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Alienação fiduciária e ITBI: a volta de quem não foi

Por qualquer ângulo que se analise a questão, a conclusão é sempre a mesma: não há razão jurídica que fundamente, com solidez, a inexigibilidade do ITBI por ocasião da consolidação da propriedade em nome do credor.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Atualizado em 25 de setembro de 2019 16:29

Algumas decisões judiciais vêm declarando a não incidência do imposto de transmissão entre vivos (ITBI, ou ITIV, conforme o município) por ocasião da consolidação da propriedade em nome do credor1.

Para afastar a cobrança, os magistrados invocam três argumentos principais:

  1. 1º: tendo o imposto sido recolhido por ocasião da instituição da alienação fiduciária, não há razão para fazê-lo novamente;
  2. 2º: antes da consolidação, a propriedade já era do credor (que ainda por cima é obrigado a leiloar o bem), e assim, inexistindo transmissão, não há fato gerador; e
  3. 3º: a lei 9.514/97, ordinária, não poderia definir, como fez no art. 26, §7º, um fato gerador do ITBI, e ao fazê-lo, violou a reserva de lei complementar.

Nenhum deles, conquanto, parece resistir a uma análise crítica.

Como se sabe, a alienação fiduciária é o negócio jurídico pelo qual o devedor (fiduciante), com o escopo de garantia, transfere para o credor (fiduciário) a propriedade resolúvel de um imóvel (lei 9.514/97, art. 22). Sendo direito real, sua constituição se consuma com o registro do contrato.

A propriedade é resolúvel por estar subordinada a uma condição resolutiva, isto é, um evento futuro e incerto: o cumprimento da obrigação garantida (art. 25). Em outras palavras, o credor deixará de ser fiduciário se e quando o devedor quitar sua dívida (principal mais encargos).

Logo, uma vez paga a dívida, considera-se implementada a condição, resolvendo-se a propriedade, e ficando o credor obrigado a entregar ao devedor (ou garantidor, se a garantia foi prestada por terceiro em favor do devedor) o termo de quitação, o qual, levado ao cartório de registro de imóveis, implicará o cancelamento do registro da alienação fiduciária. Com tal averbação, o fiduciante volta a ter a plena propriedade do bem2.

Notem: no cancelamento da garantia, não há fato gerador de ITBI. Como não, se o bem, como se diz comumente, "retorna" para o fiduciante? A propriedade, ainda que resolúvel, não era do credor? Bem, então nesse caso, há de se caminhar por um dos dois caminhos: (i) na resolução da propriedade, o que ocorre é a extinção pura do direito, e não sua transmissão; ou (ii) nos expressos termos da lei, a transferência ao credor é feita apenas "com o escopo de garantia", e a resolução do direito real opera, por assim dizer, a volta de quem não foi. Seja como for, a discussão, para esse fim, não soa produtiva, pois de um jeito ou de outro, a conclusão será mesma: o ITBI não incide sobre o cancelamento.

Será, porém, que podemos usar o mesmo raciocínio para a consolidação da propriedade? Analisemos brevemente, então, cada um dos fundamentos, a começar pelo primeiro argumento: o imposto seria inexigível tendo em vista seu prévio recolhimento.

Não se pode obrigar o credor a pagar o ITBI se esse tributo já foi pago por ocasião da instituição da garantia, diz o juiz. Será mesmo?

Em praticamente todos os contratos em que há financiamento imobiliário com alienação fiduciária, vemos o recolhimento de ITBI. Uso o termo "financiamento" em sentido lato, para abranger não somente as operações triangulares, em que há a presença de uma instituição financeira, como os contratos de compra e venda simples, em que o comprador, para garantir a quitação do saldo do preço do imóvel a si vendido, entrega ao vendedor a propriedade fiduciária do bem.

Entretanto, o imposto não é recolhido em razão da garantia, senão pela transferência do imóvel! No primeiro caso, da triangulação, o vendedor transfere ao comprador a propriedade plena (incide ITBI), e então o comprador entrega ao banco a propriedade fiduciária (sem o pagamento do tributo). E na segunda hipótese, o ITBI igualmente incide sobre a compra e venda, e não sobre a constituição da garantia.

E nem poderia ser diferente. Afinal, o art. 156, I, da Constituição Federal, é expresso em dizer que o imposto de transmissão entre vivos incide sobre a transmissão por ato oneroso a qualquer título, de imóveis e direitos reais a eles relativos, "exceto os de garantia". Idem para o art. 35, II, do Código Tributário Nacional (CTN).

Mais: nem toda alienação fiduciária acompanha uma compra e venda. Longe disso.

