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Coordenação operacional dos acordos de leniência

Faz-se urgente a pronta coordenação operacional das partes envolvidas, a fim de que se possa zelar pela efetividade dos próprios acordos, reconhecendo-se, inclusive, e de forma peremptória, as garantias legais oferecidas às empresas colaboradoras.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 17:23

Tão importante quanto lançar mão do instituto da leniência é centrar esforços no sentido de aperfeiçoá-lo - dever do legislador e dos órgãos públicos responsáveis por operar esse expediente jurídico no Brasil. Sem deixar de reconhecer todos os esforços dos envolvidos na aplicação da leniência no país nos últimos anos, é certo que ainda nos resta caminhar na busca de apuramento do instituto à luz de preceitos constitucionais consagrados no ordenamento jurídico pátrio.

Os escândalos revelados no âmbito do Mensalão e da operação Lava Jato mostraram a real dimensão da corrupção no Brasil, tornando o seu combate um anseio legítimo da sociedade. A atuação dos agentes públicos, como operadores do regramento legal que são, se revela da mais absoluta importância. Entretanto, a eficácia do instrumento ficará comprometida se o Estado não for capaz de prover aos colaboradores a necessária segurança jurídica.

Nesse cenário, considerar a aplicação da atual legislação de maneira fria e sem espaço para considerações concretas que norteiem essa relação jurídica, conforme tem ocorrido com certa frequência, parece não apontar para seu próprio ratios legis. Ou seja, destoa do sentido original da norma criada para proceder em acordos oferecidos às empresas que praticaram ilícitos mediante devidas contraprestações e, por corolário, garantias legais à parte signatária.

Na seara privada percebe-se uma forma diferente de pensar o papel dos administradores dentro da governança corporativa no Brasil. A causa de imputação de responsabilidade tem se deslocado da pergunta "qual foi a sua participação?" para a pergunta "o que você fez para evitar o ilícito?" e "uma vez que aconteceu o ilícito, o que você fez para remediar?". A lei antitruste brasileira e a experiência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) desde 2003 aplicam essa lógica. De certa forma, a lei anticorrupção, ao incluir entre os critérios de dosimetria da pena a existência de programas de compliance, também apontou o caminho.

Contudo, o ativisimo exacerbado dos "órgãos terminados em U" (AGU - Advocacia-Geral da União; CGU - Controladoria-Geral da União; e TCU - Tribunal de Contas da União) tem ameaçado a perpetuidade dessa política de incentivo às colaborações. Tais órgãos vêm se negando, por exemplo, a respeitar os acordos de leniência firmados pela força-tarefa da Lava Jato, invocando independência funcional com a finalidade de impor novas e maiores sanções às empresas colaboradoras.

Se o escopo do acordo é a responsabilização da empresa em todas as esferas jurídicas, com a sua devida reparação e o seu comprometimento com um novo comportamento que a torne agente de mudança, igualmente é objetivo da leniência preservar o pactuado e assim se fortalecer, vez que já provou ser poderoso instrumento no combate à corrupção. Essa é a razão cardeal do instituto.

É certo que os acordos de leniência são negócios jurídicos que vinculam seus subscritores e intervenientes. Aliás, oportuno notar, quem subscreve os acordos é a pessoa jurídica de direito público "União". AGU, CGU e TCU são entes despersonalizados dessa mesma pessoa jurídica chamada União e, por isso, deveriam agir de forma coerente e de maneira uniforme. Assim se espera. Também é assente que o ato administrativo está sujeito ao controle de legalidade. Mas, enquanto não for declarado nulo, deve ser respeitado pelos demais entes da União com o fito de preservar presunções de legitimidade e legalidade.

O verdadeiro debate está em como computar, nesse dever de reparação, o valor da colaboração em si. De fato, nos crimes cometidos por uma organização criminosa, a colaboração é o que permite: (i) maximizar a recuperação dos danos (se não a integralidade), eliminar os riscos jurídicos inerentes a todo processo de investigação e o processo judicial de imputação de responsabilidade; (ii) revelar fatos até então desconhecidos envolvendo autoridades não diretamente relacionadas às investigações (p. ex., caso Angra 3); (iii) viabilizar a responsabilização dos demais comparsas. Não reconhecer isso significaria submeter o réu colaborador ao peso integral dos danos. Ou seja, quem colabora fica em situação pior daquele que não colaborou.

A letra fria da lei deve ser interpretada de acordo com sua finalidade. E mais: é razoável considerar que o valor da contribuição das empresas lenientes seja, em certa medida, maior do que apenas os valores que se comprometem a pagar. Podem-se creditar, inclusive, em alguns casos, valores que puderam ser obtidos contra os demais delatados a partir daquela colaboração.

Apenas como ilustração, em decorrência da insegurança jurídica que já se impõe, em dezembro de 2017 a construtora Andrade Gutierrez impetrou um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal em desfavor do TCU. De relatoria do ministro Gilmar Mendes (STF), a empreiteira pleiteou no Supremo a suspensão de atos do TCU no processo que pode deixá-la inidônea por desvios de dinheiro na construção de Angra 3. Em abril de 2018, o ministro, por via liminar, suspendeu a declaração de inidoneidade da empresa, habilitando-a a assinar contratos com a União e suas autarquias. Para o ministro, como a construtora já assinara acordo de leniência com o Ministério Público Federal, o TCU não poderia declará-la inidônea. Ainda segundo Gilmar Mendes, existem outras sanções aplicáveis ao caso que não seriam tão prejudiciais ao funcionamento da empresa. Decisão de lógica elementar.

Há alguns dias, o juiz federal Sergio Moro, à frente da Lava Jato na primeira instância, proibiu o uso de provas obtidas durante as investigações da Lava Jato por órgãos de controle e do governo federal contra delatores e empresas que já reconheceram seus crimes e passaram a colaborar com os procuradores. Em outras palavras, Moro criou uma espécie de trava para a atuação de órgãos governamentais que se valiam de tais provas para impor sanções por vezes absolutamente descabidas.

Para o juiz, "seria inapropriado que os órgãos administrativos, que não têm aderido aos acordos, pretendam servir-se das provas através deles colhidas contra os próprios colaboradores ou empresas lenientes". Essa decisão traduz uma premissa inafastável nesses casos, qual seja, a necessidade de se criar uma proteção mínima àqueles que decidem colaborar com a Justiça. Proteção, leia-se, contra potenciais sanções desses órgãos que atuam à margem dos acordos de colaboração, que têm possibilitado o avanço da Justiça sobre malfeitos nunca antes punidos no Brasil.

Portanto, faz-se urgente a pronta coordenação operacional das partes envolvidas, a fim de que se possa zelar pela efetividade dos próprios acordos, reconhecendo-se, inclusive, e de forma peremptória, as garantias legais oferecidas às empresas colaboradoras. A política de incentivo às colaborações provou-se, como já dito, poderoso instrumento de combate à corrupção. Todavia, sua eficácia estará irremediavelmente comprometida se o Estado não for capaz de prover aos colaboradores a necessária segurança jurídica.

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*Rodrigo Suarez é advogado da Advocacia Murillo de Aragão.

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