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O papel da jovem advogada em funções de liderança: a feminilização da advocacia contemporânea

A jovem advogada é aguerrida. Traz nas veias a vontade de crescer, na mente a resiliência de dar conta de múltiplas tarefas com louvor e, nos pés, a força que a mantém em pé diante das adversidades impostas por uma área ainda tão masculinizada.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Atualizado em 25 de setembro de 2019 17:06

Desde o início dos tempos a mulher é tida como elo mais frágil em qualquer relação, não me deixa mentir o livro de Gênesis: a serpente tinha duas opções para tentar, Adão ou Eva. Optou por Eva, uma mulher. A mesma serpente, o anjo mau, mais tarde, foi tomada pelo ódio por outra mulher: Maria, mãe de Jesus. Não aceitava que uma mulher fosse detentora de tamanho poder.

Saindo dos tempos bíblicos e contextualizando para um tempo mais recente, tivemos mulheres, à frente do seu tempo, tentadas e testadas a não seguirem neste caminho, mas que não se acovardaram: tivemos Celina Guimarães, nordestina, primeira mulher a exercer o direito do voto no país, em Mossoró - Rio Grande do Norte; mais tarde tivemos Myrthes Campos, primeira mulher a exercer a advocacia; temos hoje Cléa Carpi, primeira mulher a receber a maior honraria da advocacia, a medalha Ruy Barbosa, e Fernanda Marinela, única mulher exercendo mandato de presidente de uma seccional de OAB, em Alagoas - dentre tantas outras.

A despeito de termos a matemática ao nosso lado, também nos perturba os seguintes números: de acordo com dados de 2017, divulgado pelo site jurídico JOTA, mais de 6 em cada 10 profissionais dos 62.309 registrados na OAB, com até 25 anos, são mulheres. Na faixa entre 26 a 49 anos, 54% dos 466.452 advogados são do sexo feminino. Nas cadeiras das inúmeras faculdades de Direito a proporção prossegue: 55% dos 852.703 estudantes matriculados são mulheres. O detalhe importante é que na maioria dos estados brasileiros, além das mulheres serem maioria, a jovem advocacia também o é.

O ditado popular é certo: costume de casa vai à praça.

Nesse sentido, antes de cobrar algo, é preciso olhar no espelho. Urge uma reforma dentro da própria Ordem dos Advogados do Brasil, no que tange a inclusão da jovem advocacia, que encontra um obstáculo: a cláusula de barreira. Essa cláusula impede todos os advogados e advogadas com menos de 5 anos de inscrição a se candidatar ao Conselho Seccional e diretorias. De sorte que o Conselho Federal não está inerte a essa situação e vive umbilicalmente ligado à jovem advocacia, tanto que editou o provimento 162/15, que institui o Plano Nacional de Apoio ao Jovem Advogado, a fim de organizar políticas institucionais inclusivas para a jovem advocacia, fortalecendo-a no sentindo de majorar sua participação na seccional e em suas decisões.

Ainda assim, há um número a ser encarado, desatendendo, por hora, a cláusula de barreira. Conquanto nem todos os presidentes jovens de seccionais, sejam de fato, jovens - alguns já carregam consigo mais de 5 anos de inscrição - considero nesta análise todo o colegiado: são 27 presidentes atuando hoje, 9 são mulheres.  A minoria persiste.

Malgrado o Conselho Federal e a maioria maciça das seccionais se empenhem na luta pela inserção e valorização da jovem advocacia, a luta ainda é enorme. E se é assim dentro da Casa do Advogado, onde nossos interesses são protegidos, o combate fora dela é ferrenho.

Um ponto é cristalino: há uma verdadeira profusão de mulheres dentro da organização institucional da OAB e dos escritórios de advocacia. Mas por qual razão, analisando o topo da pirâmide, este número se inverte?