A lei de Locações prevê a caução imobiliária como modalidade de garantia do contrato. Embora alguns registrem na matrícula do imóvel a "caução imobiliária" (não prevista no rol do art. 167 da lei 6.015/73), entendo que estamos diante das duas garantias reais imobiliárias existentes em nosso sistema: a hipoteca e a alienação fiduciária. Dito em outras palavras, como locatário ou como terceiro, posso entregar ao locador a propriedade resolúvel do meu imóvel, em garantia do cumprimento das obrigações locatícias. Sem pagar ITBI.

Da mesma forma, posso instituir tal garantia como garantia do pagamento de uma dívida confessada. Igualmente sem pagar o tributo. Pois, como visto, na criação desse direito real não incide o imposto de transmissão. E o mesmo se observa em qualquer outro negócio jurídico em razão do qual, para garantir uma dada obrigação de pagar, se institua a alienação fiduciária.

Portanto, se para criar a propriedade fiduciária não se paga ITBI, não parece correto dizer que o tributo não pode ser exigido por ocasião da consolidação porque já foi recolhido. O primeiro argumento, assim, não parece confiável.

Sigamos para o segundo argumento. As decisões judiciais que afastam a cobrança do ITBI também levam em conta que a propriedade do imóvel já pertencia ao credor. Assim, não há transmissão na consolidação, nem ocorrência de fato gerador. Além disso, essa seria uma situação provisória, considerando que a lei obriga o credor a promover o leilão do bem. Uma vez arrematado por terceiro, aí sim incidiria o tributo.

Essa premissa, todavia, possui dois problemas.

Em primeiro lugar, se é verdade que o credor tem o dever de promover a hasta pública do imóvel, o fato é que a mesma lei 9.514/97 autoriza que o próprio fiduciário fique com o bem na hipótese de dois leilões negativos. Situação, aliás, muito comum. Logo, a previsão de realização do leilão não poderia, sem contradição do sistema, levar à não incidência do imposto.

Além disso, como visto, a transmissão da propriedade é feita ao credor "com escopo de garantia", sendo esta a única e exclusiva razão para a não incidência do ITBI na constituição da garantia.

Nessa ordem, o art. 1.367 do CC3 qualifica a propriedade fiduciária como direito real de garantia, submetendo-a ao regime jurídico correspondente. Para utilizar a feliz expressão de Melhim Chalhub, a propriedade fiduciária impõe uma "compressão" na propriedade do devedor, e o pagamento da dívida garantida a libera4.

A constituição da alienação fiduciária cria apenas um patrimônio separado5, afetado a garantir o pagamento da dívida, e o credor passa a ser fiduciário, e não pleno proprietário6. É a consolidação que põe fim a tal escopo, tornando efetiva a transferência da propriedade, não mais fiduciária. O que antes era um direito real de garantia, com a consolidação deixa de sê-lo. Daí a incidência do tributo.

Tanto é assim que a lei estabelece um corte bem definido: (i) antes da averbação da consolidação, pode o devedor purgar a mora, caso em que a alienação fiduciária se convalesce7; porém (ii) feita essa averbação, o fiduciante ainda poderá recuperar o imóvel até a data da realização do segundo leilão, mas nesse caso terá que recomprá-lo, pagando o valor estipulado no art. 27, §2º-B.8

Admitir a não incidência do ITBI nos dois momentos (constituição da garantia e consolidação da propriedade) significaria permitir a transmissão da plena propriedade do devedor para o credor sem o pagamento do imposto. Isso não soa razoável, nem parece ser a melhor interpretação para o art. 156, II, da Constituição Federal, e para o art. 35, I, do CTN, que tributam a transmissão onerosa de bem imóvel "a qualquer título", salvo as exceções ali definidas.

Em última instância, essa interpretação poderia estimular a fraude à lei. A depender do tamanho da vantagem, comprador e vendedor poderiam simular uma alienação fiduciária, realizando em conluio os procedimentos do art. 27, para evitar arrematantes nos leilões, com o intuito de não recolher o imposto.

Por tais razões é que o segundo silogismo também não parece ser convincente.

Finalmente, o terceiro argumento. Diz-se que o art. 26, §7º, da lei 9.514/979, ao prever o recolhimento do ITBI por ocasião da consolidação da propriedade, invadiu a esfera de lei complementar, a quem cabe, com exclusividade, a definição do fato gerador do tributo.

Mas espere um pouco. Quem disse que o fato gerador está na lei ordinária? Como visto anteriormente, é o CTN, na mesma linha da Constituição, que o define como sendo "a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis". O art. 26, §7º, da lei 9.514/97 é, tão-somente, um comando dirigido ao oficial registrador, que, nos termos do referido dispositivo legal, "promoverá a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, à vista da prova do pagamento por este, do imposto de transmissão inter vivos e, se for o caso, do laudêmio".

