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Pobre remédio heroico...

José Barcelos de Souza

Garantia constitucional, que sempre teve o respeito de ser tratado com prioridade absoluta em juízos e tribunais, operando vantajosamente em prol da liberdade mesmo diante de barreiras aparentemente intransponíveis, é por essas e outras que o habeas corpus tem sido chamado de "remédio heroico".

terça-feira, 31 de julho de 2018

Atualizado em 25 de setembro de 2019 17:35

Depois de um domingo dominado por notícias referentes à ordem de soltura do ex-presidente Lula, expedida pelo desembargador em plantão no TRF4, foi-me solicitada, ainda na manhã do dia seguinte, entrevista sobre a matéria para jornal de emissora de rádio da capital mineira.

Comecei dizendo que não havia nada a estranhar quanto ao que poderia parecer uma impertinente insistência, visto que um pedido de habeas corpus, diferentemente da generalidade das ações judiciais, poderia ser renovado enquanto não concedido, para repetir palavras do grande jurista que foi Pontes de Miranda. Expliquei que regimentos de tribunais há que condicionam o conhecimento de pedido reiterado à apresentação de argumento novo, o que me parece abusivo, eis que um simples esclarecimento, uma eventual mudança de entendimento ou de composição da turma judicante poderá ser suficiente para o acolhimento da impetração.

Tudo indicava, entretanto, que se deveria buscar não ali, mas no STJ, a desejada medida, em face da circunstância, sabida, de que a prisão havia sido determinada pelo próprio TRF4, como consequência da manutenção por ele da condenação, com o acréscimo de exasperação da pena, acrescentei. Isso decorria de preceito do Código de Processo Penal, segundo o qual cessa a competência do juiz quando a coação emanar de órgão de igual ou superior jurisdição, sendo que o desembargador plantonista representava o próprio Tribunal autor da coação. Assim, não obstante a ilegalidade da prisão, vez que a lei não permite a antecipação do cumprimento da pena, e nem o Tribunal decretou, como poderia ter feito com a devida fundamentação, prisão cautelar (a esse respeito, artigo nosso no sitio Migalhas, 10/7/18), tendo-se limitado a mandar prender, não poderia o desembargador de plantão decidir o pedido.

Indagou a inteligente jornalista o que se poderia dizer sobre a participação que tivera o Juiz Moro no episódio. Respondi-lhe que ele não interveio por espontânea vontade, mas porque chamado. É até provável que, por ser o juiz da execução da pena, tenha sido apontado como autoridade coatora, o que, então, justificaria a atuação do plantonista do Tribunal e um indispensável pedido de informações ao mesmo juiz Moro (trata-se, aliás, de magistrado de excelsas qualidades, inclusive aquelas mais raras da serenidade e da humildade, não obstante tropeço como o da ignominiosa - com perdão do palavrão - condução coercitiva, medida de excesso cênico, ao gosto do absolutismo português, nas palavras do citado Pontes de Miranda). Mas a ordem ilegal de expedição do mandado de prisão veio de cima, o que seria suficiente para deslocar para o STJ a competência, que, de outro modo, seria do TRF e, portanto, do plantonista.

O habeas corpus tem, realmente, peculiaridades que o distinguem de outras ações, acentuei.

Outra de suas características é, com efeito, a legitimação extraordinária para a causa, conferida que foi não apenas a quem é alvo da ilegalidade ou do abuso de poder, mas também a qualquer pessoa, isto por certo à consideração que toda a sociedade é atingida na pessoa de um de seus membros. E ainda por cima se dispensa a capacidade postulacional, ou seja, não prevalece a exigência de advogado para ingressar em juízo. "Até preso faz e assina a petição", alertaram-me amigos, preocupados, por causa disso, com uma suposta facilidade ou falta de importância do tema, quando o escolhi para a prova didática em concurso para professor titular na cara Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, para os íntimos a "vetusta casa de Afonso Pena", como tem sido carinhosamente chamada.

A matéria, porém, é instigante. Assim é que a lei fala em requisitos que a "petição" deverá conter, o que levaria ao entendimento que o requerimento deve ser feito por escrito. Entretanto, há na literatura jurídica relato de pedido oral.