Ana Karina Souza, uma das sócias do Machado Meyer em São Paulo, aduziu, em uma campanha do escritório para inclusão feminina entre 4 e 8 anos de carreira, que "As mulheres nesta faixa de carreira, em geral, reclamavam de uma percepção de machismo, diziam que os clientes davam preferência aos homens e diziam ter menos possibilidades do que os homens".

Fazendo um paralelo, mulheres juristas formaram um grupo que se denomina "As processualistas", reunido no afã de promover estudos no campo do direito processual, após terem sido excluídas dos méritos da construção do Novo Código de Processo Civil.

Nesse sentido, trazendo para a realidade institucional e de escritórios, uma pesquisa feita pela FGV revelou que as mulheres não ascendem pelo seu mérito como se espera e, quando acontece, ficam em posições de menos prestígio e que, consequentemente, pagam menos. Os cargos mais prestigiados ainda são dos homens.

A jovem mulher advogada tem que trabalhar, estudar e se esforçar em dobro. Sendo jovem, carrega o estereótipo de que não tem capacidade para galgar maiores patamares. Sendo mulher, carrega o estereótipo da importância do relógio biológico, família e do machismo implícito que reforça a ideia de capacidade inferior.

Se a mulher jovem advogada tem que se insurgir mais, ela o faz. Ela trabalha vários turnos, se especializa, cumpre prazo pela madrugada e várias delas, ainda encontram tempo para atividade institucional. E no meio desse turbilhão de tarefas, lutam por espaço.

As escolhas, sejam para um cargo diretivo da OAB, seja para sociedade de advocacia, não são neutras. Se ainda vivemos num país hipocritamente machista, isto vai reverberar nas escolhas. Noutro famoso escritório, o Mattos Filho, a cada 10 sócios, menos de 3 são mulheres. "Já chegamos à conclusão de que para ter certeza de que temos um ambiente em que as oportunidades são efetivamente iguais não basta sermos neutros porque ser neutro favorece o status quo", afirma Marina Anselmo, sócia da área de mercado de capitais.

Num comparativo com escritórios fora do país, a realidade não é muito distante. Numa pesquisa feita pela Universidade do Kansas e da Hastings College Law, foram avaliados os desempenhos da jovem advocacia: as mulheres receberam feedbacks melhores que o dos homens, no entanto, quando se fala em se tornar sócias, somente 6% foram citadas em detrimento de 15% dos homens.

Um exemplo claro desta desigualdade, é o caso do escritório Pinheiro Neto, um dos mais tradicionais escritórios de advocacia do Brasil. Na sociedade, são 6 mulheres ante 86 homens. Ao passo que, no que toca a parcela do jovem advogado contratado existe uma distorção, sendo 68% homens e 32% mulheres.

Acontece que, naturalmente, onde há menos diversidade, há menos criatividade, inovação e até lucro. Essa desigualdade que vem sendo perpetuada com o passar dos anos, somente gera malefícios, faz os escritórios perderem talentos e, fazendo uma analogia com a nossa OAB, faz a Ordem perder excelentes e visionárias conselheiras, diretoras e gestoras. Nesse liame, Anna Tavares, sócia do Trench, Rossi e Watanabi, escritório brasileiro com maior representatividade feminina no topo, afirma: "Temos casos concretos de clientes que nos escolheram porque tínhamos capacidade técnica, preço e competência no mesmo nível que outros escritórios de ponta, mas nos diferenciamos quanto à diversidade e inclusão. E eles deixaram isso claro".

Portanto, não há mais espaço para a desigualdade de gênero. A jovem advogada é aguerrida. Traz nas veias a vontade de crescer, na mente a resiliência de dar conta de múltiplas tarefas com louvor e, nos pés, a força que a mantém em pé diante das adversidades impostas por uma área ainda tão masculinizada.

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*Glicia Galdino Pacheco é advogada, especialista em Direito Penal e Processo Penal, Direito Francês e União Europeia e membro da Comissão de Apoio à Advocacia Iniciante da OAB/RN.

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