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O discreto charme do absurdo

O charme discreto do absurdo é sempre o palavrório sem lei ou contra a lei.

terça-feira, 19 de junho de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 14:58

O eminente prof. Oscar Vilhena Vieira, da FGV/SP comenta (Folha 9/7) sob o titulo JUSTIÇA, AINDA QUE TARDIA, ação judicial absolutamente impensável, que merece mais e mais reflexão.

 

Na cidade paulista de Mococa, membro do Ministério Público propôs uma ação civil pública, contra a Prefeitura e outra contra a mulher em situação de rua. A ação civil pública disciplina direitos difusos e coletivos e direitos individuais indisponíveis. No entanto, o objetivo da ação proposta era para forçar a Prefeitura a providenciar a cirurgia de esterilização da mulher, que voluntariamente não a aceitava. A questão envolve direito personalíssimo da mulher. Esse e todo absurdo, no campo do direito, encontra uma forma sonora de encapá-lo. O absurdo se chama teratologia.

 

Essa ação teve um objetivo inacreditável conduzir coercitivamente a mulher em situação de rua para ser esterilizada. A mulher era mãe mais de uma vez, e o fiscal da lei não queria que ela procriasse novamente. O pressuposto é de um tempo que se pensava extinto: antes de jogar o mendigo no rio, a gente não deixa ele nascer.

 

Não se sabe se o grave é a propositura de uma ação descabida, ou se grave é a decisão liminar, imediata, do Juiz que a acolheu, determinando até condução coercitiva para realizar a esterilização, sem ouvir a mulher, sem nomear defensor dativo, sem defesa, sem nada. E a cirurgia foi feita. Condução coercitiva, agora disseminada, sem lei é abuso de autoridade, que merece e precisa de nova lei.

 

O Tribunal de Justiça de São Paulo recentemente corrigiu a ordem judicial. Só que ela produziu efeitos perversos, sob a égide constitucional de um fundamento e de um valor personalíssimo -- a dignidade da pessoa.

 

Mas, essa correção não se enquadra na salutar invocação "a justiça tarda, mas não falha", por uma razão muito simples: a mulher foi esterilizada imediatamente, muito antes do Tribunal reformar o absurdo. Haverá reversão? É cientificamente possível fazer de uma mulher que teve arrancado do seu corpo seu órgão reprodutor, voltar ao estado normal de gerar filhos?

 

Se a reparação é impossível, porque não há dinheiro que pague o escombro patrocinado em nome da lei, só resta a punição exemplar. Qual será ela?

 

Na simultaneidade da noticia, eis que surge, lá dos Estados Unidos, no Condado de Santa Clara, no estado da Califórnia, a da deposição de um Juiz, Aaron PersKy, pelo simples motivo de ter condenado um ex-nadador da equipe da Universidade de Stanford, acusado de crime sexual, à pena considerada pequena.

 

Foi uma professora da Universidade que iniciou a campanha para deposição do juiz, ou seja defenestrar o Juiz de seu cargo, conseguindo 94 mil assinaturas para movimentar o "recall", que Paulo Bonavides conceitua --"É a forma de revogação individual. Capacita o eleitorado a destituir funcionários, cujo comportamento, por qualquer motivo não está agradando". O juiz fora eleito pelo voto direto, tal como o Xerife, o Promotor e outras autoridades. Ele ocupava o cargo há 15 anos.

 

A vítima californiana foi estuprada, quando estava dormindo embriagada, atrás de uma lata de lixo.

 

Ela fez uma declaração durante o curso do processo, que mobilizou a opinião pública. Essa declaração pode ser adaptada à experiência e à boca da mulher de rua da cidade de Mococa: "Você me privou de meu valor, minha privacidade, minha energia, minha intimidade, minha confiança e minha voz..."

 

No Brasil o instituo do recall não existe. E Promotores e Juízes são aprovados em concursos públicos. O controle do exercício da função realiza-se, internamente, pelas respectivas Corregedorias, e ainda existe o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público. Salvo tal ou qual gestão de tal ou qual período, diz-se que o espirito corporativo é um laço de solidariedade, que ninguém vê, mas que, em regra, faz com que tudo mude para ficar tudo igual.

 

Na Califórnia o controle do judiciário é feito diretamente pela soberania popular, que vota. No Brasil, atualmente, invoca-se a opinião pública para justificar o ativismo judicial.

 

O charme discreto do absurdo é sempre o palavrório sem lei ou contra a lei.

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*Feres Sabino é advogado.

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