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O furto de energia genética, Eudes Quintino

O furto de energia genética

Se um cidadão ganha o interior de uma clínica de reprodução humana e do interior do botijão de nitrogênio líquido retira algumas amostras de espermatozoides criopreservados, comete o crime de furto?

domingo, 30 de setembro de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 17:48

O avanço da biotecnologia provoca constantes mudanças nas leis existentes, que vão se tornando vetustas porque sua projeção vai se esgotando e não atende mais aos reclamos sociais, que se desenvolvem muito rapidamente. E é compreensível. A lei, apesar de toda a dificuldade, por se tratar de um processo legislativo lento e um caminhar moroso, quando for tratar com a realidade científica, deve andar no mesmo compasso. Basta ver que a rapidez do progresso científico é praticamente instantânea e se reproduz de forma difusa, alcançando várias áreas da convivência humana, exigindo, desta forma, que seja feita a normatização adequada a respeito. A lei penal, por exemplo, com seu caminhar compassado, seu olhar circunspecto, analisa detalhadamente o avanço projetado, realiza suas avaliações e, se entender conveniente e oportuno para a vida social, descreve a conduta a ser penalizada. "A função social de uma lei penal, é estabelecer e definir certos tipos de conduta como algo a ser evitado ou praticado por aqueles a quem se aplica, independentemente dos desejos destes", preconiza Hart1.

Assim, ingressando no mundo da engenharia genética, palco que simboliza a prática da mais avançada tecnologia, faz-se a seguinte indagação: se um cidadão ganha o interior de uma clínica de reprodução humana e do interior do botijão de nitrogênio líquido retira algumas amostras de espermatozoides criopreservados, comete o crime de furto?

Em primeiro lugar, é de se observar que o Código Penal é de 1940, portanto muito antes das técnicas de reprodução assistida, mas, mesmo assim, no § 3º do artigo 155, que trata do crime de furto, preceitua a subtração para si ou para outrem de coisa alheia móvel, equiparando a ela a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico. Quando a lei se utiliza de expressão abrangente, como "qualquer outra", é justamente para compreender variadas outras formas de energia que não foram descritas no tipo penal.

Assim, furto de energia elétrica, de sinal de TV a cabo, de sinal de Internet, dentre outros, são considerados furtos e, em razão da extensão interpretativa contida na norma penal, a conceituação alcançou a categoria de furto de energia genética, consistente na subtração de sêmen de animais. Exemplo típico é do agente que furta sêmen de touro reprodutor para inseminar suas vacas. Trata-se, in casu, de furto de coisa alheia própria e com valor econômico.

Mas, em se tratando de sêmen humano, não se aplica referida regra. Isto porque, em primeiro lugar, não se permite tamanha elasticidade interpretativa e, em segundo, não há que se falar em valor econômico. Além do que, a lei 9434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos para fins de transplante, possibilita a disposição, desde que seja gratuitamente, de tecidos, órgãos e partes do corpo humano vivo, para fins de transplante em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, ou se for para outra pessoa, mediante autorização judicial. A doação post mortem, por sua vez, sem qualquer ônus financeiro, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau.

Percebe-se, portanto, que inexiste a regra do valor econômico, por se tratar de bem extra commercium. Resta, desta forma, a possibilidade de se ajustar o furto ora discutido ao caput do artigo 155 do Código Penal, que assim preconiza: "Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel". Parece-me que é inapropriado o locus para a tipificação da conduta. É até banal considerar o sêmen coisa alheia, sendo que, na realidade, representa o patrimônio genético da pessoa humana. O patrimônio genético é a somatória das conquistas do homem, no plano físico, psíquico e cultural, que o acompanha em seus registros biológicos, faz parte de sua história e evolução e, como tal, merece a proteção legal. É o relato e o retrato da raça humana, desde o homem de Neandertal. Passa a ser objeto de tutela pessoal e estatal e qualquer ofensa a ele é desrespeito à própria humanidade. A proteção desloca-se da individualidade do ser humano já formado, com personalidade própria, para aquele que ainda vem a ser, com personalidade jurídica.

Pela sua importância, e aqui fica a sugestão de lege ferenda, de se definir um tipo penal adequado e que possa abrigar a correta proteção ao sêmen humano, não como um crime corriqueiro, que admite até a suspensão condicional do processo, mas como uma conduta grave, com pena severa, pois pode comprometer a linhagem genética da vítima.

É certo, pela rápida incursão feita, que cada vez mais há necessidade de atualizar a legislação brasileira, colocando-a no mesmo patamar das conquistas científicas. Do contrário, inevitável o prejuízo e até mesmo a banalização do ser humano.

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1 Hart, H.L.A. O conceito de direito. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: editora |WMF Martins Fontes, 2009, p.36.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

 

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