras como a do contrato com pessoa a declarar (cláusula pro amico eligendo), em que o contratante só consegue se exonerar da obrigação se vier a conseguir o consentimento do terceiro indicado como sucessor contratual (arts. 467 e 470, CC).

Assim, se alguém (gestor) interna outrem (dono do negócio) em um hospital particular (terceiro), o gestor terá de pagar as despesas hospitalares se houver celebrado o contrato em seu próprio nome, ou seja, se ele tiver sido parte. Se, todavia, o contrato houver sido firmado em nome do dono do negócio com a assinatura do gestor apenas como representante (a gestão de negócio é representação sem mandato), o terceiro só poderá cobrar a dívida do dono do negócio se se tratar de gestão útil, necessária ou proveitosa, para as quais o CC estabelece textualmente o dever obrigacional do dono do negócio pelas obrigações assumidas, em nome dele (do dono), pelo gestor (arts. 869 e 870, CC).

Essa deve ser a leitura do seguinte precedente do TJ/DFT, que admitiu que o hospital particular cobrasse de quem assinara o contrato em seu próprio nome as despesas hospitalares havidas com um familiar dele. Se o contrato tivesse sido firmado em nome desse paciente com assinatura de quem expressamente se declarou gestor de negócio (representante do paciente sem procuração), o resultado seria diferente: o gestor não seria obrigado por essa dívida, mas apenas o paciente na hipótese em que a gestão tenha sido útil, proveitosa ou necessária. Veja a ementa do julgado:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS HOSPITALARES. RESPONSABILIDADE DO FAMILIAR QUE FIRMA O CONTRATO. GESTÃO DE NEGÓCIOS. NÃO CARACTERIZAÇÃO. FATO IMPEDITIVO, MODIFICATIVO OU EXTINTIVO DO DIREITO DO AUTOR. AUSÊNCIA. RESPONSABILIDADE CONFIGURADA. SENTENÇA REFORMADA.

1. A gestão de negócios é ato unilateral de vontade e caracteriza-se pela espontaneidade da intervenção do gestor no negócio alheio, que não deve resultar de qualquer prévio ajuste ou ordem, atuando o gestor no interesse e segundo a vontade presumida do dono do negócio, sem interesse pessoal. Nessa perspectiva, não configura hipótese de gestão de negócios, quando a pessoa, visando o pronto atendimento, conduz o ente familiar a hospital privado e, voluntariamente, firma contrato de prestação de serviços hospitalares como obrigada pelo pagamento das respectivas despesas.

2. É legítima a cobrança de despesas médicas e hospitalares realizadas por estabelecimento de saúde com supedâneo em contrato particular de prestação de serviços hospitalares firmado livre e conscientemente, acompanhado das notas discriminativas das despesas relativas à incontroversa prestação dos serviços.

3. Ausente causa que afaste a higidez do contrato particular de prestação de serviços hospitalares, livremente celebrado entre as partes, o ajuste deve ser cumprido, em obediência aos princípios da boa fé objetiva e do pacta sunt servanda,com o fito de compelir a contratante a arcar com as despesas hospitalares decorrentes da efetiva prestação dos serviços.

4. Apelação conhecida e provida.

(TJ/DFT, Acórdão n.1004023, 20130310174820APC, Relator: SIMONE LUCINDO 1ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 15/03/2017, Publicado no DJE: 27/03/2017. Pág.: 233/251)

Se alguém optar por celebrar um contrato em seu próprio nome perante o hospital para o tratamento do familiar, a cláusula pro amico eligendo pode ser útil para que o contratante indique esse familiar doente como sucessor contratual, caso em que o polo contratual será sucedido, se houver o consentimento desse familiar e se este for não for sabidamente insolvente.

Em resumo, se alguém interna um familiar no hospital e assina o contrato, quem terá de pagar a conta? TJ/DFT disse que é quem assinou o contrato.

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*Carlos Eduardo Elias de Oliveira é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Consultor Legislativo do Senado Federal na área de Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Advogado. Ex-advogado da União. Ex-assessor de ministro do STJ. Professor de Direito Civil. Coordenador da pós-graduação de Direito Imobiliário.

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