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O operador nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis: Resposta à exigência Constitucional de um eficiente sistema registral

André Ramos Tavares

O presente texto realiza uma leitura constitucionalmente conforme do art. 76 da lei 13.465, de 11 de julho de 2017, que modificou a lei 8.629/93 e a lei 11.952/09, abordando especificamente o debate sobre o oferecimento de serviços de registros públicos eletrônicos no Brasil e sua respectiva modelagem, por meio de uma nova entidade, o respectivo Operador Nacional.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Atualizado em 26 de setembro de 2019 17:37

1. Concretização necessária e urgente de um sistema eletrônico de registros público integrado e funcional

1.1. Integração e funcionalidade nas atividades registrais como ferramenta do modelo constitucional de desenvolvimento socioeconômico

O Operador Nacional de Registro Eletrônico de Imóveis que foi criado pela MP 759/16, posteriormente convertida na lei 13.465/17, não deve ser considerado como instituto restrito a uma específica Política Nacional de Regularização Fundiária, que efetivamente se encontra em encaminhamento no País. Na verdade, com a sua criação, ambicionam-se avanços muito mais abrangentes, capazes de fazer nosso sistema atual transitar para uma informatização integrada de dados registrais dos Cartórios Extrajudiciais brasileiros. Bem por isso o assunto demanda a compreensão preliminar do que seria uma nova modelagem eletrônica nessa área sensível que são os registros públicos de uma sociedade.

Os objetivos da lei vão muito além de um reconhecido interesse geral de universalização do acesso aos dados pela via da rede mundial de computadores (Internet). Pretende-se, com uma nova modelagem que aqui será objeto de estudo, atuar para o desenvolvimento econômico e social com o incremento da eficiência na segurança jurídica e disponibilidade de tudo o que é constituído e realizado pela atividade de registros no país.

Primeira nota a se destacar é que essa novel modelagem, em seus elementos normativos, encontra-se em plena sintonia com os objetivos fundamentais do Brasil. Ainda dentro de uma fina sintonia constitucional, ressalto a busca pela otimização da interoperabilidade de informações tipicamente cartoriais1, em benefício não só da sociedade em geral, como também da atividade da Administração Pública (art. 3º, II, CB/88).

Nesse sentido, essa modernização do sistema registral não pode ser vista de maneira apartada do modelo constitucional do desenvolvimento socioeconômico brasileiro, direcionado pelo referido artigo 3o, além dos artigos 1o e 170 da CB. Essas diretivas transformativas2 devem guiar a atuação de todas as autoridades e entes privados envolvidos nas inovações institucionais em análise.

O ex-presidente do Banco Central do Peru, HERNANDO DE SOTO, aponta como uma das causas de subdesenvolvimento as deficiências no sistema de registro de imóveis que impedem que um potencial latente desses países seja aproveitado, gerando um sub-aproveitamento dos usos econômicos da propriedade3. Certamente há muitos interesses em jogo e seria uma visão ingênua acreditar que estamos apenas em um ponto de absorção "natural" da tecnologia.

A superação de ineficiências registrais deve visar ao combate das falhas e ausências de aproveitamento total do potencial econômico da propriedade. O combate a esse déficit de aproveitamento econômico é um projeto complexo que não envolve apenas os cartórios de registro de imóveis, que são agentes particulares que executam um trabalho eficiente dentro dos limites que lhe são conferidos pelo Ordenamento Jurídico brasileiro. As deficiências exigem a revisão de um complexo sistema legal e judiciário que clama por eficiência, um adequado e completo mapeamento da propriedade e acesso dos mais pobres ao sistema registral com baixo custo e com reduzida burocracia.

Uma completa integração sistêmica, facilitando-se a consulta aos registros em todo o país é parte do projeto a ser implementado pelo ONR.

A referida integração sistêmica deverá ocorrer nos termos do Projeto da Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológicos - LSI-TEC, indicado pelo CNJ na recomendação 14/144.

Esses dois atores envolvidos no Projeto, a LSI-TEC e o CNJ, elaboraram um documento explicativo sobre a implementação do Sistema5. No referido documento fica consignado que a integração será implementada por meio do "Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado - SAEC", sistema que apenas recepcionará o pedido e o encaminhá ao cartório responsável. Seu papel será "realizar a interação com os solicitantes por meio da internet"6.

