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As "emendas de gráfica": artigos do Código Civil de 2002 que não foram votados

Temos consciência de que não acrescentamos rigorosamente nada de novo. Longe de alterarmos o espírito do texto, tentamos aclarar-lhe o discurso, colocando de forma explícita o que já existia implicitamente.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Atualizado em 25 de setembro de 2019 14:55

Em matéria alusiva aos 30 anos da Constituição, este rotativo publicou, na última sexta feira, entrevista do ex-constituinte Nelson Jobim, que rememorou episódio polêmico ocorrido na Assembleia Constituinte, relativo à inclusão, sem qualquer votação, de dois artigos na Constituição, a pretexto de evitar maiores atrasos na promulgação da Carta Magna. Um desses artigos é o que estabelece o princípio da independência entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário1.

A revelação, feita originalmente ao Jornal O Globo em 2003, gerou grande polêmica e duras críticas, a ponto de se cogitar, até mesmo, no impeachment do então ministro do STF.

Isso me fez lembrar de uma situação muito semelhante ocorrida durante a tramitação do projeto de Código Civil na Câmara dos Deputados e que tive a oportunidade de testemunhar quando assessorava o saudoso deputado Ricardo Fiuza, então relator-geral do projeto de Código Civil na Câmara Federal.

Também no atual Código Civil Brasileiro encontram-se alguns dispositivos que, face à exiguidade do tempo, foram alterados mesmo sem que tivessem sido objeto de qualquer emenda e muito menos submetidos a votação. Conto isso em detalhes no livro que escrevi sobre o processo de codificação do direito civil (Codificação, descodificação, recodificação do direito civil brasileiro. 1º. ed. São Paulo: Saraiva, 2011).

Incumbidos que estávamos de consolidar o texto, incluindo as últimas emendas de redação que haviam sido aprovadas, de modo a que o Plenário da Câmara pudesse votar e aprovar a redação final do texto em sessão extraordinária designada para as 8h da manhã seguinte, tarefa que só concluímos alta madrugada, pressionados pela imensa responsabilidade que tínhamos sob os ombros, terminamos por incluir uma ou outra sugestão que, a rigor, não havia sido votada2.

É o caso, por exemplo, do caput do art. 1.790, onde a expressão "onerosamente", fruto de sugestão que nos foi passada por telefone por Álvaro Villaça Azevedo, terminou incorporada ao texto já aprovado na comissão e no plenário3.

O mesmo pode-se se dizer com relação ao acréscimo do termo "companheiro" no art. 1.844. Aliás, no afã de atenuar a suposta (e tão criticada) supremacia do casamento sobre a união estável, fizemos inserir a referência a "companheiros" em vários dispositivos que anteriormente só aludiam aos "cônjuges".

Ainda assim, não obstante todo esse esforço, várias omissões persistiram. Veja-se o caso, por exemplo, do § 2º do art. 1.412 quando, ao se referir à "família do usuário" menciona o cônjuge e omite o companheiro. Também omitimos involuntariamente a menção ao companheiro no parágrafo único do artigo 12, no parágrafo único do artigo 20 e também nos artigos 25, 27, 30, 33, 197, 228, 229, 965, III, 1.066, § 1º, entre outros.

Antes que possam alguns pensar em suscitar a inconstitucionalidade, por vício do processo legislativo, desses ou de outros dispositivos, frutos das chamadas "emendas de gráfica"4, convém lembrar que o texto final impresso, com todos esses acréscimos, inclusive os que não foram objeto de emenda, passou por uma última, simbólica e providencial votação em Plenário, o que, a nosso sentir, convalida os eventuais vícios anteriores da tramitação.

Demais disto, todas essas alterações poderiam, tecnicamente, haver constado do parecer do relator submetido à votação da comissão especial e do Plenário. Lá deveriam ter estado. E se tivessem sido tempestivamente apontadas na ocasião, certamente teriam feito parte daquele documento, submetendo-se, assim, aos ritos regimentais. O problema é que muitas e importantes sugestões somente nos chegaram ao conhecimento depois que o projeto tinha sido votado na comissão e no Plenário5. Entre fazer "ouvidos de mercador", acobertados pelo confortável manto dos tecnicismos, ou atropelar um pouco as formalidades legais em prol de um interesse maior da sociedade, trilhamos o último caminho, esperando, senão a absolvição, a complacência indulgente da história.

Temos consciência de que não acrescentamos rigorosamente nada de novo. Longe de alterarmos o espírito do texto, tentamos aclarar-lhe o discurso, colocando de forma explícita o que já existia implicitamente.

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1 Art. 2º: "São poderes da República, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".

2 Verificamos, naquela undécima hora, um sem número de omissões e lapsos manifestos no texto já aprovado. Empreendemos, então, um esforço sobre-humano para tentar minimizar os graves problemas sistêmicos que adviriam com a aprovação do código naquele estado.

3 O objetivo do acréscimo não foi o de promover qualquer alteração na substância do artigo, mas apenas deixar claro que, ao se referir aos bens "adquiridos na constância da união estável" (redação original aprovada), o dispositivo aludia exatamente ao patrimônio adquirido pelo esforço comum dos companheiros.

4 Jargão utilizado nos parlamentos para se referir a palavras ou expressões incluídas na lei apenas quando de sua impressão no órgão oficial.

5 Quando chamadas a contribuir a maioria das pessoas se omite, pois é muito mais fácil criticar um trabalho do que colaborar para o seu aperfeiçoamento. Certa ocasião, um importante professor das arcadas, instado a apresentar sugestões ao projeto, respondeu-me: Não me peça sugestões. O que eu sei fazer é criticar.

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*Mário Luiz Delgado é doutor em Direito Civil pela USP e mestre em Direito Civil comparado pela PUC-SP. Sócio do escritório MLD - Mário Luiz Delgado Sociedade de Advogados.

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