Se você reparou, a mesma lei também prevê a fiscalização, pelo oficial registrador, do recolhimento do laudêmio. E igualmente, o laudêmio, nos casos de imóveis foreiros, não é regulado pela lei 9.514/97.

Enfim, uma coisa é definir o fato gerador; outra, muito diferente, é regulamentar procedimento registral. Em outros termos, o ITBI seria devido mesmo no silêncio do art. 26, §7º, em questão. Terceiro argumento, água.

Parece estar claro, assim: (i) que não incide ITBI sobre a constituição da alienação fiduciária; (ii) que a consolidação é ato que consuma a plena propriedade do imóvel em nome do credor, completando a transmissão; e (iii) que a lei 9.514/97 não define fato gerador, limitando a estabelecer, para o registrador, um dever de fiscalização, não só em relação ao imposto, como também no que se refere ao laudêmio, para imóveis foreiros.

Então, por qualquer ângulo que se analise a questão, a conclusão é sempre a mesma: não há razão jurídica que fundamente, com solidez, a inexigibilidade do ITBI por ocasião da consolidação da propriedade em nome do credor10.

Como caminhará a jurisprudência nos tribunais estaduais? Como se posicionarão, especialmente, os tribunais superiores, quando instados a definirem esse tema? Façam suas apostas.

__________

 

1 Por exemplo: processo 200704505-40.2018.8.07.0018 (TJDFT) e processo 2163248-21.2017.8.26.0000 (TJSP).

 

2 O fiduciante pode ter apenas a laje, a superfície ou o domínio útil do bem dado em garantia, sendo esses os direitos que retornam à titularidade do garantidor quando extinta a alienação fiduciária. Portanto, a expressão "plena propriedade" é utilizada neste artigo para fins meramente didáticos, apenas no sentido de não-subordinada a condição resolutiva. Nessa linha, vale citar que o art. 1.368-B, parágrafo único, do Código Civil, utiliza a mesma expressão.

 

3 Art. 1.367. A propriedade fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial deste Código [Direito das Coisas - Do Penhor, da Hipoteca e da Anticrese - Disposições Gerais] e, no que for específico, à legislação especial pertinente, não se equiparando, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o art. 1.231.

 

4 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 103/109.

 

5 Sobre o tema, v. OLIVA, Milena Donato. Patrimônio separado: herança, massa falida, securitização de créditos imobiliários, incorporação imobiliária, fundos de investimento imobiliário, trust. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

 

6 O art. 525 do Código Civil de 1916 esclarecia ser "plena a propriedade, quando todos os seus direitos elementares se acham reunidos no do proprietário" (isto não ocorre com a alienação fiduciária); e "limitada, quando tem ônus real, ou é resolúvel" (g.n.).

 

7 O prazo para a purgação da mora pode variar. Se o contrato estiver no âmbito de uma operação de financiamento habitacional, inclusive as operações do Programa Minha Casa, Minha Vida, o devedor pode efetivá-la enquanto não ocorrer a averbação da consolidação da propriedade (Art. 26-A, §7º). Nos demais contratos, o fiduciante deve purgar a mora nos 15 dias subsequentes à sua intimação (Art. 26, §§1º, 4º e 5º).

 

8 Art. 27. (....) §2º-B. Após a averbação da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida, somado aos encargos e despesas de que trata o §2º deste artigo, aos valores correspondentes ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito de consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário, e às despesas inerentes ao procedimento de cobrança e leilão, incumbindo, também, ao devedor fiduciante o pagamento dos encargos tributários e despesas exigíveis para a nova aquisição do imóvel, de que trata este parágrafo, inclusive custas e emolumentos.

 

9 Art. 26. (...) §7º. Decorrido o prazo de que trata o § 1o sem a purgação da mora, o oficial do competente Registro de Imóveis, certificando esse fato, promoverá a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, à vista da prova do pagamento por este, do imposto de transmissão inter vivos e, se for o caso, do laudêmio.

 

10 Frise-se que não sou o primeiro a defender tal posição. Melhim Chalhub, ao tratar da não incidência desse tributo na instituição da alienação fiduciária, já afirmava que "o ITBI só se tornará exigível na transmissão para o fiduciário, por efeito do contrato de alienação fiduciária, no momento em que vier a se verificar a consolidação da propriedade em seu nome" (ob. cit., p. 261).

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*André Abelha é sócio do escritório Castier/Abelha Advogados.

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