Ainda nos termos desse documento, as atividades internas dos cartórios serão realizadas pelos chamados "Sistemas do Cartório - SC" que são múltiplos e administrados pelos próprios registradores delegatários. Essa diferenciação entre sistemas é necessária e deve ser preservada para que se mantenha a autonomia dos cartórios ao mesmo tempo em que se promoverá a coordenação entre os registros em busca do "acesso universalizado".

A integração pode representar um imediato ganho econômico. Os sistemas de publicidade registral surgem a partir da experiência francesa da lei 17.6.1771, de Luís XV7, percussor dos atuais sistemas de registros imobiliários. No entanto, o que se pretende com o atual movimento de integração e nacionalização dos sistemas registrais é a ampliação e facilitação do acesso dos sistemas, padronizando as informações, incrementando a segurança jurídica e possibilitando a consulta de registros em qualquer parte do país. De acordo com HERNANDO DE SOTO, países como Suíça, Alemanha e Japão iniciaram processos de integração e nacionalização de seus registros no século XIX e início do século XX8. A imediata segurança jurídica e facilidade de acesso tem um efeito econômico perceptível a curto prazo. De acordo com SOTO: "[a]s a result of integration, citizens in advanced nations can obtain descriptions of economic and social qualities of any available asset without having to see the asset itself. [...] Consequently, an asset`s potential has become easier to evaluate and exchange, enhancing the production of capital"9.

Essa integração sistêmica, deve beneficiar o conjunto da população e facilitar a incorporação econômica e social da população mais necessitada e excluída, assim como realizar a capacidade produtiva da terra em geral.

As dificuldades dos menos favorecidos de acesso à propriedade imobiliária é um dos problemas mais sensíveis de economias periféricas. Um experimento conduzido por SOTO em Lima buscando fornecer um título de propriedade legítimo a moradores de baixa renda em habitações fora do sistema registral deparou-se com uma enorme dificuldade burocrática: "[t]o receive approval from only the municipality of Lima - just one of the eleven governmental agencies involved - took 728 bureaucratic steps"10.

Nesse contexto, recordo que no Brasil, um recente incêndio em imóvel ocupado por movimento de trabalhadores sem-teto ocorrido em maio de 2018, chamou atenção dos altos custos de aluguel, déficit de moradia, subaproveitamento social de imóveis, diante da grande quantidade de imóveis não utilizados na maior metrópole do país11.

Desse modo, aprimorar o sistema registral melhorando o acesso das informações, inclusive ao Poder Público, na esteira das inovações legislativas em comento, pode contribuir para um mais eficiente mapeamento dos imóveis que não cumprem sua função social, aprimorando a deficiente política estatal de notificações de imóveis ociosos12.

Essa ociosidade de imóveis não pode ser considerada de maneira isolada, pois ela afeta também o início de novas e diversas atividades econômicas. Como alertou o Banco Mundial, a dificuldade de imóveis comerciais para início de novas empresas ainda é um severo entrave econômico nos países em desenvolvimento:

"Commercial real estate was considered to have no productive value under central planning. In market economies, however, commercial real estate is a vast store of wealth, often larger than industrial plant and equipment. Real estate is also a critical factor in new business entry; start-ups need access to premises or, equally important (given the poor state of many existing buildings), access to vacant land and permits to construct new buildings. Both are hard to come by in many cities in transition economies; the result is a severe shortage of commercial space, which is blocking private sector development"13. O assunto, pois, interessa tanto aos menos favorecidos como também ao setor produtivo capitalista.

Além disso, o acesso dos menos favorecidos aos direitos decorrentes da propriedade imobiliária oficial tem um efeito de inclusão socioeconômica por diversas razões, como o acesso a empréstimos com garantia. Ainda de acordo com SOTO: "[t]he lack of legal property thus explains why citizens in developing and former communists nations cannot make profitable contracts with strangers, cannot get credit, insurance or utilities services [...]".