Mais que isso, com uma variante inusitada: pelo telefone! O caso ocorreu em Belo Horizonte. Assim foi que, escapando de perseguição pela Polícia Federal, que iria submetê-lo à humilhante condução coercitiva para fins da vexatória identificação criminal, o impetrante correu para o prédio da Caixa de Assistência da Polícia Militar, indo direto para sala em que havia telefone, de que logo fez uso para contato com a Justiça Federal. Semelhante liberdade se explica: o impetrante era por coincidência advogado da mesma Caixa. Daí haver contado com a cobertura do cabo de plantão, pelo que pôde tranquilamente pedir o hc. Levado o assunto ao digno e correto juiz federal, este mandou que a funcionária que recebeu o telefonema lavrasse termo relatando o ocorrido, vindo a conceder uma ordem liminar. O processo, entretanto, veio mais tarde a ser anulado por outro juiz.

Não seria fastidioso apontar uma aplicação insólita do remédio em causa. Em sessão pública e solene de concurso para o magistério superior, um dos examinadores, o saudoso prof. Luis Luisi, de Porto Alegre, fez ao candidato uma indagação que chamava a atenção, especialmente da assistência: seria admissível conceder a Justiça habeas corpus em favor de animais? E depois contou o caso de libertação de dois cães pastores alemães, ocorrido na Argentina, como informara, dizia ele, o autor do livro que exibia - uma modesta obra de minha autoria -, por mim ofertado àquele estimado colega e amigo quando, como professores convidados, lecionávamos em curso de pós-graduação em criminologia na Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro.

Não é à toa que o país "Hermano" é tido por civilizado. Nós temos, porém, mais e melhor. Quando ainda não havia o mandado de segurança (que veio a ser, por sinal, uma criação genuinamente brasileira), formou-se no Supremo Tribunal Federal a construção famosa que ficou conhecida como teoria (ou concepção) brasileira do habeas corpus, com o apoio do notável ministro e jurista que foi o mineiro Pedro Lessa à argumentação que Rui Barbosa fazia na tribuna daquela alta corte, no sentido do cabimento da ampliação do habeas corpus para coações que, embora não ferissem diretamente a liberdade de locomoção, atingissem de algum modo o direito de ir e vir.

Garantia constitucional, que sempre teve o respeito de ser tratado com prioridade absoluta em juízos e tribunais, operando vantajosamente em prol da liberdade mesmo diante de barreiras aparentemente intransponíveis, é por essas e outras que o habeas corpus tem sido chamado de "remédio heroico".

Sua característica, contudo, decorre principalmente do comando constitucional segundo o qual "sempre" que houver ofensa à liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder -"conceder-se-á habeas corpus".

E, ainda, de haver o Código de Processo Penal estabelecido normas que imprimem rapidez ao andamento do processo. Assim é que, no primeiro grau jurisdicional, efetuadas as diligências e interrogado o paciente, o juiz decidirá, fundamentadamente, dentro de 24 (vinte e quatro) horas (art. 660, caput); mas, se os documentos que instruírem a petição evidenciarem a ilegalidade da coação, o juiz ou o tribunal ordenará que cesse imediatamente o constrangimento (§ 2o do mesmo art. 660). Nos tribunais, além dessa possibilidade de ser ordenado que cesse o constrangimento imediatamente, recebidas as informações da autoridade apontada coatora, ou dispensadas, o habeas corpus será julgado na primeira sessão, podendo, entretanto, adiar-se o julgamento para a sessão seguinte (art. 664).

E mais: cominou o legislador multa para certas pessoas que procrastinarem ou embaraçarem a expedição de ordem de habeas corpus, sem prejuízo das penas em que incorrerem (art. 655).

Registre-se, também, que o processamento não está sujeito a pagamento inicial de custas, nem tão pouco àquelas ad recursum, ou seja, para poder recorrer. Só a final se cogitará de condenação em custas, que não serão impostas ao paciente ou ao impetrante, se vencedor.

Por tudo isso, é penoso vê-lo sendo por vezes empurrado com a barriga. Nada justificaria isso, nem mesmo algum receio da opinião pública. Como escreveu o notável jurista uruguaio Eduardo J. Couture, em pequena obra prima, no dia em que o juiz tiver medo, nenhum cidadão poderá dormir tranquilo.

Tempos atrás, a própria Constituição lhe deu profundo golpe: retirou do Supremo Tribunal a competência constitucional para conhecer de pedido de habeas corpus quando houvesse perigo de consumar-se a violência antes que pudesse o juiz ou tribunal competente para o caso conhecer do pedido. Nas palavras de João Barbalho, constitucionalista do Império, o mais humilde brasileiro, de qualquer lugar do País, não ficaria, assim, desprotegido em semelhante caso. Ocorreu, então, que, com uma greve no STJ (!), brasileiros ficaram desamparados. Até que a "categoria" voltasse ao trabalho.
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*José Barcelos de Souza é membro do Conselho Superior do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

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