Parece-me crucial essa visão inicial amplificada do objeto da lei sob comento, considerando as finalidades constitucionais da ordem econômica, pois, como se vê, as verdadeiras bases iniciais da discussão em torno do chamado ONR não foram erguidas com a lei 13.465/17. O que se discutirá nesta análise é um dos desdobramentos programados, pelo Brasil, para a atividade de registros públicos, desde os expressos parâmetros constitucionais até as determinações legislativas sedimentadas pela lei 11.977/09 e suas concretizações efetivas.

  • Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.

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1 Assumo, aqui, esses elementos, em oposição aos meros sistemas de cadastros ou bancos de dados genéricos, que rotineiramente apenas replicam ou espelham informações de fontes seguras e certificadas, supostamente duplicando-as.

2 Nesse sentido já tive a oportunidade de afirmar que a "proposta transformativa [...] assume o sentido de instrumento de mudança da estrutura econômica de exploração ainda presente, e pobreza extrema de parte da sociedade, para níveis econômicos satisfatórios, pela transformação social" André Ramos Tavares. Direito Econômico Diretivo: percurso das propostas transformadoras. São Paulo: 2014, p. 117.

3 HERNANDO DE SOTO. The Mystery of Capital: why capitalism triumphs in the west and fails everywhere else. London: Black Swan, 2001, p. 160-167.

4 O artigo 1o da Recomendação recomenda "às Corregedorias Gerais de Justiça que na regulamentação ou na autorização de adoção de sistema de registro eletrônico por responsável por delegação de Registro de Imóveis, inclusive quando prestados com uso de centrais eletrônicas, sejam adotados os parâmetros e requisitos constantes do modelo de sistema digital para implantação de Sistemas de Registro Eletrônico - S-REI elaborado pela Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológicos - LSI-TEC em cumprimento ao contrato CNJ no 01/2011".

5 CNJ/LSI TEC. SREI - Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário: Parte 1 - Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. Disponível em clique aqui, acesso em 19.6.2018.

6 Op. Cit. p. 15.

7 A esse respeito conferir JACOMINO, Sérgio. Registros de Documentos: Crônica de uma morte anunciada. Disponível em clique aqui, acesso em 20.06.2018. A Lei está disponível em clique aqui, acesso em 20.06.2018.

8 "In California just after the gold rush of 1849 there were some eight hundred separate property jurisdictions, each with its own records and individual regulations established by local consensus. [...] By enacting more than thirty-five preemption and mining statutes, Congress gradually managed to integrate into one system the informal property rules created by millions of immigrants and squatters.
"[...] Formal property registries began to appear in Germany, for example, in the twelfth century, but were not fully integrated until 1896, when thee Grundbuch system for recording land transactions began operating on a national scale. In Japan the national campaign to formalize the property of farmers began in the late nineteenth century and ended only in the late 1940s. Switzerland`s extraordinary efforts to bring together the disparate systems that protected property and transactions at the turn of twentieth century are still not well known, even to many Swiss". (HERNANDO DE SOTO, op cit., p. 52-53, original não grifado).

9 HERNANDO DE SOTO, op cit., p. 53.

10 HERNANDO DE SOTO, op cit., p. 202.

11 Cf. e.g. Anïs Fernandes. Gasto Excessivo com Aluguel Pressiona Déeficit Habitacional no Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, 5.mai.2018. Disponível em clique aqui, acesso em 24.05.2018.

12 Sobre a queda do número de notificações pela falta de função social urbana dos imóveis em São Paulo: Mariana Zylberkan. 1.089 imóveis ociosos em SP ignoram alerta e ficam sujeitos a IPTU mais caro. Folha de São Paulo, São Paulo, 15.mai.2018. Disponível em clique aqui, acesso em 24.05.2018.

13 WORLD BANK. World Development Report: 1996 from plan to market. New York: Oxford University Press, 1996, p. 60. Disponível em clique aqui, acesso em 24.05.2018.

14 HERNANDO DE SOTO, op cit., p. 55.

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*André Ramos Tavares é professor titular da faculdade de Direito da USP e professor da PUC/SP. Foi presidente do Conselho Consultivo da Presidência do CNJ.

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